Há duas semanas descobri por meios fortuitos onde anda um velho amigo dos tempos do colégio e da faculdade. Liguei para o número conseguido de uma secretaria de educação de uma cidadezinha do interior de Goiás, e para a mulher de pontos de exclamação compreensivos aleguei a verdade de que há vinte anos procurava o professor de história de sua instituição, Marlon Christian, hoje pai de dois filhos e que então, pelo que tudo indicava, estabelecido em um terceiro casamento cujos dez anos de duração predigalizavam permanência. A mulher me passou o número do celular do Marlon, e de imediato liguei para ele. Senti a carga de adrenalina ascender-se pelo meu corpo enquanto o celular chamava, e, quando a voz reconhecível atendeu do outro lado, me vi tomado por um ciclo de lembranças que se estivessemos cara a cara resultaria em um abraço apertado. Em vez do abraço, fiz a brincadeira usual de chamá-lo de "malandro", de "canalha", e enrolar na xaropada de "ah, mas você não sabe quem está falando?", até quase o limite de tirá-lo do sério, quando então eu disse: "aqui é o Charlles, porra!". Não senti o mesmo entusiasmo da parte dele, que se reduziu a uma recepção fria e polida com os atos de ofício das frases feitas para nunca se converterem em realidade: "nas férias você vem passar aqui em casa", "precisamos sair qualquer dia desses". Mas era o velho Marlon, eu senti. Tive a certeza por duas razões lógicas: eram duas horas da tarde de uma quarta feira e ele deveria estar no alvoroço marcial dos serviços de professor, e...falávamo-nos como se não houvessem passado 20 anos, como é característica das verdadeiras amizades que não se decompoem com os anos. Mesmo por detrás de sua frieza, havia ali o Marlon disciplinado que relia os textos da faculdade e os copiava dogmaticamente no caderno, até saber as datas e os locais de batalhas de cór, enquanto eu zombava de seu positivismo lançando-lhe minha benfazeja liberdade de poder transitar mais desapegado pelos meus autores do curso de jornalismo.
Mas houve outra coisa que me chamou a atenção em nossa conversa. Quando lhe perguntei se podíamos nos falar por algumas das redes sociais, ele me encheu de orgulho ao dizer não fazer parte de nenhuma delas. Eu estaria disposto a me filiar ao Facebook e ao Orkut, por causa dele, mas a sua negação trazia a dedução tácita de que tais instrumentos lhe eram tão indiferentes quantos os livrinhos didáticos dos anos 70 sobre Moral e Cívica. Nossas semelhanças sempre haviam sido no campo ideológico mais profundo, embora tudo acima das críticas políticas e do enorme desejo de esclarecimento fosse de um descompasso combativo digno dos piores inimigos. Mas o fato de sempre sermos avessos ao mundo_ ao "mundo que se exibe", no conceito de Whitman_, era um dos solidificantes para que pudessemos passar tardes inteiras debatendo entre nós, sem papas na lingua e sem sistematismos. O próprio celular no qual nos falávamos já era um elemento jocoso, senão pelo nonsense final de rendermo-nos a ele, pela maravilha de sermos de um tempo recente em que por cinco anos de amizade física e proximativa nunca termos nos falado nem pelo velho telefone fixo. Aquela antiga contactibilidade sem rédeas tornava automaticamente toda forma de comunicação virtual uma coisa ridícula, coisa que eu deveria ter tido a delicadeza de saber antes de perguntar-lhe sobre as redes sociais. De repente estava ali um dos simulacros da idade contra os quais venho combatendo com um relativismo veemente de antepor ao lugar comum do populacho de que "estamos ficando velhos", a visão mais coerente de que as tramas do mercado é que avançam sem consideração às delicadezas necessárias da passagem do tempo; havia algo de Buck Rogers na minha reaproximação com o Marlon: fomos congelados por duas décadas e descongelados numa época em que a adaptação aos fogos fátuos da tecnologia nos dava uma aparência de seres atrasados, risíveis e envelhecidos antes de chegarmos efetivamente à meia idade. A resposta franca do Marlon sobre sua espontânea exclusão às redes socias (coisa que eu já sabia, por tê-lo procurado pela internet) mostrava o quanto seria loucura o alarde de alguma utopia do passado em viver num mundo próprio, desconectado;ele tem sua internet para pesquisas e diversão solitária, assim como eu tenho esse blog e os sites de música esporádicos da madrugada. Era uma reação sem nenhuma coerência, mas no fundo conservávamos a séria intuição de que tudo era uma imensa bobagem, um enorme engabelamento.
