terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Selo da Obra de Arte Imediatamente Reconhecível



Li num blog de uma psicóloga que raramento frequento que ela viajava pelos céus de Nova York em retorno ao Brasil em companhia do livrão de Ashley Khan sobre Kind of Blue e ouvindo pelos fones de ouvido o álbum Tarantella, de Lars Danielsson. A beleza que seus sentidos foram agraciados com esse material não a desviou da questão estético-filosófica de o que define que determinada obra de determinado artista seja imediatamente distinguida do restante de sua obra como a obra seminal inquestionável; ela coloca o exemplo: o que faz que Kind of Blue, o álbum tido como o melhor de Miles Davis e uma das mais maravilhosas músicas do século XX seja superior a My Funny Valentine, do mesmo Miles (embora eu ache tal comparação pouco simétrica, visto Valentine ser uma compilação ao vivo e um rebento inevitável do Kind of Blue, não havendo possibilidade que algum dia existisse se a trupe de Miles, Cannonball e Coltrane não houvesse parido o Grande Disco_ eu colocaria aqui Milestones, como modelo de substituição à altura), e por que ela, ao ouvir Tarantella, o achava tão visceralmente impactante de beleza, apesar do canonizável de Danielsson estar em Pasodoble.

Trata-se de uma questão que me envolve em divagações do mesmo tipo, e remeteu a procurar imposturas e truques da sempre famigerada indústria cultural que institui a linha de consumo programado para os objetos da arte. Ou seja: quem garante que Kind of Blue seja mesmo a súmula da genialidade de Miles?; quem institucionalizou isso?; Khan faz parte dessa perfídia industrial por escrever um livro justo sobre esse álbum, ou ele realmente é um dos que apreenderam sem culpa a superioridade desta obra?; e no ramo literário, recheado de possíveis esquemas de consumo do mesmo tipo, o que faz de obras quase ilegíveis serem tidas como as mais representativas e indispensáveis?; por que, por exemplo, os críticos citam O Som e a Fúria, de Faulkner_ uma das soluções sem muito mistério dessa questão_, sendo que tal romance, pelo menos para mim, sempre me venceu nas primeiras páginas e eu, que sou um apaixonado convicto de Faulkner, nunca consegui terminar sua leitura?

O aprofundamento no tema levaria a imensidões mais delicadas, que não pretendo esbarrar aqui (coisas do tipo: por que nossa literatura é tão inexpressiva aos olhos exteriores, ela será realmente inferior a de outros países?, e, qual o valor de Chico Buarque?). O que quero esboçar neste texto é que existem sim obras imediatamente reconhecidas como superiores, ao menos no terreno da música, e isso está longe de ser facilmente explicável. Kind of Blue é, trocando em miúdos e cortando o papo furado, meu álbum preferido do Miles Davis. Por mais que eu o tenha ouvido_e o ouvi cinco milhões de vezes_, ainda o fastio não me nublou a verdade de que este álbum é um tanto mais nobre, angelical, demoníaco, sofisticado e intenso de uma maneira única que as  demais produções também geniais de Miles não o são. E acredito que exista aqui uma espécie não-verbalizável de vox populi que confere esse selo ao álbum, e não os conceitos de entendidos de que inaugurou o jazz modal, ou fez avançar milhas a técnica de manufaturar essa música. Eu fiquei conhecendo Tarantella através do post da tal blogueira psicóloga; fiz o download com os orixás virtuais e coloquei aqui para rolar, e a casa nestes três dias ficou tomada, criança, mulher e pseudo-intelectual regalados em seus tapetes viajando ao contrabaixo do magnífico Danielsson, com um trompete que bebeu no seio farto de In A Silent Way.

E é isso, essa facilidade de reconhecer o sublime (bela palavra, apesar de ser uma das putas da gramática, ó pena!), que faz Kind of Blue melhor que Milestones. Minha esposa não se identifica com o jazz, mas quando ouve Kind of Blue, algo se cala nela; já coloquei à prova amigos não-jazzistas que se enterneceram com o disco. Um roqueiro brasileiro tentou definir a incógnita, afirmando que Kind não é jazz, mas uma música universal; o mesmo que foi dito sobre outra obra capital de Miles, Bitches Brew. Talvez a resposta seja que Kind é uma dessas coisas que acontecem quando o artista tem uma espécie de intuição mediúnica que o aproxima perigosamente do fundamento primitivo da arte, e consegue a impossibilidade de traduzir essa região sináptica (se não posso dizer espiritual) para a realidade consumível do objeto físico, em sua nudez extrema,  em sua falta de compostura e sua absoluta identidade. Em Milestones eles singram em sentido desse fundamento, conseguem divisar os contornos de sua geografia, mas ainda estão em segura distância. Essa região foi definida por Saul Bellow como os espaços singificativos, empregando o termo às tantas frases que Shakespeare resgatou em estado puro de lá; e que Walt Whitman escreveu ser o lugar das superfícies impossíveis, em que não existe impunidade e nem uma segunda chance senão aquela para ser arrebatado; os as extensões abertas das portas da percepção de William Blake; ou o que fez escritores como Robert Walser se calar para sempre; ou a antimatéria evocando a matéria na expressão de Cortázar. Por isso não existe sublimidade (essa biscate) em obras experimentais: quando se resgata o que está ali acima, num milagre que dribla a inacessibilidade, a caça vem fumegando em sua integridade selvagem e sua ausência de maquiagem, em sua expressividade violentamente pronta e independente.

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