(Publicado hoje no Sul 21)
Eu cheguei a Homem Invisível através de uma dessas tantas listas dos dez melhores romances do século XX. Conhecia e havia lido boa parte dos outros títulos da lista, os Mann, os Kafka, os Faulkner, os Joyce, mas nunca nem ouvira falar do romance cujo título soava como os de ficção científica e era assinado por um tal de Ralph Ellison que me era um completo desconhecido. Na época, eu tinha lá os meus 25 anos e a onisciência disponibilizadora da internet ainda não era uma realidade, de forma que eu não tinha como obter mais informações sobre o livro além de rápidas notas em revistas desencavadas de caixas empoeiradas de bibliotecas públicas e uma coluna de reverência acadêmica de uma enciclopédia que ressaltava ser Ellison o maior escritor negro da América, e seu único romance um libelo contra a discriminação racial. Não eram informações que me despertavam maior interesse pela leitura da obra, devido o proselitismo e o acento de correção política que poderia nada ter de real valor literário; parecia uma concessão. A grande sorte é que eu já investira parte de meu tempo no conhecimento dos grandes escritores e sabia que nas mãos deles, até um panfleto se transformava em alta expressão espiritual, e me ajudava saber que a academia e a maçonaria dos professores de letras faziam seu papel de sistematizar ao extremo a leitura até torná-la uma substância temerosa e destituída de prazer, e suas catalogações insípidas de borboletas literárias não escondiam o mérito da obra por sua canonização pelo gosto de leitores sinceros.
Comprei um exemplar de Homem Invisível, o último da livraria, publicado pela Marco Zero, em ótima tradução assinada por uma tal de Márcia Serra. Foi uma das raras aquisições em que a expectativa formada correspondeu milimetricamente ao que o livro tinha para oferecer. Há alguns anos eu dedicara uma semana de férias a devorar Os Possessos em uma biblioteca pública, o romance baluarte de Dostoiévski que era quase impossível de se encontrar no mercado editorial brasileiro (a tradução da editora 34 era uma ideia em formação em idos de 1995), e aquele volume duplo português encadernado em vermelho e com pranchas internas mostrando rascunhos do autor com seus desenhos distraídos de mujiques barbudos na beirada das páginas, mesmo pessimamente traduzido, foi o equivalente a um ferro em brasa gravando em mim a beleza cruel que a ficção era incumbida de oferecer em sua elevada concepção da natureza humana, em nada bajuladora, e sua capacidade de ser ainda uma carreadora de primeiro nível da percepção profunda da História e da Filosofia. Então, eu esperava encontrar a mesma natureza sanguínea e violenta, o mesmo turbilhão de olho do furacão, em Homem Invisível, pois a ele era atribuído o panfletarismo libertário que outrora fora equivocadamente atribuído ao romance de Dostoiévski: e sendo que no russo eu descobrira algo desoladamente lúcido no lugar da propaganda oficial que se fazia deste seu romance. E lendo Homem Invisível, nos eufóricos três dias intensos em que não consegui fazer mais nada que me lançar nele, deparei-me ali com a mesma falta de pudor de Os Possessos, a mesma ausência absoluta de intenção em agradar, em ser digerível, em ser ameno.
Homem Invisível está tão distante de ser um panfleto de luta racial quanto Os Possessos está de ser uma cartilha marxista sobre a revolução de classe. Ambos podem ser lidos em negativo de tudo que superficialmente são tidos como apologistas de determinados setores formados da exclusão. Homem Invisível, com aqueles primeiros parágrafos antológicos, de enorme beleza, começa por afrontar um tipo de exclusão espiritual que vai muito além das circunvoluções dos conflitos raciais dos Estados Unidos, afundando-se na ferida de que a discriminação violenta tida por sobre uma raça não a distingue como determinada à nobreza do estoicismo ou à dignidade dos mártires. O narrador, contudo, aponta sua invisibilidade social tanto devido à sua cor quanto ao atraso espiritual que o pior crime da discriminação racial determina: a inércia acomodada de ambos os lados da repressão, que gera a promiscuidade e o animalismo. E no contraste entre tema e tom da narrativa que está a força incomensurável desse livro: a prosa de Homem Invisível é a melhor, a mais bem composta, a mais elevada e nietzschiana, a mais bombástica e musical da exigente prosa norte-americana do século passado. Cada parágrafo é intenso de luz verbal, em uma história movimentada que apresenta dezenas de personagens e situações inusitadas desenhadas no cenário de submundo e de constantes e disparatados movimentos sociais norte-americanos. Dizer sobre o contexto político de uma obra é desmotivar a leitura dela: Homem Invisível é antes um romanção de primeira, de mexer com o leitor na poltrona, de não se conseguir despegá-lo até o fim da leitura, daqueles livros que verdadeiramente nos transformam, e isso nada tem a ver com uma visão específica sobre partidarismo político. Sua carga filosófica e sua acentuada verdade incondicional é o que sobressai da voz frenética e concentrada do narrador, e depois desta jornada que pouco se dá tempo para a respiração tranquila, o narrador encerra com a mesma poesia magnífica ao anunciar: "quem sabe se, em esferas mais baixas, eu não esteja falando sobre vocês?".
