sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Miriam


Ontem me lembrei com certo saudosismo da Miriam. Há mais de vinte anos eu fiquei desempregado e resolvi atacar os bancos. Saquei toda a grana que tinha no meu limite e gastei toda a margem do cartão de crédito. Não tinha com o que pagar e não estava nem lixando para isso. Vivi um ano de uma renda de poupança que eu tinha e desse dinheiro do banco e do cartão. Ficava em casa, dormia bêbado de madrugada e acordava todo dia depois do meio dia. Era solteiro, vivia sozinho e não tinha que prestar contas a ninguém. Daí apareceu a Miriam. Não, não era uma mulher fatal que apareceu para complicar ainda mais minha vida, mas uma funcionária da seção de cobranças do banco. Era uma terrorista esquizofrênica, para resumir. A primeira vez ela me ligou, a voz aguda, parecendo de uma das irmãs da Marge Simpson, e já direto me disse que eu era um miserável de um vagabundo e que tinha que arcar com minha dívida no banco. Eu fiquei sem resposta diante essa técnica crua de convencimento, e confesso que, pelo estágio psicológico em que estava, quase chorei. Desliguei na cara dela. Ela ligou de novo, cheia da alegria da vitória por ver que eu era um bunda mole sensível, e me disse: "E além do mais é um viadinho chupa rola de um derrotado que não aguenta a verdade na cara. Paga o banco, sua bicha!". Vi que eu tinha que adotar outro método de reação e tentei argumentar, perguntando porque ela agia assim, que não precisava me ofender. Ouvi um suspiro do outro lado, e um silêncio, crente que a havia enternecido, mas então ela disse: "Eu não sou sua mãe, seu retardado, pra ficar com pena de você. Eu não tenho nenhum filho bandido estelionatário e ladrão que dá cano em banco. É graças a merdas como você que as taxas estão tão altas nesse país, para compensar a cara de pau". E ela dizia essas coisas todas com fúria, mas sem perder a compostura. Parecia que fazia as unhas ou dava o peito para um filho (aquele que jamais seria como eu), enquanto me descascava todo. Eu é que comecei a ficar puto com aquilo, e quando devolvi na mesma moeda ela recorreu a um nível de profissionalismo tão elevado que se eu reproduzir no Facebook eu seria bloqueado por um semestre. Eu não deixava por menos, chamava ela de puth4, bisch4te, mandava ela lavar a bwc3tt4, coisas que eu nunca disse a ninguém mas um desempregado não é um ser humano então que tudo fosse para a pqp. Ela deveria ganhar muito bem ou tremendamente mal, porque me ligava todo o dia ou por excesso de eficiência reconhecida ou para descontar em mim a vida dura que tinha. Eu esperava o telefone tocar, sabendo que só podia ser ela, porque com o desemprego eu me tornei invisível e muitas pessoas só foram saber que eu não tinha morrido quando ressurgi, um ano depois, concursado. Então, paradoxalmente, eu só tinha a Miriam. Uma vez a gente estava gritando um com o outro (ela já estava apaixonada, já levava a coisa para o nível pessoal, já tinha jogado o bebê para o berço e esbravejava com aquele seio pingando leite para fora do vestido), e ela disse algo de um grau de escatologia tão abjeta, tão impossível de ser colocada no limite do verbo, que ambos paramos para reavaliar aquela joia nascida do nada e começamos a rir. Ela ria que quase chorava. Ela disse: "depois dessa não dá, eu te ligo amanhã". Eu disse: "então tá, tchau". Passaram três dias e nada dela ligar. Eu fiquei ressentido por ter talvez dito algo inconveniente, que não tivesse sido demasiadamente ofensivo, que a tivesse feito desistir de mim. Mas eis que o telefone tocou, de noite, quando eu preparava uma linguiça para comer com um pão, enquanto ouvia um cd do Doves que eu havia comprado com o dinheiro roubado do banco. "O pilantra tá aí ouvindo musiquinha de marica. Vai pagar o que você deve ao banco, seu travesti de esquina". Eu corri para abaixar o som, feliz da vida, e devolvi o xingamento colocando a moral dela em dúvida e definindo certas partes de sua fisiologia de maneira nada meritosa. Recordo que bebi as quatro doses de Caninha da Roça com Coca-Cola, me sentindo cheio de animação por ter "falado" com a Miriam, e desmaiei. Acordei no outro dia com a Ana Maria Braga narrando os atentados às Torres Gêmeas, ao vivo, e vi que o resto de esperança que eu tinha se desmoronava, o que me causou muito alívio. Eu estava com o passaporte pronto para ir aos EUA trabalhar numa empresa de distribuição de propaganda em sinal de trânsito de um tio meu, mas o Osama bin Laden havia mudado meus planos. Mesmo novamente empregado, eu nunca paguei as contas do bando e do cartão. Fiquei cinco anos livre da escravidão do crédito, até que um dia o Serasa me mandou um comunicado, dizendo que minha dívida havia expirado. E ontem, não sei por quais razões psicológicas, assistindo à série Caleidoscópio, me retornou a Miriam à memória. Vai ver porque é uma história que trata de assaltantes de banco.