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Ontem assisti ao filme sobre o Mark Zuckerberg e como não havia ninguém ao meu lado para poder medir o efeito da obra nas reações do rosto, fiquei com a forte certeza de que David Fincher usara nesse filme os recursos de mensagem subliminar que ele já havia anunciado em O Clube da Luta. Numa das cenas, o Zuckerberg sai no meio de uma aula respondendo ao pé da letra a uma questão que o professor anuncia ser indevassável até aos maiores gênios da informática. Lá para o final, o diretor usa uma versão do coro das peças elisabetanas na forma de uma das funcionárias do Facebook para fazer Zuckerberg compreender pacificamente que deve capitular um meio termo com os colegas de Harvard que se dizem roubados por ele. Na última cena, Zuckerberg, após repudiar a seu sócio-mentor por ter expulso da companhia o único amigo que tinha ( o seu famoso "amigo brasileiro"), é focado pela câmera na solidão do escritório fechado, diante à tela do notebook ligado no Facebook, tentando restabelecer um contato sempre negado com sua ex-namorada, uma espécie de rosebud perdido que não justifica espiritualmente a sua glória vazia. O Fincher que traduziu excepcionalmente bem o anarquismo terrorista dos personagens de Chuck Palahniuk na cena final de Clube da Luta em que o centro financeiro de Nova York é implodido; que criou um filme longuíssimo sobre o assassino do zodíaco cujo motivo do anticlímax e da falta de sangue foi propositalmente desmistificar a mídia expoliativa que constrói a heroística do criminoso cerebral em cima da franca mediocridade; que, por final, fez uma outra versão chorosa de Forrest Gump na fábula do velho que é consumido em si mesmo pelo retorno paulatina à juventude, à infancia, e ao desaparecimento; esse Fincher, que, como todo grande diretor hollywoodiano, tem que se render à roupagem hollywoodiana (assim como Shakespeare tinha que se render às exigências de hegemonismo inglês e carnificina ao gosto da plebe, dos magnatas financiadores de seu Globo Theatre), não deixa com isso de fazer um grande filme, parece trazer para o Rede Social um tanto desse estenuamento diante as novas formas de comunicação prestadas ao consumo hiper-exponenciado que acabresta todo mundo e tem a leveza de descartar a mínima reação contra sua imposição generalizada. Assim parece haver uma progenitura de concordância em que o olhar dos das gerações anteriores às da moderníssima e sacramentada geração atual (ou menos de meia-geração, já que a força das redes socias tem menos que dez anos de idade), vê um que de conversa fiada e farsa num projeto de um clube global de intimidade simulada criado por um pós-adolescente universitário cuja personalidade é um exemplo da atmosfera solitária e onanista do meio do qual ele deriva. Um filme com cenas engraçadinhas cheias de trivialidades redentoras, típicas das produções norte-americanas, do rock celebracionista que endossa as festas acadêmicas e o sexo dos casais de alunos no banheiro da boate, e o tema musical de encerramento com Baby You´re a Rich Man, dos Beatles, para dar à suavidade onipresente requerida pelas pesquisas de gosto e capacidade de atenção do público alvo, a impressão de que tudo, afinal, se redime por fazer parte de uma távula da moda em que o consumo é o direito democrático e impostergável de todos; mas por detrás disso há o enfado e o sentimento de que as telinhas coloridas e as amizades legalmente sem compromissos e contatos humanos são os espelhinhos e pentes que esses novos colonizadores aportados em nossa ingenuidade famélica pelo novo nos ludibriam atrás de nossos tesouros escondidos. E o que eles pedem, e o que temos a oferecer, afinal, é sincronicamente tão pouco e tão pobre, que não merece mesmo que nos cobremos uma lucidez combativa. A arte do cinema daqui para frente se alimentará muito dessa subliminaridade. Fincher adota o conceito de inteligencia de Faulkner, que disse que cavalo inteligente é aquele que se submete aos mandos do dono, mas conserva sempre um limite de liberdade além da qual ninguém lhe contorna a vontade.
