Deram-me um passe [de segurança] e fui para a sala [do NKVD]. O investigador se levantou quando entrei e me cumprimentou. Foi muito amistoso e me convidou a sentar. Começou a fazer perguntas sobre minha saúde, minha família, o trabalho que estava fazendo_ todo tipo de pergunta. Falava de maneira muito amistosa, receptiva e bem-educada. Então, de repente, perguntou: "Diga-me, conhece Tukhatchevski?". Eu disse que sim e ele perguntou: "Como?". E eu disse: "Num dos meus concertos. Depois do concerto, Tukhatchevski foi ao camarim me parabenizar. Disse que gostava da minha música, que era meu admirador. Disse que gostaria de me encontrar para conversar sobre música quando viesse Leningrado. Disse que seria um prazer discutir música comigo. Disse que, se e fosse a Moscou, gostaria muito de me ver." "E com que frequência se encontravam?" "Só quando Tukhatchevski vinha à cidade. Costumava me convidar para jantar." "Quem mais estava à mesa?" "Só a família dele. Familiares e parentes." "E o que discutiam?" "Música, principalmente." "Política, não?" "Não, nunca falávamos de política. Eu sabia como eram essas coisas." "Dmitri Dmitrievitch, isso é muito sério. O senhor precisa se lembrar. Hoje é sábado. Vou assinar seu passe e o senhor pode ir para casa.. Mas, ao meio-dia de segunda-feira, tem de volta aqui. Não se esqueça. Isso é muito sério, muito importante." Entendi que era o fim. Aqueles dois dias até segunda-feira foram um pesadelo. Disse à minha mulher que talvez não voltasse. Ela chegou a me preparar uma bolsa, do tipo que se prepara para quem vai ser levado. Colocou roupas de baixo de inverno. Eu sabia que não ia voltar. Fui até lá ao meio-dia [da segunda-feira] e me apresentei na recepção. Havia um soldado lá. Dei-lhe meu passaporte [interno]. Disse-lhe que fora convocado. Ele procurou meu nome: primeira lista, segunda, terceira. E disse: "Quem o convocou?". Eu disse: "O inspetor Zakovski." Ele disse: "Ele não vai poder atendê-lo hoje. Volte para casa. Nós o chamaremos". Devolveu meu passaporte e fui para casa. Só mais tarde, à noite, soube que o inspetor fora preso.
Disponível em inglês em:
http://www.siue.edu/~aho/musov/basner/basner.html(Citado em Em Defesa das Causas Perdidas, de Slavoj Zizek, tradução de Maria Beatriz de Medina, Boitempo Editorial, pp. 251-252.)
A primeira chamada foi por "culpa" de Lady Macbeth de Mtsensky, três anos antes, em 1934. A vida do cara era um inferno.
ResponderExcluirZizek meio que desce o cacete em Shosta e enaltece Prokofiev, dizendo que este último era truculento com o partido, aparecendo bêbado nas reuniões fechadas, passeando com seu carro importado dos EUA pelas ruas de Moscou, vivendo com bon vivant pouco se importando com a repressão do regime e a fome por todo lado, beneficiando-se por já terem aceito sua excentricidade. E reverte ainda mais o discurso aceito sobre Shosta, dizendo que sua música, nos palimpsestos de devoção soviética nos quais a própria platéia soviética via a catarse das ironias contra o regime, era bem mais infligida pelo stalinismo do que a de Prokofiev, que era como uma criança alheia à realidade política, um anti-Mozart. A primeira sonata para violino de Prokofiev, diz Zizek, confirma sua integridade artística. Diz o esloveno: "se em Beethoven cada obra só atingia sua forma definitiva depois de uma longa luta heróica com a matéria-prima musical, as melhores obras de Prokofiev são monumentos à derrota dessa luta."
ResponderExcluirFico feliz que o Em Defesa das Causas Perdidas esteja rendendo tanto.
ResponderExcluirJá lestes, Luiz? São tantas ideias no livro que é difícil se animar para escrever um post. Ainda não terminei, mas o livro é tão deliciosamente permeável que é duro largá-lo. Ainda não sei o que REALMENTE o Zizek propõe. Sua admiração por Mao às vezes não consegue se equilibrar razoavelmente numa linha discursiva. Mas é o único que confronta o capitalismo neo-liberal com uma autocrítica acirrada da esquerda, e que elabora uma possível e imprescindível volta das grandes ideias sociais. Leitura de primeira e fundamental.
