Recebo uma chamada em uma tarde quente de agosto em idos de 8 a 9 anos atrás, a voz de mulher do outro lado da linha tornada indistinguível pela mecânica que tinha que passar toda a sua firmeza e protocolo pelos furinhos da caixa de som do celular. Alô, é o professor Charlles?, pergunta; sim, sou eu, respondo. Professor Charlles, aqui é a Luiza, a coordenadora do Colégio Rudyard Kipling. Teria como você vir aqui ao colégio às 15 horas de hoje? Penso um pouco, o suficiente para identificar na minha lista de personas non gratas a tal Luiza, invoco o instantâneo de possíveis erros que cometi em minha disciplina de biologia para a turma do terceiro ano, não me vindo nada de condenável, o que torna a sensação de temor um tanto mais acentuada. A senhora poderia me dizer sobre o que se trata?, pergunto. É um assunto de certa urgência, você vindo aqui na hora proposta discutiremos._ Está bom, respondo e desligo.
Atravesso a longa avenida em supino ao sol severo da tarde, com meus diários em mãos. O que diabos a coordenadora queria comigo, era a pergunta martelando na cabeça, ao mesmo ritmo que uma artéria ia motorizando em minha têmpora enquanto as mangas da camisa ficavam molhadas de suor. Luiza, uma mulher de uns 40 anos, semblante rígido, voz determinada das pessoas acostumadas com o comando, alguém temido pelos alunos e evitado pelos professores, ou ao menos por mim, que sempre mantinha uma soviética distância dela, restringindo-me a assuntos meramente protocolares. E houvera um incidente meio desagradável que aumentara ainda mais minha indisposição com ela: na época, eu me lançara numa loucura involuntariamente neoliberalista de manter três empregos, o que podara todo meu tempo livre; eu era, além de funcionário público, veterinário de campo e professor de biologia em colégio particular. Até então essa mazela tresloucada parecia molestar apenas a mim, que era solteiro e desimpedido em tudo, mas a tal Luiza, um dia, invocou a psicóloga do colégio para que me chamasse em particular e me colocasse a par de que esse transtorno de comportamento também privava os alunos da harmonia sanitária ideal das salas de aula. Trocando em miúdos, uma aluna flagrou em certa aula um filete de sangue em meu braço, enquanto eu expunha, com esse braço em riste em frente ao quadro negro, uma daquelas fatídicas cadeias de interações genéticas, e essa aluna me delatou junto à coordenadoria. O fato é que eu saía do frigorífico e corria para o colégio, sempre muito preocupado em não chegar atrasado, e nesse dia em particular mal tive tempo de tomar um banho, o que deu origem ao delito. A verdade mesmo é que nessa correria, grande parte das vezes eu só dispunha de tempo para uma higiene satisfatória quando chegava em casa, lá pelas 11:30 da manhã, até essa hora eu devia mesmo exalar um singelo odor de sangue coagulado, fezes, vômito, e gás do sistema de ar condicionado, que são componentes infusos no ambiente de um frigorífico que abate mil animais por dia, e no qual eu ficava submetido desde as quatro horas da madrugada.
