Domingo passado morreu um antigo amigo meu da faculdade. Eu fazia História e ele Letras. Nós fomos dessa classe improvável de amigos que não tinham nada em comum. Aliás, éramos os opostos perfeitos. Eu o cerebral, ele o intuitivo-emocional; eu o cara de constituição taurina, ele frágil e pouco beirando o raquitismo; eu o anti-social, ele o inteirado em todas as discussões e conversas sociais. Eu sou heterossexual por nascimento e pela inexorável prova empírica, ele havia assumido a homossexualidade unívoca fazia uns seis anos. E nos conhecemos através desse detalhe último, pois foi fruto de uma brincadeira que um amigo meu me deixou a sós com ele numa mesa de bar para que houvesse a inspiração pública de que estávamos em um affair romântico. Não nego que fiquei um tanto desconcertado e incomodado, pois não ia com a cara dele, não por sua homossexualidade, mas por ser um notório dançarino em todas as ocasiões culturais em que me passava a imagem de exibicionismo gratuito. Nos palcos eu não conseguia ver senão um rapaz abaixo do peso com tremeliques exagerados, fitas coloridas e braços estendidos para o céu em louvor sem sentido. Era um dia de semana à noite e por aquele bar passava a via pública principal da cidade, e estávamos na mesa da esquina mais visível. Eu já ouvia a transmissão de alguns amigos da onça da suspeita de que deveria haver algo de errado com minha sexualidade, pois eu purgava uns anos voluntários de solteirice e não aparecia mais em festas ou eventos noturnos_ passava por um misantropismo que me cheirava cada vez mais a depressão, mas eu não admitia isso devido ao meu real misantropismo que era avesso a doenças sociais comezinhas.
Ulisses era o nome dele. Coincidência que seja Ulisses, que remeta à obra de Joyce, que tão presente está nestas últimas semanas na minha vida digital. Mas não é mentira, não há nenhum simbolismo neste texto, nem a mínima pretensão de choque final ou surpresas. Ele se chamava Ulisses. Nessa mesa de bar passamos uma hora conversando e rindo desbragadamente, vai ver por estar pesando essa minha solidão toda e eu estar fragilizado demais para recusar o escape oferecido de conversar com alguém autêntico. Nada de conversas sobre moldes previsíveis. Cheguei a confessar para ele, naquela noite, que o achava um dançarino miserável de ruim. Ele riu e disse que vai ver era mesmo, mas a dança era a vida dele e ele sabia que jamais poderia se profissionalizar e que logo a vida o levaria para longe daquilo, e que seu tempo era o da universidade. Dançava desesperado e toscamente como alguém que invade uma padaria de madrugada e come quinze sonhos de uma vez ao ouvir as sirenes das viaturas se aproximando. Não foi isso que ele disse, mas me veio essa imagem na cabeça. Em Ulisses nada era afrontoso, ele seria incapaz de me responder no mesmo grau de depreciação que eu havia feito na minha crítica. Ele era extremamente gentil e naturalmente cauteloso, tinha um jeito de cruzar os braços e olhar em torno, em alguma íntima deferência e um pessoal conhecimento do mundo, que revelava que tinha um espírito muito mais velho que sua idade biológica. Em suma, não era um idiota, e a força dessa certeza transbordava com toda a sua segurança de forma a que ele fosse querido por todo mundo, mesmo quando descoloria os pelos das pernas e pintava os cabelos. Numa sociedade ultra-machista como a dos interiores brasileiros, essa estampa poderia causar um repulsa que passava da linha do escárnio para o perigo físico, mas ele tinha acesso livre a todos os ambientes e ninguém nunca se dirigia a ele com pejorativismos. Era um veado consagrado pelo respeito público, e era tão afetivamente solitário naquela época quanto eu.