O mercado editorial nacional, um dos melhores e mais dedicados do mundo, vem cometendo uma grande injustiça com esse romance de Ellison, que deveria ter por aqui uma edição bonita, com ensaios sobre a obra feita por outros autores (o de Saul Bellow, por exemplo), e a promoção devida para diminuir o desconhecimento entre os leitores brasileiros dessa obra capital.
Agora entendi porque quase entrei no texto. O livro que eu não consegui continuar.
ResponderExcluirO paradoxo do livro que você não conseguiu terminar por achá-lo excessivamente bom, diga-se.
ExcluirClaro que não é "O meu melhor livro", mas um dos 5.
Acredito que esta apresentação apaixonada, Charlles, seja um bom motivo para ler o livro. Fiz uma tur pela Net e achei apenas um exemplar na Estante. Como você bem fala no texto, caro Charlles, poucos leitores brasileiros já tiveram acesso à obra.
ResponderExcluirGratificante experiência literária, Carlinus!
ExcluirSurpreso com a escolha do livro mas não com o seu tratamento do autor. É gratificante que Ralph Ellison não seja feito no maior escritor African-American ou algo que o valha.
ResponderExcluirPor aqui ele graça em coletâneas de grandes novelas existencialistas.
Ellison e James Baldwin, embora conheça bem o segundo e pouco do primeiro, são muito maiores que essa bobagem da African-American Renaissance.
Falando na racialização da literatura acabei de ler nesse fim-de-semana o Human Stain do Roth (o último da série sobre o Zuckerman, não?). Achei-o bem aguado, sinto. Já tinha notado no Roth essa tendência dele de ajuntar o destino dos judeus ao dos negros Americanos. Mas ele foi um pouco longe demais em transformar o negro Coleman Silk no reitor Judeu de Athena College.
Pleople are not grey, Mr. Roth.
A Marca Humana não é um de meus preferidos do Roth, ainda que tenha partes ali excessivamente boas (a paixão recalcada de uma das professoras pelo Silk, por exemplo, rende páginas de ótima prosa), ainda que outras alongadas desnecessariamente (como a dedicação pelo boxe do Silk criança_ um dos defeitos de Roth é seu certo pedantismo em explorar exaustivamente determinada nuance da narrativa, o que rendeu um romance inteiro muito aclamado mas que a mim é o seu pior, o The Plot Against America).
ExcluirDa trilogia eu gostei do menos festejado deles, o Casei com um comunista. Mas... eu também achava uma forçação de barra tremenda essa coincidência toda da trama de Marca Humana, até descobrir que ela é baseada em fatos reais. Realmente houve um reitor universitário judeu discriminado nos EUA por suas raízes negras.
Ah! Outra parte muito boa deste romance é a da amante de Silk e as relações de isolamento auto-imposto contra um mundo violento de sua declaração de analfabeta. Tocante!
A grandeza de Roth, penso, está nesta similitude com autores que foram notoriamente falíveis em seus tempos, como Dostoiévski, mas que a posteridade elegeram como imprescindíveis. Roth tem lá os seus defeitos e cacoetes, mas é brilhante.
Nunca pensei em Ellison como autor negro. Assim como não penso em Nooteboom como um autor branco. E mesmo_ vai parecer populismo_, nunca pensei em Atwood como uma mulher. Cultivei uma ingenuidade involuntária desde a infância em não deixar que esses detalhes usados por escolas das políticas da ditas minorias intrometesse no prazer da leitura. E não cultivo nenhuma culpa ou auto-acusação de alienação que os demônios atrás da minha orelha queiram arremedar da leitura dos mais radicais sobre essa singela declaração.