A psicóloga me chama, ficamos um de frente ao outro, percebo o desassossego e constrangimento dela ao, enfim, ter coragem de me dizer que eu, um rapaz tão bonito, deveria ter alguém para zelar de mim, contratar uma empregada doméstica, ou, melhor, quem sabe, arranjar uma esposa, e assim vai. Meia hora de conselhos e nada de me dizer que a razão da piedade excessiva era que um filete de sangue fora visto em seu traçado nauseabundo percorrendo todo meu antebraço, como a muralha da China pelos olhos lunares do falecido Neil Armstrong. Saí da sala da psicóloga crente de que ela me usara, em seu longo expediente morto, para preencher uma das suas fichas burocráticas de atendimento mensal, que justificava seu salário, mas duas semanas depois a própria Luiza me encara, em seu gabinete, me dizendo, curto e grosso, que certos alunos haviam reclamado de detalhes perfunctórios em minha indumentária pessoal. Alguém aqui que tenha caído de gaiato nesse blog é veterinário? Não? Pois entendam, leigos, que cheiros, sabores, máculas em tecidos, filetes de sangue em braço, estão longe de poderem constranger um veterinário. Fiz estágios por longos meses em granjas de suínos, e ainda hoje, quando sinto aquela acidez característica, misto de ureia, enxofre, dejetos biológicos de todo tipo, sou tomado por uma lírica nostalgia, da mesma intensidade que quando minhas narinas são surpreendidas por um certo perfume colossal que minha primeira namorada da adolescência usava, que me para com o que eu estiver fazendo e me descentraliza, ou o rescender da relva apreendido na volta para casa pelas janelas semi-abertas do carro me devasta de saudades de uma antiga casa de campo da infância. Aprendemos sobre uma certa poesia dos cheiros na faculdade de veterinária, o que não é nem um pouco assustador para os profissionais das áreas médicas de qualquer tipo_ semana passada mesmo, meu dentista retirava as agulhas coloridas que inseria no canal do meu dente e as passavam pela averiguação de seu nariz de degustação apurada e deleitosa, tal qual um sommelier. (Aperfeiçoa-se nessa filosofia aromática as pessoas que tem filhos ou são donos devotos de animais domésticos, para quem toda escatologia envolvida são íntimos estudos e caminhos revisitados à farta ao conhecimento recolhido do alvo de seus amores.)
Pois bem, a tal Luiza estava longe de poder tirar de mim rubores de qualquer tipo, daí que eu respondi, na mais cordial das distâncias, que o problema seria resolvido se ela atendesse minha antiga recomendação de que passasse minhas aulas para mais tarde, que não fossem as primeiras, das sete da manhã, mas lá pelas nove, ou quem sabe à tarde, tendo tempo então para voltar para minha casa e me dignificar a esfregar meu couro com a mais bruta das esponjas naturais até que meu sangue minasse de saúde asséptica pelos poros. Ela assim o fez; eu, que melhorei muito da minha doce estupidez retaliativa, continuei do mesmo jeito, atento apenas para manchas visíveis, mas só tomando banho depois que voltava do colégio, no intuito de provar que aquelas sensibilidades ou eram psicossomáticas de quem não se dava bem nas notas de minha disciplina, ou eram de fontes erráticas (um adolescente padrão emana odores francamente desagradáveis, os quais eu mesmo não tolero), ou eram simplesmente birras com as quais meu nível de apreensão dos mistérios administrativos colegiais pouco se interessava. Talvez fosse isso, pensei ao dobrar a esquina em direção ao colégio: o reascender dessas antigas questiúnculas, que a tal Luiza queria mais uma vez me jogar na cara, inadmissível foi para ela que eu não me importasse ou não me vexasse. Entro pelos portões do colégio pronto para dizer sem meias palavras que eu iria abrir mão daquilo e me demitir, avanço para a porta da administração, não me faltando a percepção de que era um tanto estranho que não houvesse viva alma ali, nem o porteiro, nem as faxineiras, nem os professores ou monitores das aulas vespertinas de reforço. E eis que, nesse deserto todo, me aparece a tal Luiza, que surge da sala de administração com uma leveza ectoplásmica e se encaixa ali no umbral da porta com algo de fada ou ninfa do vale, cabelos molhados ineditamente soltos, mostrando o quanto eram longos e negros; os lábios, tão rotineiramente adeptos de um fordianismo de discursos produtivos, estavam moldados com um batom vermelho cordial e não-aberrante (lembro que meu senso de observador apurado teve tempo, naquele micro-minuto de tensão, de reconhecer esse mérito feminino nela: era um batom equilibrado, que se condicionava com precisão elegante ao seu espectro de emanação mulheril, mostrava um auto-conhecimento orgulhoso, seguro e de extrema perícia, não são todas as mulheres que tem isso, isso é uma arte invejável_ de modos que naquela fagulha de racionalização que precede a catástrofe me passou cristalinamente pela cabeça: se eu cair hoje, se eu não aguentar e ceder, se eu me trair e me mostrar fraco e cediço, será por causa desse batom). Ela usava um vestido cuja barra ia até os joelhos, mostrando pernas bonitas, lisas, bem torneadas, pernas de uma mulher que envelhecia com uma lascívia concentrada e não de todo secreta (lembrei que haviam os comentários entre colegas professores que evidenciavam uma curiosidade sobre sua vida de divorciada reservada). Não era a mesma mulher, eram o que as faculdades do senso comum diante o inesperado queriam que eu pensasse naquela hora, mas o que eu tinha firme ao me estacar diante aquela visão era a convicção de que era a mesma mulher; talvez a outra, a intrusa e metade debilitada, fosse a que tinha que se confrontar com a psicopatologia do cotidiano de um colégio como aquele, a Luiza das calças jeans e do rosto sem maquiagem e despersonalizadamente assexuado das reuniões de fechamento de diário que a cada dois meses tínhamos que nos submeter; e a Luiza legítima fosse aquela revelação noturna que se mostrava para mim em pleno dia, como um convite a uma iniciação a uma ciência privilegiada. Ela me disse_ a voz doce, calibradamente trêmula (meu deus, ela era profissional, pensei, daí que sempre me pareceu altiva a sua indiferença ao atravessar aqueles corredores com beldades ingênuas e assustadas de mocinhas de 16 anos): Charlles, eu te vejo sempre sozinho, sem companhia. Pensei se nós, nós dois, não poderíamos, sei lá, um dia, sairmos juntos para jantar, tomarmos um vinho.
Recordo que Bernard Shaw dizia que nada engrandece mais a experiência de uma pessoa do que os momentos de intenso constrangimento pelos quais ela passa. As gafes de Shaw são antológicas, as vaias e ovações que recebeu ao longo de seus 90 anos de vida: lembro que certa vez, ao entrar por uma sala até um bastidor de onde iria discursar para um grande público, tropeçou e rolou pelo chão, sendo que imediatamente se levantou e continuou caminhando como se absolutamente nada tivesse acontecido. Em certa medida, meu comportamento sempre foi inspirado em Shaw, ainda mais pela atitude desabrida que o irlandês possuía em não se importar em não usar as palavras aprazíveis exigidas pelos atos sociais. E meu histórico de momentos ruins inesquecíveis é arrepiantemente extenso; mas estar de frente à escritorial coordenadora Luiza e ter que suportar friamente que ela estivesse me passando uma cantada, às 3 horas da tarde desses verões inglórios do aquecimento global, tendo urdido uma espetacular e na certa dificultosa evasão de todo mundo para que o colégio servisse inteiramente ao seu intento (apenas ela e eu, eu e ela ali), era algo que exorbitava em muito meu estômago de avestruz para digerir impavidamente o constrangimento. Eu desconversei da melhor maneira que pude, mas tudo foi um grande desastre. Disse a ela que eu já tinha uma namorada, que me sentia envaidecido pelo seu convite, mas eu tinha que recusar. Foi uma auto-violência extrema, ainda hoje, ao pensar nisso, faço uma careta e digo comigo "Cacilda!". Analisei ali que nada há de pior do que uma mulher rejeitada, é o mais cruel dos inimigos que se pretenda ter. Era meu ultimato para abandonar o colégio.
