Tenho uma imaginação hiperatrofiada, o tipo de benefício dúbio que me entretém em longas filas de banco ou na sombra de um dia morto. Grande parte dela, creio eu, veio dos poucos momentos que tive com meu pai, nos encontros cheio de culpa que minha mãe divorciada nos cedia com o preço de atulhar a atmosfera de presságios e proibições. Um certo dia, meu pai me sequestrou. Entrei no seu chevete novo, naquele ano mais inocente em que a gagueira provocada pela separação dos dois ainda me afigurava o pior dos infernos, e passamos um mês inteiro confinados numa fazenda que ainda hoje estou por descobrir de quem era. Passadas as horas de puro terror em que vi confirmadas as suspeitas de minha mãe de que aquele homem era capaz de tudo para separar-me dela, esse mês foi o melhor da minha vida. Todo mundo estava lá, como num crime premeditado, minhas tias, meus tios. Quando li vinhas da ira, refiz aquele calor familiar, aquele humor despojado e espiritual que tive por trinta dias. Mas findo aquele período, meu avõ materno apareceu, conciliador, conversou com ele quinze minutos, e meu pai foi até mim, sorrindo: “Naninho, chegou a hora de ir embora”
Meu pai contava mentiras grandiosas para mim. Carregava-me no bolso da camisa, quando eu era bebê. Em certas épocas eu voava por sobre os postes de luz e me sentava nos fios elétricos, deixando todos desesperados a me procurarem, até que ele percebia termos passado dos limites e me sinalizava com a cara compungida para que eu descesse.
Em 1990 eu abandonei a faculdade, meio que fugi de casa e fui até o meio da Amazônia atrás dele, a metade do caminho de carona. Haviam dito que ele sofrera um acidente, uma tora de madeira teria caído em cima dele. A forte impressão de sua imunidade me confortava em não acreditar naquilo, o que confirmei ao vê-lo aparecer de barba, com um semblante de Aureliano Buendia, pela soleira da porta de sua nova casa, com sua nova família, num povoado esquecido chamado São Miguel. Sua nova esposa tinha minha idade, os olhos verdes, e a lucidez da bondade que só um espírito muito antigo podia ter. Estava feliz, com saúde. Andando pela floresta, ele fez um movimento de abranger a mata com o braço e disse: “Deus também esta aqui!”
Há três anos ele foi devastado por um câncer. Vê-lo, então, foi terrivelmente doloroso. Herdei dele, também, o amor exacerbado pelos animais, principalmente cães. Um semana depois de que foi enterrado, meu cão latia de madrugada. Um cãozinho miúdo, magro até os ossos, como sabendo que em minha casa poderia ter sua última guarida, estava deitado de frente ao portão. Até então eu não tinha cedido à crueza absoluta daqueles dias; peguei o animalzinho com um pano, trouxe para os fundos de casa, coloquei-o no quarto de despensa e passei a noite lá, corroído por uma piedade ilógica, junto dele.
O filtro contra a realidade da existência havia falhado, como ás vezes acontece. E a visão de um túmulo em nada corrobora para que o filtro volte a funcionar.
Eu acho que a melancolia é um filtro inverso; uma doação de sangue resposta por quantidade equivalente de água. Ao mesmo tempo, a melancolia é uma resposta conveniente à inteligência preguiçosa, que escolheu se prostrar, em autocomiseração. Então eu penso que para viver e experimentar tudo que é inerente à vida precisamos, acima de todas as coisas, um segundo antes. Depois, estamos prontos.
ResponderExcluirQue tocante, Charlles. Muito bonito.
ResponderExcluirCharlles meu velho, como vais? Gostei desse texto.
ResponderExcluirAnotei teus comentários sobre o Sebald. Quando eu revisitar os textos dele vou conferir.
O Danúbio ainda está na lista das leituras futuras.
Um amigo meu fala sempre bem de um filme chamado Der Ister (http://en.wikipedia.org/wiki/The_Ister_%28film%29)
Você conhece? Um Abraço
Ainda não conheço, Aguinaldo. Vou atrás.
ResponderExcluirPara os poucos que frequentam esse blog, um aviso: o blog Livros que Li, do professor Aguinaldo Medici Severino, foi um achado e tanto que tive em minha vida de internauta. Apesar de um eminente doutor em Física, sobra-lhe tempo para ser um leitor voraz que destrincha uma série interminável de livros por semana. E o melhor: faz resenhas impecáveis sobre cada um deles.