segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Carpete



Neste sábado compramos um carpete para colocarmos no chão da biblioteca aqui de casa. A ideia de comprá-lo surgiu de supetão na noite de sexta-feira, enquanto a Dani e eu víamos nossa filha Júlia deitada ao lado das estantes, de bruços, a folhear o muito manuseado Asterios Polyp. A revolução mais impactante que tanto a Dani como minha mãe viram na minha personalidade após eu me tornar pai, foi a súbita despreocupação que surgiu não sei de onde em mim quando meus filhos vão até as estantes e pegam um de meus livros. Todos sabem do fanatismo fundamentalista que eu tenho quando qualquer outra pessoa pega em meus livros; eu mudo minha fisionomia, algo do lobo se encorpora em mim e eu fico rondando o intruso intrometido até subtrair de suas mãos o volume recolhido e recolocá-lo na estante. A Dani percebe imediatamente o sinal de alerta quando alguma visita inadvertida se aproxima com ineptas intenções de manuseio dos livros aqui de casa. Uma tensão de catástrofe passa pelo semblante dela e seus olhos dançam entre a visita em estado de paulatina ameaça de aproximação e meu paralisar paranoico.

Certa vez, recebíamos um casal de tios da Dani, e a recepção ia bastante bem, dentro da mais cordial normalidade, quando, num daqueles oásis de silêncio que beira o constrangimento, após todos os assuntos diplomáticos sobre escândalos das vidas dos vizinhos, casamentos, chuvas e aquele defunto que todas as tias trazem com alegria para nos surpreender e que só agora sabemos que deixou esse nível de existência fazia meses foram repassados, e que tudo, enfim, poderia acontecer, a tia da Dani inventa de olhar fixamente e de forma prolongada para uma estante pequena de livros que ficava no canto da sala, e solta essa: "Dani, por que você não limpa aquela estante desses livros e não coloca uma coleção de peças de cristais ali! Ficaria tão bonito." Só me cortou o humor para prosseguir naquela farsa, e eu me abstive a ficar apenas nas margens da coqueteria dali para diante, pensando em colocar as três vassouras da casa atrás de uma porta para ver se a mandinga arranja de funcionar pelo menos dessa vez. Pior mesmo foi a vez em que um dos primos da Dani veio nos convidar para seu casamento (não é birra contra a família dela; eles moram mais próximos de nós que os integrantes da minha família), e, com uma admirável capacidade de prestidigitação, o rapaz cata sem nenhum de nós vermos um livro que eu havia deixado sobre a mesa da cozinha e, com um pedaço de folha apoiada na capa, põe-se a desenhar o mapa que nos levaria até a fazenda onde se realizaria a cerimônia. A Dani ficou pálida e eu fui adotando um aveludado tom azul, devido ao momentâneo interrompimento instintivo de fluxo de oxigênio, e, culpados por nossa falta de atenção, não pudemos dessa vez fazer nada além de esperar que o dito terminasse o seu trabalho de GPS na capa do livro. Até hoje está ali gravada, na capa prateada de um Michael Chabon, quantos mata-burros e quantas porteiras deveríamos atravessar, e o primoroso traçado do rio que o inspirado noivo desenhara para nosso maior esclarecimento, para chegarmos à festa que, por vingança tardia, não fomos.

Assim, quando o Eric começou a pegar os livros da estante, e a Júlia o repetiu mais tarde, qual foi o espanto da Dani ao ver que meu comportamento não mudava em nada, como se nada de perigoso estivesse acontecendo. A Dani comunicou tal prodígio pelo telefone à minha mãe, ao que o pasmo foi equivalente. E isso ficou sendo a maior alteração indiscutível que a paternidade fizera em mim. Meus filhos já amassaram capas, já riscaram à caneta uma folha da Mafalda Completa, já destruíram literalmente um volume raro e muito amado das viagens do Cousteau pela Amazônia, já sujaram de molho de tomate a auto-biografia de Gunter Grass, e já deixaram um copo com água cair por sobre um Cees Nooteboom. Agora que estão mais grandinhos, não oferecem mais grandes perigos (afinal, o que faltam fazer?). Passam as páginas com cautela, já são manuseadores treinados, e tal sacrifício, penso com orgulho, valeu a pena: cada vez mais demonstram que serão grandes leitores. Eu me vi como esses pais que não planejam as carreiras profissionais dos filhos; que eles sejam o que quiser; nada mais distante que a preocupação que sejam juízes de direito ou cirurgiões plásticos; só os deixo à mercê plena dos livros, da música, de alguns filmes, de tudo que 40 anos me abalizaram saber que pode conduzi-los para um discernimento mais independente e eficaz sobre o mundo que os espera, e que eles estejam muito bem preparados. Assim, eles terão pouquíssimas chances de caírem no equívoco do filho de 16 anos do meu dentista, que deixou os  estudos e partiu para uma escola de treinamento de jogadores de futebol em São Paulo, sob o olhar impotente e chantageado do pai.

