Timos passou a noite em sonhos estranhos. O que mais
o assustava era que ao acordar pouco se lembrava deles. Antes era
fácil. Bastava que aquele ocre mundo em perspectiva lhe enviasse algum sinal, geralmente quando fazia o chá ou olhava pela janela a rua aos
poucos se acendendo, e com base nessa pequena distração do lado de lá quanto ao
zelo de seus segredos ele seguia a pista e quase todo o sonho lhe
aparecia de volta, como se o lacre não funcionasse bem e ficasse uma abertura por onde algo mais passava. Agora
não era mais assim; necessitava de muito esforço, mas esforço nesse assunto era uma ofensiva inútil. Achava que não era porque estivesse envelhecendo;
algumas poucas coisas melhoram com a idade, e a aproximação dos outros
elementos do sono deveriam fazer com que as apreensões de quando estava lá não
fossem barradas de modo tão definitivo ao acordar.
Quando preparava o chá
preto veio-lhe uma fagulha do que era, um estampido que espalhava luz e que a
mancha em negativo revelava. Era sobre sua avó. Nunca sonhara com ela,
nem quando era criança e ela, de certo modo, exercera uma influência factível de lhe impressionar; e nem quando morrera há oito meses. Ela morreu
com 92 anos. A mãe de sua mãe. Chamava-se Mircéa. Tinha sido governanta nos EUA. Trabalhara com nomes importantes e pagavam caro pelos seus serviços.
Quando voltara, após 50 anos que teriam rendido um livro de memórias fabuloso_
e, dependendo do grau de rancor que sua misoginia estivesse com a condição
humana, bastante desiludido_, a vida se tornara para ela uma comunhão
inexorável entre o tédio e a mesmice. A família aprendera logo a não usar com
ela alguns dos atos sociais; perguntar sobre sua saúde, por exemplo, era cair
na armadilha de ouvir como resposta a alma encarnada em uma senhora de um
filósofo classicista alemão que não tinha nenhuma digna gratidão pela
longevidade. Ela perfilava uma série de queixumes sobre doenças com minuciosa
exatidão que fazia o interlocutor pensar o quanto a literatura do rancor perdia
por não existir o tal livro de memórias. Sua avó e Schopenhauer; era uma espécie
de Thomas Bernhard cuja Áustria cínica e repugnante que tinha para purgar era
seu próprio corpo e os dias incontáveis que lhe restavam pela frente e que
voltaram a ser tão asfixiantemente longos como os da infância. A última vez que
Timos a vira, em um aniversário de 3 anos atrás, ela se recusara a olhar para
ele quando algum parente engraçadinho lhe perguntou se ela se lembrava quem era
aquele rapaz. Ela respondera, com uma lápide de mal humor que azedaria até o
canto dos pardais se eles houvessem pela janela, que aquele não poderia ser o
Timos que ela conhecera, tão lindo e arthuriano, e se transformara nesse
bolchevique barbudo e mal encarado. Foram estes os termos que ela usara.
Empregava um timbre de voz reticente, como se tudo que o mundo lhe emitia para
que ela o conceituasse não merecesse senão aquele hausto de fôlego fissíparo.
Timos sorriu, admirado por aquela estética altiva, e se sentara em silêncio
duas cadeiras longe dela. Ficara magoado, de certa forma.
A avó tinha sido um
exemplo de vida para ele. Um de seus discursos mentais quando o assunto era a
crítica desiludida do padrão familiar de ganância por posição social e dinheiro
e por cortejos sexuais de todos os estilos, era na avó que Timos pensava, em
sua aspereza, sua concentração, sua corajosa disposição em não fazer parte do
mundo óbvio e brutalizado. Sua mãe lhe contara que tivera pouco contato com ela
quando era criança e mesmo na adolescência o círculo fechado com censuras
atemorizantes contra a mulher que abandonara os filhos criado pela esposa
substituta do pai (e pelo silêncio omisso dele) não lhe permitia que tivesse um
real contato com ela. Você nunca pensou que teria se identificado com ela?,
Timos perguntara à mãe. Ela o olhou com os olhos acendidos pela incrivelmente
não cogitada ideia e negou, talvez para não dar o braço a torcer por aquela
obviedade da qual não suspeitara, e a seu favor disse que Mircea se esvaziara
dos sonhos e da ilusão necessária à vida, em prol de um regime espartano de
pureza que a transformava cada vez mais em uma misógina insuportável. A irmã de
sua mãe, a tia Alda, havia adotado uma menina alsaciana e a velha falava pelos
cantos sobre o derrisório tom oliva da pele dela, o que era sabido por todos. E
a avó desprezava com veemência incontornável o prosaísmo daquele povo subdesenvolvido
da cidade, tão avesso a atirar o lixo na lata de lixo e não nas calçadas e
incapaz de dirigir um carro de modo minimamente não homicida.