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Slavoj Zizek, em seu Em Defesa das Causas Perdidas, livro em que ele reivindica o retorno depurado das velhas ideias de igualitarismo social e compreensão psicanalítica das mazelas humanas, inicia seu amplo estudo com uma análise da recente forma de niilismo moderno assinalada pelo mundo virtual. Ele salienta a precocidade de julgamentos, a superficialidade como condição inerente de qualquer debate, e a total falta de coerência que impera com uma ironia inconsciente no ciber-espaço. Como exemplos, ele cita várias ações atuais colhidas na net que, desvirtuadas da postulação de normalidade desse meio, soam estapafúrdias quando vistas sob o olhar minimamente critico fora das telas. Um dos casos de campo analisados foi a da reconciliação entre Mel Gibson e o presidente da Associação Judaica dos EUA, após o incidente em que o ator foi detido por dirigir bêbado e ter comportamento antissemita com o guarda que o prendeu. Através das mídias da internet e da televisão, os dois debatedores acabam se reconciliando, num misto de preconceitos mútuos e aberrações de supremacia racial que, na aparência requerida para a concordância e perdão, acabam sendo bem pior na desqualificação de uma etnia do que as palavras alcoolizadas do diretor de Apocalipto. Afora uma classe cada vez menos justificável de leitores capazes de interação inteligente com sentidos textuais terciários e quartenários, esse agravamento, através da trivialidade, de uma questão fundamental herdada do século passado genocida, passou batido entre a maioria que viu no gesto a boa intenção de pessoas retomadas pela coerência. Zizek também cita a incapacidade de auto-crítica do mundo atonal (o mundo já sem matizes e variações, politicamente correto a aberto a todas as acepções), que não enxerga o grotesco não espantoso mas apiedantemente sem propósito das organizações de amigos virtuais que ensejam coisas como o "masturbate-a-thon", uma maratona de masturbação com fins beneficentes que angaria verbas para "entidades destinadas à saúde sexual e reprodutiva e, como explicam os organizadores, aumentando a consciência e dissipando a vergonha e os tabus que persistem em torno dessa forma de atividade sexual tão comum, natural e segura." Esses são, no dizer de Zizek, os "últimos rebentos da liberdade sexual", a repaginação dos jovens que saíam nas praças dos grandes centros urbanos na década de 60 e confrontavam a pudicícia hipócrita da sociedade com a propagação do amor livre. O contato corporal com o outro transformado no isolamento individual diante a tela do computador e a assepcia do manejo restrito a seu próprio órgão sexual. O prazer rápido e sem externalização. Uma nova geração, pois, sem a sede por experiências vívidas e o conhecimento prático com a alteridade, mas confortavelmente instalados na alienação para dentro do virtual. Solitários ególatras que, contudo, são capazes ainda do humor totalmente involuntário de se organizarem em uma associação com fins beneficentes.
Charlles,
ResponderExcluirUma de minhas paixões é a Astronomia. Acho que ela é resultado de minha infância passada num sítio, quando não havia energia elétrica. Tínhamos o rádio, é certo, e os livros, as revistas e os jornais. Mas nada disso amenizava as noites escuras e silenciosas alongando-se na caatinga em volta (ela vem desaparecendo aos poucos, para dar lugar a pequenos trechos verdes irrigados por poços artesianos). Eu devia ter uns quatro ou cinco anos, e, quando nos reuníamos no pátio da casa principal (de meu avô), o meu único refúgio era olhar o céu e o esplendor ciciante de suas estrelas incontáveis. Eu ainda tenho esse hábito. Nunca durmo sem antes dar uma olhadinha no céu noturno. Agora, com uma diferença: imagino um pequeno artefato humano a atravessar o sistema Solar com um noturno de Chopin. Nestes momentos, eu penso no Homem como uma benção, assim como agradeço a Deus por participar deste maravilhoso mundo tecnológico, outra paixão da família. E se tem uma coisa que agradeço ao orkut, foi a oportunidade de ler tópicos de grandes doutores em boas comunidades, anotar os livros citados por eles, como assimilar os seus pensamentos, as suas idéias, rir com suas tiradas... Hoje, quase não uso o orkut, a menos que queira baixar um livro... Tenho facebook, twitter e estou aguardando pelo Google+. O twitter, por exemplo, sempre me remete a boas informações. E o centro de tudo isso, a Internet, que me permite ler este seu texto maravilhoso (pode me indicar os sites de música?). A inteligência humana é infinita, e buscará incessantemente o conhecimento. É bom ainda estar aqui, acompanhando tudo isso.