E olha só as coincidências: relatei o fato a um amigo apenas, numa noite de bebedeira que ambos tivemos em um bar da cidade. Esse amigo, um tipo aragonês baixinho, barrigudo, careca e com uma falha num dos incisivos, dado a um riso de alegria suprema que lhe é um acometimento natural desde que acorda até o horário em que vai dormir (alguém que nunca, nem na circunstância do falecimento de seu pai, vi de mau-humor), me disse, após cinco minutos de prefácio monologal hilário recheado de frases como "não acredito", "não pode ser", que fazia um ano que ele e a Luiza eram amantes. Olhei-o embasbacado: "sério?". Tive uma dessas decepções egoístas que prescinde de controle mental, em que vi a altiva Luiza pega por aquele amigo descarado e mandrião; ela merecia algo melhor, pensei e disse a ele. Ele concordou, bebendo mais um copo de cerveja e fazendo sua voz em soprano de quem finge se importar para que outros não lhe ouvissem e preservasse a honra de sua vítima: ela é insaciável, precisa de ver! Pôs-se a contar detalhes picantes que fizeram a noite se estender por mais duas horas além do previsto. Era tão simpático em sua canastrice, tão detentor de uma auto-depreciação adstringente, que no final achei que havia algo de dignamente romântico nas farras pantagruélicas que os dois realizavam juntos, fazia mais que um ano, em segredo tão bem guardado que nem as duas filhas que moravam com ela sabiam. Ainda faltavam dois meses para fechar o ano, e eu havia informado ao colégio que só cumpriria a agenda e sairia dali. Via a Luiza em seu jeans e camisas formais, séria, constrita, e imaginava-a dizendo o que meu amigo afirmava que ela dizia, e se posicionando nos malabarismos que ele descrevia prontamente que fazia.
E eis que, para concluir, encontro um tesouro no último volume de Seu Rosto Amanhã, de Javier Marías. Na página 139, do terceiro volume, da edição da Companhia das Letras, encontro a supracitada definição, que é sobre o quase delével grau de parentesco que surge entre homens que se deitaram com a mesma mulher. Marías não trata do assunto de forma grotesca nem masculinista, como pode parecer a uma primeira impressão, mas o faz com sua elegância costumeira e sua erudição. Diz que_ na verdade é seu personagem narrador quem diz, Jacobo Deza_, segundo leu em um livro de um seu compatriota espanhol, o termo achado para definir o parentesco da "co-foda" (sinônimo "grosseiro e contemporâneo", ele admite), ou do "co-jazer", era uma derivação do vocábulo anglo-saxão medieval ge-bryd-guma, que se declina a ser escrito como "guebrídguma". Se eu tivesse me deitado com Luiza, eu teria passado a ser guebrídguma de meu amigo aragonês. É o tipo de coisa que eu não irei falar para ele_ não compartilharei esse tesouro encravado. Ele jura de pés junto, como se diz, que eu me encontrei depois com a Luiza, e nós jazemos juntos. Para ele, nós já temos esse parentesco primal de sermos posse memorialística do conjunto de recordações sexuais de uma mesma mulher. Sempre que nos encontramos, os mesmos usuais achaques são repetidos, de que cada um não voltou a aguar mais aquela horta depois que soube que o outro passara por ali, que a mulher estava estragada para sempre e seria uma vergonha que o outro tivesse coragem de aparecer com a mixaria que deus lhe havia dado,etc.
A psicóloga me chama, ficamos um de frente ao outro, percebo o desassossego e constrangimento dela ao, enfim, ter coragem de me dizer que eu, um rapaz tão bonito, deveria ter alguém para zelar de mim, contratar uma empregada doméstica, ou, melhor, quem sabe, arranjar uma esposa, e assim vai. Meia hora de conselhos e nada de me dizer que a razão da piedade excessiva era que um filete de sangue fora visto em seu traçado nauseabundo percorrendo todo meu antebraço, como a muralha da China pelos olhos lunares do falecido Neil Armstrong. Saí da sala da psicóloga crente de que ela me usara, em seu longo expediente morto, para preencher uma das suas fichas burocráticas de atendimento mensal, que justificava seu salário, mas duas semanas depois a própria Luiza me encara, em seu gabinete, me dizendo, curto e grosso, que certos alunos haviam reclamado de detalhes perfunctórios em minha indumentária pessoal. Alguém aqui que tenha caído de gaiato nesse blog é veterinário? Não? Pois entendam, leigos, que cheiros, sabores, máculas em tecidos, filetes de sangue em braço, estão longe de poderem constranger um veterinário. Fiz estágios por longos meses em granjas de suínos, e ainda hoje, quando sinto aquela acidez característica, misto de ureia, enxofre, dejetos biológicos de todo tipo, sou tomado por uma lírica nostalgia, da mesma intensidade que quando minhas narinas são surpreendidas por um certo perfume colossal que minha primeira namorada da adolescência usava, que me para com o que eu estiver fazendo e me descentraliza, ou o rescender da relva apreendido na volta para casa pelas janelas semi-abertas do carro me devasta de saudades de uma antiga casa de campo da infância. Aprendemos sobre uma certa poesia dos cheiros na faculdade de veterinária, o que não é nem um pouco assustador para os profissionais das áreas médicas de qualquer tipo_ semana passada mesmo, meu dentista retirava as agulhas coloridas que inseria no canal do meu dente e as passavam pela averiguação de seu nariz de degustação apurada e deleitosa, tal qual um sommelier. (Aperfeiçoa-se nessa filosofia aromática as pessoas que tem filhos ou são donos devotos de animais domésticos, para quem toda escatologia envolvida são íntimos estudos e caminhos revisitados à farta ao conhecimento recolhido do alvo de seus amores.)
Pois bem, a tal Luiza estava longe de poder tirar de mim rubores de qualquer tipo, daí que eu respondi, na mais cordial das distâncias, que o problema seria resolvido se ela atendesse minha antiga recomendação de que passasse minhas aulas para mais tarde, que não fossem as primeiras, das sete da manhã, mas lá pelas nove, ou quem sabe à tarde, tendo tempo então para voltar para minha casa e me dignificar a esfregar meu couro com a mais bruta das esponjas naturais até que meu sangue minasse de saúde asséptica pelos poros. Ela assim o fez; eu, que melhorei muito da minha doce estupidez retaliativa, continuei do mesmo jeito, atento apenas para manchas visíveis, mas só tomando banho depois que voltava do colégio, no intuito de provar que aquelas sensibilidades ou eram psicossomáticas de quem não se dava bem nas notas de minha disciplina, ou eram de fontes erráticas (um adolescente padrão emana odores francamente desagradáveis, os quais eu mesmo não tolero), ou eram simplesmente birras com as quais meu nível de apreensão dos mistérios administrativos colegiais pouco se interessava. Talvez fosse isso, pensei ao dobrar a esquina em direção ao colégio: o reascender dessas antigas questiúnculas, que a tal Luiza queria mais uma vez me jogar na cara, inadmissível foi para ela que eu não me importasse ou não me vexasse. Entro pelos portões do colégio pronto para dizer sem meias palavras que eu iria abrir mão daquilo e me demitir, avanço para a porta da administração, não me faltando a percepção de que era um tanto estranho que não houvesse viva alma ali, nem o porteiro, nem as faxineiras, nem os professores ou monitores das aulas vespertinas de reforço. E eis que, nesse deserto todo, me aparece a tal Luiza, que surge da sala de administração com uma leveza ectoplásmica e se encaixa ali no umbral da porta com algo de fada ou ninfa do vale, cabelos molhados ineditamente soltos, mostrando o quanto eram longos e negros; os lábios, tão rotineiramente adeptos de um fordianismo de discursos produtivos, estavam moldados com um batom vermelho cordial e não-aberrante (lembro que meu senso de observador apurado teve tempo, naquele micro-minuto de tensão, de reconhecer esse mérito feminino nela: era um batom equilibrado, que se condicionava com precisão elegante ao seu espectro de emanação mulheril, mostrava um auto-conhecimento orgulhoso, seguro e de extrema perícia, não são todas as mulheres que tem isso, isso é uma arte invejável_ de modos que naquela fagulha de racionalização que precede a catástrofe me passou cristalinamente pela cabeça: se eu cair hoje, se eu não aguentar e ceder, se eu me trair e me mostrar fraco e cediço, será por causa desse batom). Ela usava um vestido cuja barra ia até os joelhos, mostrando pernas bonitas, lisas, bem torneadas, pernas de uma mulher que envelhecia com uma lascívia concentrada e não de todo secreta (lembrei que haviam os comentários entre colegas professores que evidenciavam uma curiosidade sobre sua vida de divorciada reservada). Não era a mesma mulher, eram o que as faculdades do senso comum diante o inesperado queriam que eu pensasse naquela hora, mas o que eu tinha firme ao me estacar diante aquela visão era a convicção de que era a mesma mulher; talvez a outra, a intrusa e metade debilitada, fosse a que tinha que se confrontar com a psicopatologia do cotidiano de um colégio como aquele, a Luiza das calças jeans e do rosto sem maquiagem e despersonalizadamente assexuado das reuniões de fechamento de diário que a cada dois meses tínhamos que nos submeter; e a Luiza legítima fosse aquela revelação noturna que se mostrava para mim em pleno dia, como um convite a uma iniciação a uma ciência privilegiada. Ela me disse_ a voz doce, calibradamente trêmula (meu deus, ela era profissional, pensei, daí que sempre me pareceu altiva a sua indiferença ao atravessar aqueles corredores com beldades ingênuas e assustadas de mocinhas de 16 anos): Charlles, eu te vejo sempre sozinho, sem companhia. Pensei se nós, nós dois, não poderíamos, sei lá, um dia, sairmos juntos para jantar, tomarmos um vinho.
Recordo que Bernard Shaw dizia que nada engrandece mais a experiência de uma pessoa do que os momentos de intenso constrangimento pelos quais ela passa. As gafes de Shaw são antológicas, as vaias e ovações que recebeu ao longo de seus 90 anos de vida: lembro que certa vez, ao entrar por uma sala até um bastidor de onde iria discursar para um grande público, tropeçou e rolou pelo chão, sendo que imediatamente se levantou e continuou caminhando como se absolutamente nada tivesse acontecido. Em certa medida, meu comportamento sempre foi inspirado em Shaw, ainda mais pela atitude desabrida que o irlandês possuía em não se importar em não usar as palavras aprazíveis exigidas pelos atos sociais. E meu histórico de momentos ruins inesquecíveis é arrepiantemente extenso; mas estar de frente à escritorial coordenadora Luiza e ter que suportar friamente que ela estivesse me passando uma cantada, às 3 horas da tarde desses verões inglórios do aquecimento global, tendo urdido uma espetacular e na certa dificultosa evasão de todo mundo para que o colégio servisse inteiramente ao seu intento (apenas ela e eu, eu e ela ali), era algo que exorbitava em muito meu estômago de avestruz para digerir impavidamente o constrangimento. Eu desconversei da melhor maneira que pude, mas tudo foi um grande desastre. Disse a ela que eu já tinha uma namorada, que me sentia envaidecido pelo seu convite, mas eu tinha que recusar. Foi uma auto-violência extrema, ainda hoje, ao pensar nisso, faço uma careta e digo comigo "Cacilda!". Analisei ali que nada há de pior do que uma mulher rejeitada, é o mais cruel dos inimigos que se pretenda ter. Era meu ultimato para abandonar o colégio.