Não vou me alongar mais. Escrevo isso aqui às pressas por ter pensado em Ulisses a noite inteira, e vou chegar atrasado ao serviço por conta deste post. Ele merecia maior concentração da minha parte, mas quem sabe num futuro conto, em que eu possa decantar mais os sentimentos, as apreensões. A morte dele chegou de supetão. Fazia bem uns dois anos que não nos víamos mais. Realmente, a fase pós-universidade dele o cambiou para outros rumos. Ele teve que procurar emprego na capital, e pulava de um serviço a outro, pela força das circunstâncias. Sua última ocupação, fiquei sabendo depois, foi a de vendedor de consórcios de moto. Passou por duas cirurgias cardíacas de sucesso, mas no domingo, um abcesso dentário desceu pela corrente sanguínea a o matou em seu coração fragilizado. No domingo morreu, mas purgou uma semana na UTI de um hospital. Eu não fiquei sabendo de nada disso, e minha esposa que viu pelo Facebook o anúncio de sua morte. Um abcesso dentário! Uma vizinha minha, de 68 anos, passou pela mesma cirurgia cardíaca dele, e saiu andando depois. E um abcesso dentário vai e mata um sujeito que mal completara 31 anos.
Eu tenho dois molares inferiores quebrados que sempre respondem com abcessos, e ontem fui ao dentista para, finalmente, tratá-los. Contei que ia ali por causa do Ulisses. A esposa do dentista era grande amiga do Ulisses. O tratamento se iniciará amanhã e eu já o paguei. Absurdamente caro. Mais um aspecto de nossa cultura de inércias inquestionadas. Lembrei de todo o meu martírio infantil em salas tenebrosas de dentistas que, seguramente, não tinham formalização no Conselho, por serem os mais compatíveis à renda financeira de minha mãe. Pensei no sorriso desdentado de meu pai, na fase final de sua vida_ o largo sorriso bonito sem os molares, que me ficou na lembrança com tanto irradiante amor. Para coisas assim servem nosso realismo frio cotidiano, para que ao me sentar na cadeira do dentista, seja apenas alguém sentado numa cadeira de dentista, e não um elo cronológico cheio de significados subliminares numa corrente de relativos privilegiados e despossuídos.
Engraçado que noutro dia, em meio a uma conversa, alguém falou sobre mortes absurdas. Para um ser humano toda morte é absurda, é abjeta. Voltou a velha referência dos intelectuais sobre uma morte absurda, a de Roland Barthes, atropelado por uma bicicleta. Até para falar de mortes absurdas alguém sace a referência "culta". Como dizem os mais velhos, nada no mundo pode nos surpreender (resisto aqui a uma citação culta), mas acabo de descobrir que sim. algo surpreende: "viu pelo Facebook o anúncio de sua morte". Pelo Facebook. A morte de um dançarino vendedor de consórcios. O mais interessante nessa cadeia de absurdos é que absurdo mesmo não há; no entanto, mesmo assim, nos surpreendemos.
ResponderExcluirEu me surpreendi. Sempre me surpreendo com essas coisas. Tagore escreveu que é preciso muita coisa para matar um homem. Levo essa frase como um de meus enigmas. É um paradoxo, por certo. Bob Marley morreu das consequências de uma fístula no pé, é outro exemplo um tanto pueril.
ExcluirTenho amigos dentistas e quantas vezes os ouvi dizer que a saúde começa pela boca. Sempre encarei apenas como um chavão profissional. Inacreditável perder um amigo desse jeito. Meus sentimentos.
ResponderExcluirObrigado, Caminhante.
ExcluirE aquele ranço? Amigo viado, morreu por causa da Aids. Necas. Fico a imaginar a dança com fitinhas coloridas. Um mimo. Pobre Ulisses, que nem lembra Homero, mas Joyce.
ResponderExcluirNão tendo a sentimentalismos, mas talvez a coisa mais destacável nele era que ele era abençoadamente não-literário.
Excluir"Dançava desesperado e toscamente como alguém que invade uma padaria de madrugada e come quinze sonhos de uma vez ao ouvir as sirenes das viaturas se aproximando."
ResponderExcluirnão isso, mas me lembrou o renato russo dançando (não resisto a uma referência popular)
minha esposa é dentista, mas pelo menos aqui no RS temos profissionais demais pra poucas bocas, bem acima do recomendado pela OMS. de modo q a bi vive pulando de um emprego pra outro (pois não temos grana pra pôr uma clínica), saindo sempre qdo começam a explorá-la, o q por conseguinte exploraria o paciente. brabo é q ela tem mtos colegas q se submetem e não tratam, fingem q tratam, ganhando uma merreca.
tbm sinto pelo teu amigo. essa conversa de vcs aí, boa inveja aqui.