9 comentários:

  1. Me veio uma lembrança agradável da sua capacidade de sentir humour, riso implacável, nas mais interessantes situações literárias. Decidi mostrar textos publicados, meus, que talvez ressoem contigo (e com nossa relação de amor e conflito, frente a nós mesmos e ao que lemos, como o quanto devo a você)

    I
    Mas, com todo esse entusiasmo pelas coisas belas e esse gênio fértil que possui, você não inventou nada?”

    Diderot

    “Cada objeto amado é o centro de um paraíso”

    Novalis

    Um materialista incurável, compilador de saberes e coeditor da Enciclopédia como Diderot e um dos pais do romantismo alemão, eivado de poeticidade e filosofia mística como Novalis tem aspectos em comum mais do que gostaríamos ou perceberíamos: Ambos consideram o espírito do homem uma comédia (mas não apenas). Tanto do desejo quanto do drama, tanto da filosofia quanto da crítica, mas também do amor. Em “A religiosa” e no “Paradoxo sobre o comediante”, respectivamente, Diderot critica fortemente a clausura da intolerância religiosa e a incapacidade do artista expressar in natura a si mesmo enquanto espelha um personagem para uma kathársis, ao mesmo tempo que é senão o próprio artista a expressar por seus meios os artifícios da poética do drama. É em O sobrinho de Rameau, sua obra mais cínica, que ele corrói as bases da burguesia em ascensão com seu ascetismo inútil ou útil para uma camada específica de usufrutos. Novalis diz que a humanidade é uma encenação, à semelhança do que diz Hamlet, mas uma encenação cômica. Para Novalis: “Humanidade é um papel humorístico”, diz ele em um dos seus aforismas. Ou mesmo: “No estado tudo é ação cênica – No povo tudo é jogo cênico. A vida do povo é um espetáculo. Escritos são os pensamentos do estado – os arquivos de sua memória”
    Mas há uma insalubridade em seus escritos que, como citei em Shakespeare (e há também em um Freud do Mal estar na civilização, suas elucubrações sobre a guerra e o totemismo), e em todo grande pensador, algo que se mescla a rigor como ambivalência: o pináculo do tragicômico. E nele está situado o erotismo, velado.

    (nota bene: o "metadrama", o drama dentro do drama em Hamlet que é organizado pelo protagnoista aparece como uma espécie de tragicomédia satírica representada na corte da Dinamarca para o atual rei, seu tio, que assassinou seu pai, fato revelado pelo espectro do pai morto no início da peça. Ora, Metadrama visando o escopo da percepção pelo tio de sua própria wickness, inocular o germe do temor de ser descoberta a perversidade do tio ao matar o próprio irmão para tomar sua esposa e seu reino, de maneira explosivamente satírica, fato que, depois dessa representação o tio percebe que Hamlet está ciente do fratricídio, erotismo velado como ódio, melancolia, inação, derrisão, vingança).

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  2. II

    “Pouco depois ele encheu de água o copo vazio e bebeu tudo de uma vez, e retomou sua lamúria anterior

    Faulkner

    “O real é relacional”

    Hegel

    Minha intenção ao redigir este texto não é seguir um rigor histórico ou filológico do desenvolvimento das noções da linguagem ou mesmo suas origens, mas passear pelos campos do signos como dentes de leão que carregam a semente de Thoth. O romantismo alemão foi um fecundo período de transformações na linguagem, com uma nova concepção de sujeito. O projeto/termo Sturm und drang (tempestade e ímpeto) cunhado por Goethe e Schiller, que não mais queriam o primado do homem que raciocina, a antropologia obsessiva da razão, mas as florescências das paixões, os êxtases e premências da trieb(impulso), como escopo de suas produções e da estética geral do movimento. O poeta romântico alemão F. Holderlin, no seu único romance, escrito a maneira epistolar, nos apresenta o protagonista Hipérion, um eremita na Grécia, homem antinômico e conflitiva, tautológic e, contemplativo: semântico. Relata numa carta cheia de tensão e lirismo certas impressões a seu amigo Belarmino sobre seu Retorno a Esmirna:
    “Minha Esmirna sedenta vestia-se das cores de meu entusiasmo [...] Como, então, se alegrava meu coração! Com que credulidade interpretava esses adoráveis hieróglifos! Esse tempo passou porém com a mesma rapidez que as bétulas na primavera” (Holderlin, 2012, p. 50)
    Os Hieróglifos, metáfora que o escritor romântico usa para designar as diferentes cores e sons que tinha que interpretar, decodificar e ao mesmo tempo fruir: linguagem. Ainda na mesma carta Holderlin (2012, p. 52) fala que, “como um lírio balançando no ar silencioso, assim vibrou, nesses seus elementos, nos ardentes sonhos com ela, meu ser”. Hipérion sente, pulsa, quer usar a linguagem como representação ou imagem da experiência em si, como ferramenta intersubjetiva de significado.
    O poeta dramático grego Sófocles canta em Antígona, filha de Édipo, a dor de uma mulher que precisa enterrar o irmão morto por traição, mas para isso deve confrontar o tirano Creonte e as leis do Estado que proíbem ao traidor o ritual fúnebre e um lugar sob a terra do lugar que traiu. Antígona, num paroxismo de desespero (depois de perder a mãe e o pai, de perder o irmão, da irmã Ismene não ter a mesma coragem que a sua e de toda a sua linhagem ser destruída pela profecia edipiana), prefere as leis divinas que, segundo ela, são eternas e superiores aos do homem e enterra o amado irmão Polinices, confrontando Creonte:

    Creonte
    “Agora, dize rápida e concisamente:
    sabias que um édito proibia aquilo?”

    Antígona
    “Sabia. Como ignoraria? Era notório.”

    Creonte
    “E te atreveste a desobedecer às leis?”

    Antígona
    “Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
    nem essas leis são as ditadas entre os homens
    pela Justiça, companheira de morada
    dos deuses infernais; e não me pareceu
    que tuas determinações tivessem força
    para impor aos mortais até a obrigação
    de transgredir normas divinas, não escritas,
    inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
    é desde os tempos mais remotos que elas vigem
    sem que ninguém possa dizer quando surgiram.
    E não seria por temer homem algum,
    nem o mais arrogante, que me arriscaria
    a ser punida pelos deuses por violá-las.
    Eu já sabia que teria de morrer
    (e como não?) antes até de o proclamares,
    mas, se me leva a morte prematuramente,
    digo que para mim só há vantagem nisso.
    Assim, cercada de infortúnios como vivo,
    a morte não seria então uma vantagem?
    Por isso, prever o destino que me espera
    é uma dor sem importância. Se tivesse
    de consentir em que ao cadáver de um dos filhos
    de minha mãe fosse negada a sepultura,
    então eu sofreria, mas não sofro agora.
    Se te pareço hoje insensata por agir
    dessa maneira, é como se eu fosse acusada
    de insensatez pelo maior dos insensatos.”
    (Sófocles, 1990, p. 219)

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  3. III

    A voltagem poética da linguagem do primeiro Goethe, do seu primeiro romance em que um Werther sufoca por um amor impossível e por não se encaixar na crescente sociedade capitalista e industrial de sua época ecoa por toda a obra do grande poeta alemão. No Fausto, primeiro tomo, o doutor exclama:
    Fausto
    “Não penso em alegrias, já to disse.
    Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo,
    Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
    Meu peito, da ânsia do saber curado,
    A dor nenhuma fugirá do mundo,
    E o que toda a humanidade é doado,
    Quero gozar no próprio Eu, a fundo,
    Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
    Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
    E, destarte, ao sei Ser ampliar meu próprio Ser,
    E, com ela, afinal, também eu perecer.”
    (Goethe, 2009, p. 383)
    A linguagem pulsa para além do homem antropocêntrico racional que se coloca a si mesmo no centro do universo, elege a Razão como instancia geradora de liberdade, moral, paz, conhecimento, mas deixa de lado os mais profundos e conflituosos questionamentos irracionais do homem, seus devaneios e figurações caóticas, reduz a estética a uma teoria sistemática do belo, relega os impulsos a um baú fechado. No modernismo e no pós-modernismo a linguagem literária colapsa e se refaz como discurso fragmentário do movimento de destruição e reconstrução dos significados. Escritores como Kafka, Woolf, Faulkner, Mann, Joyce, Bernhard, Mansfield, Proust, Beckett redefiniram os padrões da linguagem, fragmentando-a, fragmentando a si mesmos, incorporando o seu Zeitgeist, termo que Hegel (que foi u último filósofo a criar um sistema universal fechado) usou para definir o espírito de cada época. Os escritores usam a linguagem como ferramenta de deflagração, exortação ao absurdo e ao sem sentido, bem como para a necessidade de construção de sentidos. Kafka, na Carta ao Pai diz que
    “Por outro lado, também aqui você deve, da mesma maneira que eu, acreditar na sua ausência de culpa, mas precisa explicá-la pelo seu modo de ser e pelas relações históricas, e não meramente pelas circunstâncias externas;” (Kafka, 1985, p. 49)
    É preciso construir sentidos, mesmo para a culpa, para a dor, também para a linguagem, a partir de uma degeneração dos antigos valores, crenças e imperativos morais, um estado longo de Anomia, para usar um termo do sociólogo francês Durkheim, estado esse em que a sociedade se encontrava numa desordem estrutural de suas partes funcionais, gerando caos. Nos seus Diários, numa passagem de 26 de Dezembro de 1910 diz: “Meu interior se solta (por enquanto apenas superficialmente) e está pronto a deixar emergir coisas mais profundas” (Kafka, 2014, p. 126). Numa passagem do dia seguinte diz como um sujeito próximo de um colapso que “Minha força já não basta para mais uma única frase.” (Kafka, 2014, p. 126). Mas a sensação do sujeito pós-moderno é mais que angústia, é desamparo:
    “Essa sensação de falsidade que tenho ao escrever poderia ser representada pela imagem de alguém que, diante de dois buracos no chão, espera por uma aparição que só pode sair do buraco direito. Porém, enquanto precisamente este se mantém sob uma tampa pouco visível, do esquerdo se levanta uma aparição atrás da outra, busca atrair o olhar para si e por fim o consegue sem esforço devido a seu tamanho crescente, que, por fim, cobre inclusive a abertura correta, por mais que se procure impedi-lo.” (Kafka, 2014, p. 270)
    O sujeito pós-moderno mede o pulso, olha a bula como a bíblia, vive a nova Torre de Babel, o novo dilúvio que desconstrói os significados gravados nas montanhas do saber científico, nos prados das crenças imutáveis, nas florestas das cores e formas conhecidas.

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  4. Mais uma errata rs: foi O último filósofo”