ResponderExcluirVi recentemente um filme francês em que uma médica do tipo paranormal é chamada acuidar de Stalin. O tratamento tem razoável êxito, mas a vida da médica se transforma em um inferno, pois Stalin, conforme o filme, seria mestre em provocar o medo a partir da insegurança em que se vivia sob seu regime, onde sua vontade soberana alterava as diretivas "partidárias" constantemente (como homem de partido, Stalin dava primazia a ele, e insistia em ser chamado somente de "camarada Stalin"). Assim, o líder de hoje estava na Sibéria amanhã, e o de amanhã na Lubianka (o prédio da NKVD, suponho) depois de amanhã. A médica tenta fazer acordo com Stalin, mas ele a dirige da maneira que bem entende e, ao final, a condena a morte, da qual a médica só se livre porque, diante dela, Stalin tem uma apoplexia e morre, e ela engole o decreto que Stalin deixara escrito sobre a mesa. Segundo o grande "pai dos povos", Hitler perdera a guerra porque dera a seus comandados excessivas certezas, não apenas ideológicas, como de posição pessoal. Ao minar constantement o prestígio de seus comandados, assassiná-los, exilá-los, transferi-los, Stalin comendava o regime perfeito para fazer com que todos trabalhassem em silêncio. Veja bem: os realizadores do filme não perceberam que a lógica stalinista é extremamente afim à lógica capitalista da insegurança absoluta. Na verdade, basta trocar Stalin por Sarkozy, por exemplo, e refazer o filme com resultados análogos.
ResponderExcluirQuanto ao programa comunista de Zizek, acho menos assustador o de István Mészáros - leia "O Século XXI - Socialismo ou barbárie?" - embora tendente à barbárie, pelo fracasso que vemos hoje dos povos em oposição ao capitalismo financeiro. Parece ser mais rentável ao capitalismo destruir o mundo do que deixar o poder, e isso com a conivência dos povos. pensando bem, Mészáros também chega a algumas conclusões bem sinistras.
Essa história do cerebralismo aplicado à música como forma matemática rigorosa rende a quintessência da abobrinha. É possível "interpretar" qualquer sequência de notas musicais como uma determinada coisa e seu exato oposto. O problema do regime stalinista com Shostakovitch é simplesmente aquilo que a Rachel já apontou sobre o filme que vimos: o negócio de Stalin era deixar claro que poderia puxar o tapete de qualquer um, independentemente da devoção ou não ao regime. O Prokofiev, por outro lado, músico muito mais aceito no ocidente, tinha trânsito mais (pero no mucho)livre por colecionar melodias russas tradicionais e transferi-las para suas pautas. Prokifiev é muito assobiável, Shostakovitch não. "Para que tanta complicação nas partituras?", rezava o realismo socialista (e o capitalista também, conforme esposinha). para encerrar, essa coisa de artista torturado também é de encher o saco; portanto, viva Mozart, viva Prokofiev, viva O Mikado!
ResponderExcluirCharlles, tudo se repete dia a dia,
ResponderExcluirdepende da distância da periferia...
Minha lucidez é continuar a cantar...
PARTILHA
by Ramiro Conceição
O combate embusteiro, entre elites!,
é que faz do humano um prisioneiro;
pois aí estão somente as armadilhas
onde se adestram todas as matilhas.
O combate verdadeiro - é a partilha.
BOLA DE GUDE
by Ramiro Conceição
Ah…,
quantos intelecas… com cascatas,
quantos édipos, lacaios e jocastas,
quantos jumentos transatlânticos,
quanta atriz-pornô-vila-madalênica,
quanto jornaleco pra limpar a bunda,
quanto jornalista metido a besta,
quanto publicitário com cabresto,
quanto big-brother-globetrotter… de cabiçulinha,
quanta celebridade com a altura e a profundidade
dum bueiro, quanta fashion week, quanta frescura
nesse monumental chiqueiro cosmopolita… Porra,
pra quê? Por grana!
FILHOS DO SOL
by Ramiro Conceição
Lembra-se daquela vez… em que, inocentes, nós
caminhávamos livremente? Lembra-se do quanto
nós brincávamos? Lembra-se… da felicidade
com que brilhávamos? Lembra-se daquela vez em
que brigamos, mas voltamos? Lembra-se… do cuidado
com que nos olhávamos? Lembra-se quando morremos?
Do quanto choramos? Do quanto oramos? Lembra-se…
da última vez que nos amamos? Pois é, éramos, somos
e seremos… os filhos do Sol.