E olha só as coincidências: relatei o fato a um amigo apenas, numa noite de bebedeira que ambos tivemos em um bar da cidade. Esse amigo, um tipo aragonês baixinho, barrigudo, careca e com uma falha num dos incisivos, dado a um riso de alegria suprema que lhe é um acometimento natural desde que acorda até o horário em que vai dormir (alguém que nunca, nem na circunstância do falecimento de seu pai, vi de mau-humor), me disse, após cinco minutos de prefácio monologal hilário recheado de frases como "não acredito", "não pode ser", que fazia um ano que ele e a Luiza eram amantes. Olhei-o embasbacado: "sério?". Tive uma dessas decepções egoístas que prescinde de controle mental, em que vi a altiva Luiza pega por aquele amigo descarado e mandrião; ela merecia algo melhor, pensei e disse a ele. Ele concordou, bebendo mais um copo de cerveja e fazendo sua voz em soprano de quem finge se importar para que outros não lhe ouvissem e preservasse a honra de sua vítima: ela é insaciável, precisa de ver! Pôs-se a contar detalhes picantes que fizeram a noite se estender por mais duas horas além do previsto. Era tão simpático em sua canastrice, tão detentor de uma auto-depreciação adstringente, que no final achei que havia algo de dignamente romântico nas farras pantagruélicas que os dois realizavam juntos, fazia mais que um ano, em segredo tão bem guardado que nem as duas filhas que moravam com ela sabiam. Ainda faltavam dois meses para fechar o ano, e eu havia informado ao colégio que só cumpriria a agenda e sairia dali. Via a Luiza em seu jeans e camisas formais, séria, constrita, e imaginava-a dizendo o que meu amigo afirmava que ela dizia, e se posicionando nos malabarismos que ele descrevia prontamente que fazia.
E eis que, para concluir, encontro um tesouro no último volume de Seu Rosto Amanhã, de Javier Marías. Na página 139, do terceiro volume, da edição da Companhia das Letras, encontro a supracitada definição, que é sobre o quase delével grau de parentesco que surge entre homens que se deitaram com a mesma mulher. Marías não trata do assunto de forma grotesca nem masculinista, como pode parecer a uma primeira impressão, mas o faz com sua elegância costumeira e sua erudição. Diz que_ na verdade é seu personagem narrador quem diz, Jacobo Deza_, segundo leu em um livro de um seu compatriota espanhol, o termo achado para definir o parentesco da "co-foda" (sinônimo "grosseiro e contemporâneo", ele admite), ou do "co-jazer", era uma derivação do vocábulo anglo-saxão medieval ge-bryd-guma, que se declina a ser escrito como "guebrídguma". Se eu tivesse me deitado com Luiza, eu teria passado a ser guebrídguma de meu amigo aragonês. É o tipo de coisa que eu não irei falar para ele_ não compartilharei esse tesouro encravado. Ele jura de pés junto, como se diz, que eu me encontrei depois com a Luiza, e nós jazemos juntos. Para ele, nós já temos esse parentesco primal de sermos posse memorialística do conjunto de recordações sexuais de uma mesma mulher. Sempre que nos encontramos, os mesmos usuais achaques são repetidos, de que cada um não voltou a aguar mais aquela horta depois que soube que o outro passara por ali, que a mulher estava estragada para sempre e seria uma vergonha que o outro tivesse coragem de aparecer com a mixaria que deus lhe havia dado,etc.
Pelo livro "Aventuras (quase) sexuais de Charlles Campos"!
ResponderExcluirJá disse uma vez: as tuas histórias com figuras femininas são as melhores. As paixonites, as admirações, as que te observam, as pistoleiras, as rejeições... A maneira como você é influenciado, as descrições, enfim, toda a tua relação com o universo feminino é muito interessante e muito presente.
Ainda bem que eu tenho filhos pra provar que não vou morrer virgem.
ExcluirJá pensou? Seria interessante o leitor ter essa dúvida até o final.
ExcluirNão entendo Charlles, como você com toda essa experiência veterinária não foi para o abate, e deixou a professorzinha carente escapar.
ResponderExcluirMazá, Charlles! Se a resposta fosse outra poderia ser hoje um contista erótico hahahaha. No meio do texto pensei "será que o Charlles molhou o biscoito?" hehe.
