sexta-feira, 4 de junho de 2021

Emerson

Uma das mais tocantes cenas da literatura está em Dia de Finados, de Cees Nooteboom. Um amigo dança para outro amigo enfermo em seu quarto de hospital, após este ter se recobrado de seu estado de quase morte. Sem dizer uma palavra, ele entra no quarto e, sem música, executa com extrema seriedade os passos desengonçados da dança. Dia de Finados foi um dos tantos livros que eu dei de presente para meu amigo Emerson. Semana passada, ao ouvir que Emerson tinha saído do estado grave para estável, eu fiz o plano de que, assim que ele voltasse para casa e estivesse apto a receber visita, eu iria colocar "O Pulso", dos Titãs, no meu celular, e iria dançar para ele. Eu sou um péssimo dançarino e profundamente tímido para esses arroubos, mas eu estava convicto. Imaginei algo tão ridículo quanto aquele vídeo do Houellebcq dançando no deserto. Algo me dizia que quanto mais ridículo, maior seria a catarse. Não importa quem estivesse presente, todos iriam ver o sujeito com cara de idiota, de quase dois metros de altura e 110 quilos pulando e agitando os braços enquanto a voz imponderável da música fosse elencando cada uma das doenças que teriam feito a fatal diferença se o pulso ainda não pulsasse. Eu manifestei os sintomas da covid no primeiro dia desse ano, fiquei muito, mas muito mal, a ponto de pensar mesmo que iria para a UTI. Essa é outra história e só serve aqui para dizer que, quando enfim eu pude andar mais que dez passos, eu coloquei em volume máximo "O Pulso", e ouvi umas três vezes, junto com "Todo mundo quer amor". Eu que sou paranoico em jamais perturbar os vizinhos; eu que sequer gostava dos Titãs. Andei em torno da casa chorando, e ouvindo essas músicas, que eu senti uma necessidade inexorável de escutar, sabe-se lá por quê. Eu contei isso ao Emerson, antes dele mesmo se contaminar, e aconselhei: se você pegar, se tranque em casa, tome anti-inflamatório, se alimente bem, tome muita água, e só. Mas não; sem apresentar sintomas sérios, ele ia todos os dias ao médico e, num ato colossal de desespero, ele voluntariamente se internou em um hospital a 400 quilômetros de sua casa. Ficou três dias na enfermaria, sem propósito algum e, depressivo, muito assustado, e vendo o terror de perto de um pronto-socorro em época de pandemia, a doença tomou total frente nele e o levou à UTI, à intubação. Hoje o celular me acorda com a informação de uma amiga de que o pulso do Emerson parou de pulsar. Estou todo o dia sentindo o quanto eu o amava e nem sabia, e tremo a cada vez que sinto o quanto ele me fará falta. Com quem conversar agora? Parte da minha alegria com os livros e com a música se devia a ele, à ânsia de lhe apresentar aquilo nesses campos que eu acabara de descobrir. Suas últimas palavras para a esposa, antes de ser intubado, pelo vídeo do whatsapp, foram: "Eu devia ter aproveitado melhor a vida". Suas últimas palavras para mim, na fila do banco, quando comentávamos sobre o boato de alguns dias atrás sobre ele estar mal com a covid, foram: "Mas quem sabe eu não venha a pegar? Eu vou deixar um testamento doando meus livros para você". Eu respondi: "Eu tenho todos os livros que você tem". Ele retrucou: "Tem alguns escondidos que você não tem". Respondi: "Esses não me interessam".

Um comentário: