sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Tamanho presente tão belo



Não se sabe seu nome. Foi reportado em algum lugar, no frenetismo das notícias que acompanharam a grande foto do dia de seu corpo deitado na praia, a foto que junto com o café da manhã da cracolândia ocidental serviu para lubrificar e preparar as emoções para as tocantes conversas que renderiam mais tarde com os colegas de serviço. Não é um problema; sua falta de identidade condiz com a resolução amplamente aceita de que o tratem de agora para frente como "o menino sírio". É um título em premente promessa para futuros produtos os quais se emite desde já o agradecimento por ter ofertado tamanho presente tão belo. Não é todo dia que se tem uma foto assim. Neste mundo carente de ineditismos, saturado de tudo que já foi visto e imaginado, a foto de um bebê branco morto na praia é recebida com inexorável gratidão diante o imediato reconhecimento de uma obra-prima. Esse é o Evento, a marca do Grande outro, o instante capital lúdico, a distribuição enfim generosa da rotinização do carisma, ou que queiram mais os vazios termos ortodoxos. Espera-se na superfície consciente de todo receptor que seja dado um prêmio para o fotógrafo. Que momento exultante: a hora recíproca em que se vê uma foto histórica, estampada na página digital entre as vadias informações monótonas da corrupção corriqueira. A menina nua do napalm, o menino africano antes de se tornar alimento para o abutre expectante, o homem segundos antes de receber o tiro na cabeça por seu executor_ a procissão é longa_, e agora, o menino sírio estendido de bruços na praia. Que detalhe deliciosamente recolhedor seus sapatinhos tornados absurdos pela gratuidade de ainda estarem fincados nos pés, as canelinhas albas ainda rescendentes. Parece com o fogo na lareira no final da noite. Sente-se a comichão e anota-se na agenda: ouvir Bach acompanhado com uma garrafa de vinho à noite. Lá pelas altas horas recitar Eliot e Whitman. Que dia especial foi ontem_ ou isso aconteceu antes de ontem?, ou foi na segunda? Acenderam os cigarrinhos e verteram as xícaras, as pausas ocupadas pela menção de sua herança, a herança de alguém que nunca passará dos três anos de existência e que nunca terá nome, mas já é imortal. A cadência global dos olhos, quase sincronizada nas webcams, uma genuflexão ligeira antes de se digitar a próxima doce frase de compaixão nos smartphones: porra, uma criança não! Mesmo assim vou agora procurar seu nome. Procuro abaixo da manchete Maioria dos bilionários é paulista, acima do vaticínio de O mundo é dos fazedores. Aylan Kurdi, é esse seu nome. O mundo não iria parar pela morte de Aylan Kurdi. Aylan Kurdi ao menos não será popular no Whatsapp, que só propaga interesses específicos menos clamorosos. Aylan Kurdi reforça com seus meros três anos de vida que todo livro de história é um pesadelo, sendo que todo livro de história hoje, para um ocidente de viciados dirigidos por teclas de ódio, choro, indignação e risos convulsivos, é de uma total inutilidade. Aylan Kurdi não interromperá o fluxo da história e o interesse sem perdas de tempo para compaixões da minuciosa política econômica. O homem sentimental instantâneo, dicotômico, instável e infantilmente passional não deixará de comprar tênis e gasolina, se alguma vez for revelado que a causa da morte de Aylan Kurdi foi a venda disseminada em péssimas condições humanas de tênis e gasolina; embora a causa mortis seja um tanto complexa na rede de derivações sem fim para que tênis e gasolina ainda possam ocupar seus lugares no banco dos réus. É por ser tão complicado que Aylan Kurdi não pode ter um nome: toda nossa intuitiva culpa conjunta e toda nossa alienação de drogados que só vivem o instante se anula no sentimentalismo catártico de devido e saudável tamanho do anonimato do menino sírio.

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