ResponderExcluirPior que nesses ambientes de colégios e faculdades tem muitas histórias desse tipo. Já pensou um aluno recusar um convite desses de uma professora lasciva, morena e de pernas torneadas? Poderá ser zoado pelos colegas (e adolescentes não tem perdão algum, ainda mais com sexo) e fodido - de outro jeito - pela professora no final do ano. Um amigo de um amigo meu já passou por algo assim...
Ramiro e Matheus_ e, de quebra, uma resposta à Caminhante_, devo violentar a minha modéstia e confessar que minha vida sexual é até bastante rica, mas não conto os episódios de sucesso aqui por não condizer com o propósito do blog. Neles não há graça, nem o mínimo apelo filosófico, e considero escrever sobre sexo sério demais e inalcançável pelo meu nível de escrita; tanto que, já disse aqui antes, os melhores romances eróticos falam de tudo, MENOS, de sexo: vide O Teatro de Sabbath e Lolita. Escrevo esses textos, como o do post, para me remeter (sem trocadilhos, por favor!) a outras coisas, e aqui, penso, foram a higiene pessoal e a semântica para a "co-foda" de Javier Marías.
ExcluirSou bem tranquilo com essa coisa de ter sexo pela qualidade e não pela quantidade. No cotidiano, com meus amigos, tenho por método não falar de carros e nem de mulheres, assuntos intragáveis e medíocres por demais. A não ser que a mulher seja a Hannah Arendt.
Só deixa eu falar uma coisa, porque acho que não fui clara da outra vez. O nome fictício tinha o "quase" justamente porque não pensei as coisas em termos de comeu ou não comeu, e o "sexuais" era num sentido psicanalítico, de entender que simbolicamente as relações entre homens e mulheres sempre falam um pouco de sexualidade. Eu pensei nos textos muito interessantes sobre a tua avó, tua mãe, tuas tias, num comentário que você fez no Milton há muito tempo sobre tua ex e o aborto, nas tuas amigas, naquela que te acusou de ter tirado a virgindade dela, nas tuas amigas. Por fim, na Dani e agora na Júlia. Esse que é o imenso universo feminino de Charlles Campos que eu acho interessante. É uma coisa muito tua, não são todos os homens que tem tanto a dizer a esse respeito.
ResponderExcluirSobre a tua vida sexual ser satisfatória, é uma coisa que se adivinha facilmente. Se não fosse, não se daria ao luxo de dizer tantos nãos.
Caminhante,
Excluirse o Charlles cair na minha lábia dou uma sabugadinha no goiano...
ExcluirEu comento com um amigo que se eu não tivesse tido a boa sorte de encontrar a Dani, eu seria um desses beatos precoces que daria adeus em definitivo para as mulheres e me relegaria à solidão. Esse amigo_ o mesmo colega do curso de História, campeão de concursos públicos e intoxicado por Furadan_, vive em uma grande solidão sexual voluntária; comprou um carro bom, roupas, livros (embora esse último produto não venha ao caso), e nos primeiros tempos sempre era visto na companhia das mulheres. Parou com isso; viu, como eu na idade dele, que o objetivo pelo objetivo é paupérrimo, não compensa a mera satisfação física. Ele me diz que ouvir Luan Santana, e ter como retorno às suas tentativas de conversa com um mínimo de conteúdo a visão aterrorizante de um eterno e inviolável presente, o desmotivou. Pelos passeios na feira, eu aponto certas belas meninas, filhas de feirantes e moradoras do meio rural, e brinco que talvez a solução seja ele se engajar com uma dessas meninas. Alguém pode aparecer dizendo que essas podem ser as piores, como o diabo em couro de ovelha e coisa e tal, mas ele poderia ser um doutrinário, algo muito romântico mas que talvez dê certo. (Minha crítica sempre pensa em um romance de Anatole France em que um pregador míope, naufragado em uma ilha de pinguins, batiza essas singelas aves, julgando serem pessoas.)
Digamos que eu envelheci cedo demais e fiquei misantropo.
Qualé, Ramiro. Tô fora!
ExcluirPô, Charlles, não existe pecado ao Sul do Equador...
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