Milton Cardoso,
ResponderExcluirdeixei para falar isso nos comentários. Eu também considero a internet imprescindível e uma revolução sem tamanho na história cultural. Ganhei muito com ela, obtive maturidade em váriados níveis de minha formação como cidadão, com os amigos da rede, no crescimento intelectual, na segurança de poder falar e escrever. Não a diminuo em nenhuma discussão. Os grandes críticos da modernidade, como Zizev, Todorov e Bauman, não fazem oposição a ela, note bem. Se algum dia você se deparar com alguém dizendo que Bauman combate a internet, isso estará errado, a pessoa nunca leu ou compreendeu bastante mal ao Bauman. Esses pensadores apenas fazem o serviço inequívoco de alertar quanto ao, para ir direto ao assunto, mal uso da net ou uso substitutivo da net para a aquisição do conhecimento real. A wikipédia em vez da leitura das fontes literárias; a inércia limitada aos bons blogs em vez de seguir adiante e ler os livros comentados nos bons blogs. Direto vejo nos marcadores do meu google analytics as procuras "resenha sobre Liberdade", "resenhas sobre Faulkner", "resenhas sobre Hobsbawn"; e a emblemática procura por um texto sobre Carver que faz com que esses possíveis alunos atrás de uma cópia para o trabalho escolar ou universitário acessem todos os dias um texto meu sobre o contista norte-americano. Fui professor e isso só salienta minha experiência de que a net se tornou, para a maioria, em vez de instrumento de grande uso cultural e engrandecimento pessoal, uma arma alienizante. Só quando li Marx_ ou, melhor ainda, os críticos de Marx_ pude compreender que Marx defendia, acima da redenção proletária, a liberdade do homem em trabalhar menos e fugir da escravidão industrial, indo atrás das suas potencialidades inerentes e atrofiadas. Quando se critica a net, e sobretudo as redes sociais boçalizantes, é isso que se procura, o ensinamento real do quanto pode ser útil o universo virtual, mas não como um imperioso hipnotismo que anula todas as outras atividades evolutivas (digamos assim), mas como um complemento.
Tais sites estão na lista de meu reader. Para informações e downloads de música erudita e jazz, temos o maravilhoso blog do Milton Ribeiro e companhia, PQP Bach, basta acessá-lo pelo link do blog do Milton.
E há esses:
http://allmusic.com/
http://butseriouslyfolks11.blogspot.com/ (um dos mais completos sites para download que conheço_ tem de tudo!!!)
http://odiluvio.blogspot.com/
e o captain crawl.
http://butseriouslyfolks11.blogspot.com.br/2013/06/mariana-camila-davalos.html?zx=faee262d1f193dbc
ExcluirOi, Charlles,
ResponderExcluirPulando sobre os comentários, vi uns divertidos programas de televisão sobre a cultura dos anos 60, bem superficiais, e por isso mesmo interessantes, principalmente em um aspecto: à ausência de "redes sociais", e na maioria das vezes até mesmo de telefone e a maioria em televisão, os jovens dos anos 60, compartimentados entre uma década de repressão e monotonia (os anos 50, a grossíssimo modo) e outra de ressacav das pretensões revolucionárias mas ainda repleta de demandas e latências (os anos 70, idem) que desembocariam, afinal, na fria permissividade dos anos 80 logo sepultada pela emergência da Sida, encontraram na música a expressão de suas emoções tolhidas e sensibilidade pronta para a projeção de uma classe (o que ocorre hoje no Brasil aconteceu na Inglaterra nos primeiros anos da década de 60 - a classe operária vislumbrou a ascensão ao paraíso, nem que fosse ao paraíso do consumo), e superação de preconceitos de toda ordem, com o que John lennon podia até zombar da nobreza antes ainda tratada como descendentes dos deuses, ao pedir que os nobres postos na primeira fila de um show dos Beatles balançassem suas jóias à guisa de palmas. Bem, não vivi os anos 60, mas a ressaca a partir dos anos 80, seus desdobramentos mais reacionários nos anos 90 - em paralelo ao fiasco da democracia no Brasil- e o pós-qualquer-coisa dos anos 2000, agora com a tênue esperança que, coma crise do capitalismo global, as coisas realmente mudem. mas vejo nessas redes sociais aliados conservadores do velho sistema, e mais: que as redes terminam por cristalizar velhos preconceitos e manter tudo exatamente como sempre esteve, dando rasteiras nas esperanças daqueles que, via Internet, julgam poder suplantar os conglomerados midiáticos. isso dá uma discussão para mais de quilômetros, eu sei, a exemplo de seus textos de hoje.
Usa o Skype, Charlles?
ResponderExcluirEm caso afirmativo depois me passa o seu contato por e-mail.
Vou passar a saber como é que maneja a coisa, me inscrevo e te informo, Luiz.
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