Timos levava
essas coisas como desabafo de uma mulher que exigira o divórcio numa época em
que isso era a heresia inaudita que deveria servir a reerguer as fogueiras calvinistas
na mente de todo mundo, quando descobrira a rede de concubinas que seu marido
alimentava. As pessoas a admoestaram, viraram as costas para aquela esnobe
embrutecida pela ilusão de casta que seus diplomas de pedagogia lhe incutira, e
ficaram do lado do injustiçado esposo, o patriarca de cabelos colados à moleira
da cabeça por vaselinas Iliodora e de bigodes perfumados que a maledicência
popular jamais assimilariam dentro da visão pejorativa do cafajeste barato que
seduz pobres arrumadeiras de quarto, mas sim como a estampa que necessariamente
há de se ter um doutor farmacêutico que respeita tradicionais normas de higiene
social. A mãe não a chamava de mãe, só Mircea, o que, com os anos, ia apegando certo
desconforto e o nome ganhava na boca das filhas refratáveis um peso excessivo,
como se em vez do nome daquela mulher que suportara tanta solidão e se
demonstrara ser uma rocha de vontade e persistência estivessem repetindo a
alcunha de um demônio que já não as aterrorizavam.
Naquelas cartas, Timos disse
à sua mãe, sobre os gordos pacotes de folhas amarelas apergaminhadas que
Mircéa, inesperadamente, começou a enviar dos EUA para ele do nada, cheio de
pensamentos recolhidos e retumbantes, naquelas cartas ela não se mostrava dessa
maneira sem vida; pelo contrário, ela me contou tudo do seu ângulo de visão, o
que acontecera entre ela e meu avô para que ela atingisse tal ponto de
escolhas. A desembargadora jamais permitia que falassem contra seu pai, o
icônico e estranhamente canonizável pelos tantos pecados que tinha boticário,
era a fraqueza reservada para sua mãe ter entre as tantas qualidades de vulto
de sua inteligência e sua independência.
A mãe o olhara com o cenho já
posicionado para exigir que ele mudasse de assunto, tendo retido a colherzinha
na xícara de chá, mas Timos trafegou espertamente para um atalho. O avô se
casou com a empregada, não se casou?, depois que Mircéa saiu de casa e
atravessou o oceano para a América, havia uma madrasta na sua casa, não havia?
Então eram fatos, a desembargadora não podia ir contra eles, eram notícias da
narrativa da família bastante conhecida e já chegando ao estágio de não ter mais
quem sentisse vontade de examinar mais o assunto. Pois nessas cartas, Mircéa
falava das agruras do novo mundo, da estranheza que era falar uma língua que
ela aprendera na academia por questão de ler os volumes de educação
internacionais não traduzidos no país, mas que agora ela tinha que utilizá-la
para sobreviver não mais com a cultura, mas com a subserviência doméstica,
saber como se fala polidamente com uma madame casada com o mecenas das pias de
banheiro de porcelana Avidecent, ou como lidar com o rosto gargulino do agente
de emprego que lhe pergunta quais as condições de contrato que ela leu no
formulário 25 estariam de acordo com sua capacidade de mão-de-obra, se sua
instrução era de grau 4 ou 9, se ela sabia o que era uma comunhão de direitos
empregatícios em que um casal em litígio de separação receberiam-na na casa em
horários diferentes para não terem que se ver nos momentos mais delicados da
questão judicial. E ela voltava para casa depois dessas aventuras sombrias,
atravessando as ruas geladas de geometrias que deveriam lhe oprimir por se
sentir apequenada naquele universo prisional que lhe lançara muito cedo um
destino que pouquíssimas pessoas conseguiriam suportar.
Você já pensou por que
ela mandava essas cartas para mim?, Timos perguntou, e a mãe, nunca querendo
ser engolida pelas sugestões perigosas que a falsa simpatia do filho abria
naquelas vastas visões panorâmicas, sorria e dizia que era porque ele era o
único que ela não conhecia para odiá-lo. Você tinha 13 anos e ela ainda não te
conhecia, só foram se ver dois anos depois, quando ela retornara para cá. Pois
eu sei, ele respondeu, o tom triste e extasiado ao mesmo tempo, o que não era
um oximoro impossível na prática quando ele já antevia a alegria que lhe
causava quartos solitários em um dos quais era o quarto do apartamento da mãe
em que ele abria as cartas da avó e as lia com uma atenção perfunctória, como
se o amarelo inusitado da folha alimentasse a impressão de que desvendava uma
segredo faraônico reservado apenas a ele. Tudo bem, Timos, e mãe, que havia
tomado o chá talvez mais rapidamente que em uma situação em que o espírito de
revisão das anistias mútuas de todos os envolvidos não estivesse tão
alardeante, enxugou as mãos em um pano de prato após lavar a sua xícara de
carrara e se voltou pronta para ouvi-lo com exímia atenção, mesmo que isso
pudesse envolver passagens do discurso que poderia por o dia de comunhão entre
os dois em ruínas. Timos a olhou fundo nos olhos_ essa conversa acontecera há
20 anos, como tudo na vida do progressivamente distante Timos parecia ter
ocorrido_, as pupilas tremendo e as mãos crispadas em um gesto teatral
shakespereano, um tanto inconsciente nele para que se importasse com o
ridículo. Ela sabia que eu era o primeiro da nossa família a nascer livre, ele
disse.
Ele era ainda
muito jovem para ter dito isso. Teria acreditado mesmo nisso em algum momento
da juventude, naquela falácia tão fácil de cair mesmo os espíritos calejados?
Livre de quê, se ele estava na fila da consumação em passo lento e regrado para
fazer o mesmo cronograma que todo mundo. Fez sua faculdade, ingressou-se em uma
escola ouvindo o eco daquele coro repetido à exaustão de que melhoraria os
índices educacionais do país, e só encontrara a mesma falta de horizontes,
alunos basbaques sentados com nébulas de distrações nos cérebros, dispostos a
soldarem os ouvidos e se entregarem ao mar infinito de aberrações da mentira.
Para quem então sua avó escrevia? Quem ela fantasiava que algum dia aquele
menino ectoplásmico que alguma vez deveria tê-la visitado em sonhos se
tornaria? Um filósofo, um eremita, um médico, um advogado. Não conseguia
acreditar que no fundo daquela renitente esperança dela houvesse a imagem de um
adulto misógino e arredio, e aqueles fossem seus ensinamentos de como odiar o
mundo com suficiente estilo. Manual do rancor da senhora exilada, da diaba
branca da família que andava pela vila nas noites de lua cheia atrás de sua
filha diaba desaparecida. Por detrás daquele ensejo havia sua última fé de que
a criança que a lia de alguma forma não seria contaminada por suas palavras
amargas, sua apreensão sufocante da realidade de presídio de toda a terra.
Ela
destilava sua ira, exsudava um tanto do fel de seu desespero calibrado no
papel, mas não queria que o menino fosse intoxicado. Era o paradoxo da
condenada que joga suas cartas pelas grades do presídio supondo achar o ouvinte
perfeito, e entre tantos andantes pelo muro do lado de fora ela havia tido a
sorte rara de ter à sua inteira disposição um mensageiro já pronto, já
visualizável com alguma exatidão entre a névoa de sua utopia. Ele não soube
dizer isso à mãe, mas a mãe entendeu bem o que ele queria dizer. Ele
interpretara que ela lhe ouvia com uma aquiescência aceitando a sua
exclusividade cheia de expectativas no caminho diferente que ele seguiria para
não se tornar um boçal, achava com orgulho que botara a desembargadora no
chinelo e mostrava a sua originalidade predestinada, o segundo membro da
família, ele e a avó, que romperiam para si o muro do dogma escritorial em que
os outros estavam trancados do lado de dentro. E os anos se passaram e a avó
não o reconhecera. Depois de todas as cartas, depois que retornara da América e
os dois se encontraram e tomaram alguns sorvetes, e ambos insistiram durante um
tempo em forçarem aquele laço que perdia desamparadamente o laço quando
transposto das palavras para a atmosfera, ela o rejeitara como um traidor, ela
o excluíra de seu hermético clube da dignidade rancorosa que tinha apenas ela
como membro.
Antes de ir
para a clínica, na madrugada fria em que os ruídos já eram ouvidos pela ciência
da acústica formada entre canos, cimento, vácuo e pessoas nas ruas, ele se
lembrou do sonho. Havia uma sala ampla, bem iluminada, com uma luz incisiva de
uma série de lâmpadas fluorescentes, paredes brancas e uma ressonância oca e
infinita que revelava que era uma estação de passagem, uma zona de embarque. A
avó estava sentada em um dos bancos largos de metal, solitária como em um
documentário sobre a velhice abandonada. Ela estava vestida com um terno
cinzento, bem alinhado, saia da mesma cor tendendo para o branco, um lenço bem
apessoado no pescoço, um uniforme inglês que revelava uma distinta funcionária
exemplar. Seus sapatos eram escuros e bem tratados, ela devia engraxa-los todos
os dias, mas na posição em que estava sentada, com as pernas juntas em v
lateral, os tornozelos em primeiro plano e os pés enfiados suavemente para
debaixo do assento, revelavam que estavam frouxos nas laterais, como se os
houvesse comprado por engano ou por alguma comodidade econômica um número
maior, como se estivesse cansada, um cansaço malbaratado, como se aquele local
ermo a que ninguém pareceria apetecível a agradasse. Um local que era um
retrato de seu espírito. No sonho ele observava a cena sabendo-se que não
estava lá, a limpidez da imagem sendo transmitido para suas vistas concentradas
como se numa tela, um cinema frio e escuro que cambiava o que sua avó sentia no
exterior da pele por sob o terno estando naquele local.
O rosto dela estava
desfocado, ou a mente em atividade idílica de Timos não estava sendo totalmente
receptiva no centro da projeção. Ela não o via, os dois estavam mais distantes
que duas galáxias, talvez ela estivesse em outro mundo, no mundo de lá, no tal
reino dos mortos, talvez aquela amostra de sua nova aventura na opressiva
eternidade fosse mais uma das reativações constantes do enigma que esse lado de
cá não se cansa de propor, um novo mistério dentro de incontáveis outros
mistérios que nunca seriam resolvidos porque seu propósito era apenas uma gratuita
enganação. Quem o propôs, se havia mesmo algum jogador, não se preocupava nem
um pouco com alguma lógica coerente, algum resultado que zerasse a equação.
Depois acordara, ou passara para outras questiúnculas que pregara em sua
percepção durante aquele dia e que tentavam por alguma razão absurda se resolverem
na forma de sonhos_ como se a vigília fosse um estágio desacreditado na
ortodoxia da dialética das sensações acumuladas e a resolução do que elas
queriam dizer passassem para a ludismo do sono.
Sua avó não
era só a primeira exilada da família, pelo menos na linha recente dos últimos
cem anos buscados na árvore genealógica, mas também era a única suicida. Aos 97 anos, ela se dera ao luxo de se matar. Até isso foi ao gosto dela, partiu de
seu inteiro livre arbítrio destituído de glamour. Não usara veneno, como
parecia ser a escolha de maior sucesso entre os velhos, pendurar-se por uma
corda pelo pescoço deveria lhe parecer pavoroso e de contra toda a ética de sua
vida, assim como qualquer das outras soluções que desfigurassem o corpo.
Na
certa imaginava que seria uma vingança oferecida em bandeja para todas as
pessoas que desprezara ostensivamente se suas pernas varicosas, sua pele
sensível ao nível de se rasgar por um simples toque, se sua cara sem o
eufemismo da maquiagem, de um azul baço e libidinoso que só se via na carne no
estágio terminal da vida, aparecesse em alguma situação fora de seu controle,
atirado do quarto andar no asfalto, esfacelado por um projétil. Isso estaria
fora de cogitação. Por isso ela resolvera apenas parar de comer. Fechara a boca
não só para as papinhas indignas e as frutas picadas que as enfermeiras
particulares lhe davam, como também parou de conversar. Não emitiu nem o mais sussurrante
som.
No final do primeiro dia, as enfermeiras telefonaram para a desembargadora
e para o outro filho advogado, tio M. Eles foram para o apartamento e
encontraram-na deitada na cama de solteira, os braços e pernas rígidos da
antiga menina emburrada, talvez era assim que ela ficava na cama de febre quando
sua mãe lhe trazia a sopa, encontraram-na olhando para um ponto só no espaço,
determinantemente não cruzando o olhar com seus filhos ou com qualquer outro
espécime deste mundo pueril em que ela estupidamente, agora via, perseverara em
estar. A desembargadora lhe falou com um tom amável sincero recuperado no fundo
de todo o depósito de atitudes defensivas que tivera contra ela ao longo da
vida.