Claro que Ellison oferece uma ampla leitura racial, se o leitor se propõe a isso. Acho que você deve se lembrar do caloroso debate lá no antigo blog do Idelber, sobre Monteiro Lobato e racismo; eu dei os meus pitacos usando um pseudônimo (Marcelo, acho), e citei o Ellison. Tenho a felicidade de conhecer-lo profundamente (tenho-o no original, ainda que só lido nos trechos mais representativos), pois a autora do post respondeu a meu comentário querendo vencer meus argumentos através de notícias fáceis procuradas às pressas sobre o ativismo de Ellison. Neste livro, como eu disse, Ellison ataca as consequências da discriminação: a ignorância, a promiscuidade, a violência triplicada dada em troca. A parte inicial do romance descreve uma família de negros cujo pai violenta as filhas e diz que isso é um costuma. Ellison carrega na linguagem oral, pintando este negro com erros de fala, com uma astúcia demoníaca disfarçada pela máscara da simploriedade piedosa. Um livro como esse, escrito no Brasil, seria queimado em praça pública, e seu autor processado e preso. Mas isso é outra história...
Excluir"Nunca pensei em Ellison como autor negro."
ResponderExcluirExiste algo muito significativo nessa observação sua. A racialização da literatura acaba por transformar as letras em simplismos de cor, de tons de branco ou preto.
Mas ao mesmo tempo é forçoso esquecer-se do contexto de obras como o Invisible Man do Ellison. Mais forçoso ainda seria desbotar todo o calor do civil rights movement que alimenta a obra de James Baldwin.
Sei lá. Eu não consigo comprar a retórica do Dean Silk. Retórica que é a mesma, posso jurar, do Roth. A de que existe uma leitura incontaminada, humanística, das letras. É claro que ler Hipólito de Eurípides, a tragédia mais Freudiana se alguma há, a contra-pelo dela, a fim de se denunciar a misoginia de Eurípides, da sociedade Ateniense do século V BCE... claro que isso tudo é no mínimo muito tolo.
Mas não há retorno para o mundo anterior a Said, ou há?
Penso em Ellison como um dos autores faulkerianos apontados por Harold Bloom. Faulkner tem belíssimas obras em que um dos temas recorrentes é a discriminação contra os negros; e a genialidade de Faulkner concebeu um dos melhores contos do século passado, Red Leaves, em que, naquele nível de sarcasmo desmistificador do autor, os negros são mostrados como proto-revolucionários que usam de suas tradições para o trabalho pesado para vencer uma sociedade em que os índios indolentes e gordos são os tiranos dominadores. A cena final, antológica, é a da descoberta do negro fugitivo atocaiado em uma cova de terra, e seu convite meio que generoso pelos índios armados para que venha para ser executado. O homem invisível de Elisson é negro por um acaso histórico incontornável e que não se pode ignorar, claro; mas leia o romance: ele é massacrado da mesma maneira pelos outros negros, que não possuem nenhuma coerência harmônica como grupo identitário, a não ser o ódio disparado pelos líderes raciais mais toscos e maus intencionados, como o é pelos brancos.
ExcluirLevianamente peguei o Microcosmos do Magri para ler hoje, e tive que suspender minhas outras leituras aí do lado (inclusive o Abe), diante a maravilha desse livro, da música incrível da prosa desse italiano fantástic. Talvez eu é que esteja entrando numa de pós-niilismo doce, completamente desacreditado dessas velhas e inúteis pendengas, e veja que ódio traz mais ódio. (Cansei de ouvir um amigo meu cantar as honras do homem do campo e sua pura vida livre, e acentuei a quantidade visível de estupros e animalismo que vem da ignorância do "camponês" brasileiro, sua brutalidade elevada a instâncias de tradição sagrada, sua natureza arredia à cultura e ao conhecimento, o que ele demonstrou ter ficado chocado e magoado.) O que eu vejo é que por detrás destes combates raciais há muita cantilena vaidosa e nada de disposição sincera para a promoção da paz e da igualidade. Por que eu citei Magris? Pois achei um retrato desse meu pesar nestas palavras:
"Nessa prosa, Voghera escreve seu caleidoscópio, celebra as inúteis virtudes de um universo do funcionalismo, metódica precisão e assiduidades dedicadas ao nada; descreve o processo de antisseleção ética que inevitavelmente leva os piores para a ponte de comando da sociedade e da história; conta das ciências que se aventuram nos meandros da alma, como a psicanálise, desvelando verdades tortuosas que logo se tornam banais e cruéis equívocos na comédia da existência; revoca os anos de exílio e a guerra na Palestina, uma guerra que para ele foi sobretudo fadiga grave e paciente. Seu olhar sobre o mundo, desencantado e cheio de piedade, parece provir de outro planeta; a contemplação do caos arranca fés e ilusões, mas não boas maneiras, limpeza de estilo e aquele melancólico respeito oitocentista que é uma das formas da bondade."