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    1. Grato. Tenho certeza que se desse uma chance a Diderot e Voltaire, suas obras literárias e críticas, satíricas e questionadoras, teria um deleite semelhante ao riso, mas dessa vez flagrante. O Cândido ou o Otimismo, ferrenha sátira contra a crença do “tudo concorre para o melhor”, quando na verdade se não cuidarmos dos constantes infortúnios, esses sim constantes, plantarmos nosso próprio jardim e cultivá-lo, como usa Voltaire esse trecho como símile da atividade frente ao caos, ou mesmo seu Zadig ou o Destino e as Cartas Filosóficas, textos que um Borges é um Faulkner amavam, Borges especialmente os contos de Voltaire. Se desse uma chance ao Jacques, o fatalista e seu amo, do Diderot, obra engraçadíssima que desvela nossas muletas num além “onde tudo está escrito nas estrelas”, palavras de Jacques, protagonista, que justifica os acasos fulminantes com essa assertiva, tudo muito divertido mas extremamente filosófico, mas concebido por Diderot como um diálogo cômico como seu O sobrinho de Rameau, o cinismo explosivo do protagonista que é… um merda que se escora nos ricões da burguesia e questiona os valores e os afirma e os quesriona, ao sabor de como seu interlocutor o interpreta. Uma crítica aos valores hipócritas em
      que tenta se sustentar uma sociedade (vide o bolsonarismo). Vejo que teria semelhante prazer
      que teve com Rabelais, ainda que este último seja de fato um talento à parte. Chegaste a ler o volume dois que saiu recentemente das obras completas pela 34 (1ano depois do volume primeiro, dessa vez contando 3 livros de pantagruelimso). Que achou dele?

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  5. Errata: um Borges e um Faulkner. Maldito corretor

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  6. Um Voltaire absorvido pela genialidade de Empédocles e as Aporias de Platão;


    “Mas é preciso cultivar nosso jardim”

    Voltaire

    “Conhece-te a ti mesmo”

    Sócrates (Delfos e seu oráculo, Sócrates e seu Dáimon)

    O Cândido ou o Otimismo de Voltaire é uma vertiginosa e veloz viagem pelo mundo, de Westfália a Eldorado, de Portugal à Espanha, da América a França, em dias, uma Kinésis narrativa sem precedentes, onde Cândido, o otimista, passa a perceber que o seu mestre Pangloss estava entregue a uma ilusão, a uma portentosa quimera metafísica (que não faz de modo algum jus a uma crítica séria a filosofia de Leibniz, óbvia intenção, entre outras, do texto de Voltaire: a sátira a teoria da harmonia estabelecida por Leibniz onde todo o mal, físico e moral, é uma ilusão, visto que tudo concorre harmoniosamente (monadologia) num universo múltiplo onde cada mínima parte (as mônadas) são diferentes entre si e comportam o universo inteiro em cada uma, de diferentes maneiras, sem serem afetadas externamente entre si, todo seu poder vindo internamente, numa dança de harmonia pré-estabelecida onde mesmo as catástrofes concorrem para o melhor dos mundos possíveis, parcamente elucidando a complexa teoria do filósofo alemão, que permanecerá incompreendido ainda por muito tempo ou indefinidamente.
    Sócrates exerce a atividade da aporia, por meio da dialética, desatando os nós do senso comum e partindo do princípio, geral entre os gregos, de que a phýsis está aí para ser desvelada, se mostra para o uso da razão ou para o engano dos sentidos, se mostra (Alethéia) enquanto existência, regida pelo Nous (inteligência) que ordena os eventos ontológicos (expresso em Aristóteles enquanto Kosmos, universo ordenado, conceito anterior à ele, contudo fortemente presente na sua Física), cabendo a nós mesmos relembrar o que foi esquecido (Platão: Fédon, Mênon, República, Teeteto). Mas é um filósofo da natureza anterior a esses baluartes que argumenta, fortemente criticado por Sócrates e seus sucessores, que tudo resulta da mistura de quatro elementos primordiais (água, terra, fogo e ar), combinando e desintegrando as múltiplas manifestações da existência sob dois princípios básicos: a Philia (amor, amizade) e Neikos (ódio). Problemática que aparecerá, direta ou idiretamente, (não apenas o pensamento de Empédocles mas o pré-socrático de maneira ampla) no Protágoras, no Górgias, do Filebo, no Lísis, no Teeteto, na República, no Sofista, todos produtos da dialética de Platão, para citar os mais flagrantes textos contra os sofistas e contra ou complementando os filósofos da natureza (como são exuberantes os argumentos de Empédocles e dos pré-socráticos, ao seu modo de arrebatamento filosófico para uma tentativa de desvelamento da verdade)

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