Não era mais a mulher anacronicamente elegante que tentava falar com ela
no quintal de casa, aparecida como se do nada mas que se tratava de um arranjo
estratégico dos adultos envolvidos para permitir que chegasse nos filhos sem os
espantar, sem os estarrecer; era apenas o resquício do antigo ego poderoso, era
a desistência, era o arrependimento de ter sido enganada sempre de que havia um
pote não de ouro mas pelo menos de um respeito surpreendente e
resplandecentemente novo que os esperassem no fim de toda aquela indignidade
pujante e asquerosa que eles tinham que atravessar sem propósito algum. Era só
uma velha senhora sem mais cartas na manga, sem mais ódios, sem mais rancores,
sem mais disputas, sem mais enfrentamentos para ver se encontrava o palhaço que
iria lhe colocar nos ombros e passear com ela pelo picadeiro circular acima de
todos os outros a escolhida, não mais palavras frias e bem calculadas para
desestabilizar, não mais olhares atravessados que dardejavam pelos cantos, nada
mais disso. Tudo um imenso tempo perdido, tudo um grande exercício de idiotice
em que ninguém nunca era melhor que ninguém, apenas igualmente imbecis.
E o
filho, o advogado de controle absoluto sobre seus sentimentos, que falava com
uma voz de trovão que treinara durante toda a adolescência e juventude, até
firmar-se como algo natural seu, segurando-lhe a mão e tentando invoca-la
daquele invólucro, falando com uma tenacidade que usava com seus clientes no
escritório, acreditando que naquele assunto exórdio as regras do mercado de
invocação da verdade relativa também funcionassem, era só repetir o mantra
cotidiano.
Chamaram a ambulância e a levaram para o hospital. Dois dias do
mesmo modo, e ela entrou em coma. Os vidros opacos que se adaptavam à luz
ambiente e as horas rígidas para que só os filhos visitassem na UTI cara
impediram, enfim, que vissem a desfiguração inevitável de toda maneira que seu
corpo sofrera, as veias azuis sob a camisola comunal e despersonalizante, os
aprofundamentos zigomáticos da murchação da carne.
Timos estava na clínica
quando a mãe lhe telefonara para avisar que a avó morrera. Nunca ouvira a voz
da mãe daquele jeito, tão triste, tão sombria. Ela só falara o básico, não
queria consolações e nem entrar em muito detalhe. Não lhe pedira para que fosse
ao hospital, mas ele sabia que era isso que ela mais desejaria, e ele saiu às
pressas só avisando para Ofélia, que lhe olhou como se a informação de que
tivesse uma avó, e ela fosse humana o suficiente para morrer, o demovesse do
local onde ele estava na zona resolvida em que ela definira com um prego numa
placa de isopor.
Na época, quando vestira o casaco e abrira a porta, parando na calçada
para se situar de volta no frio de chuva e vento da rua, passou-lhe pela cabeça
que um círculo se fechava e que seria num dia apropriado que os dois se
encontrariam novamente. Era uma história sem encaixes narrativos satisfatórios
e completamente entregue à aleatoriedade, mas o velho cinismo cósmico, que
muito provavelmente trabalhava em ponto morto, continuava insinuando que havia
um sentido por detrás das desbastadas camadas do enigma. Se tinha uma coisa que
ele determinadamente não desejava era ir ao hospital.
Gostei muito do conto, confesso que os sentimentos que desenvolve a narrativa me faz lembrar alguém, mas não sei quem. Talvez Fuks? ou Hatoum?, mas a escrita é sua Charlles.
ResponderExcluirHoje estive a ler como Balzac falou dos críticos para eliminarem os poetas e escritores rivais, por isso não faço uma crítica ao seu conto, até porque sou leitor não crítico literário. Um abraço
Belo conto, parece que a narração é embebida em uma realidade vivida. Mas,justamente isso é o interessante da arte, a imitação da vida ou quem sabe o contrário.
ResponderExcluirObrigado, amigos, pela gentileza dos comentários.
ResponderExcluirVoltou em grande estilo. Parabéns, Charlles. Tomara que tenhamos o prazer de comprar um livro seu em um futuro próximo.
ResponderExcluirCharlles vive!
ResponderExcluirQue personagem!
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