Daí que a ideia do carpete partiu da cabeça da Dani, pois as chuvas e o frio estão chegando, e o carpete protegerá nossos filhos enquanto eles passam longas horas na biblioteca. Mas devo confessar que o que primeiro passou pela cabeça desse pai contido aqui, foi: Por que não pensei nisso antes? O branco da capa do Asterios Polyp estaria bem menos encardida!

18 comentários:

  1. Amantes de livros são pessoas tão bobas quanto as outras. Em casa eu fico a olhar minhas estantes, a evocar os livros lidos, as imagens, as sensações, e gosto de ver as capas imaculadamente limpas, e fico feliz que não há crianças para sujá-las com massa de tomate, e fico infeliz que não haja crianças para lê-los, mas não consigo por na cabeça que o melhor seria doar meus livros lidos a bibliotecas públicas e sonhar com a possibilidade de que lá os meus queridinhos ganhariam as carícias de mãos jovens e mentes atentas. Ou desatentas o bastante para escrever Asterious no lugar de Asterios. O melhor mesmo é nunca, nunca mesmo confiar na memória.

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    1. Fico sempre me policiando quanto ao "Polyp", e daí que dei mancada no "Asterious". É um nominho complicado para um dislexo como eu.

      Mas, bonito esse seu comentário... Não tenho ciúmes quando outro amante de livros vem aqui em casa. Só empresto livros a um amigo meu, e a mais ninguém. Já cometi o erro de ceder à caridade com amigos que acham que livros são sacolas de pão, que tratam livros como carteiras de couro que se pode enfiar nos bolsos ou serem esquecidas em balcões de açougue. Para nunca mais.

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  2. só consigo pensar nos teus filhos lendo isso daqui a muitos anos.

    esse post não é do milton, mas lembra aquelas "trivialidades" q ele comete de vez em qdo, pela graça de Bach.

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  3. Eu tenho problemas de pessoas que puxam o livro das estantes estragando a parte de cima deles. O Luiz fez a mesma coisa do parente da Dani e uma vez escreveu em cima de um livro meu. Ainda estávamos começando e só amor explica de não ter terminado ali. Reclamei meses a fio e acho que até doei o dito cujo pra não ter que olhar a letra dele afundada na capa. Doar livros não é difícil pra mim, desde que nunca mais vá vê-los. Não suportaria ver o que as mãos descuidadas fizeram.

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    1. Os sintomas são universais! Escrever por cima de um livro me revolta; deve ser parecido à repulsa daquelas pessoas que não gostam de ver gente palitando dentes, ou arranhando o quadro negro com as unhas. Só que isso tem mais razão de causa.

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  4. Esse desleixo com os livros é irritante. Jogá-lo em qualquer canto, rabiscá-lo como se fosse jornal velho...

    Eu peço livros de presente no lugar de outra coisa qualquer e sempre ouço "mas Matheus, um livro? Não prefere algo MELHOR,que você possa usar mais vezes, algo ÚTIL?". Não adianta responder que para mim é sim algo utilíssimo e de longa duração, meus familiares me veem como o sobrinho/primo excêntrico (estranho e chato) que LÊ.

    Ok, sou chato, mas não por ler, porra!

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    1. Matheus, eu sempre afirmei que existe um forte preconceito contra pessoas que leem, neste país. Deveriam criar cotas sociais para amantes dos livros. Sempre fui discriminado, e ainda o sou_ não é brincadeira. Claro que eu nunca liguei ou me ofendi com isso. Mas a coisa anda dessa maneira mesmo que você disse: "Um livro? Que utilidade tem um livro?"

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    2. Tem uma coisa sobre utilidade de livros: as pessoas, na verdade, acham os livros uteis. Mas só os técnicos e os de autoajuda. Ficção é um mistério: por que ler histórias sobre pessoas que nunca existiram cotadas por alguém que não as viveu? Bem, daí a terceira vertente: são também úteis os livros que tratam de histórias reais, desde "O diário de Anne Frank" até o "Como juntei uma fortuna a partir da minha moedinha nº 1", do Tio Patinhas. Mas não é difícil convencer as pessoas que a ficção, numa instãncia preliminar e superficial, funciona como um livro de autoajuda, porém melhor: ele coloca problemas e suas consequências, mas, geralmente, não coloca soluções, mas encadeia problemas derivados de problemas e outros problemas sem fim derivados das soluções oprtunamente encontradas que se revelam grandes propagadoras de novos problemas e novas questões, de forma que... ficções são a melhor maneira de tratar a vida real intelectualmente, pelo distanciamento que o livro impõe por não representar a sua vida, mas a vida em geral. Ora, como isso não serve para nada? Não? Ora, vá pra casa do caralho, seu bosta!

      Então a pessoa se convence. Ou vai pra casa do caralho, o que pode ser bom. Ou não, sabe-se lá.

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    3. Penso a mesmíssima coisa na defesa da leitura e _ especificamente em seu comentário_ sobre a importância do romance, Marcos. Uma coisa que notei enquanto cursava História, era que os professores, com doutorados ou mestrados, sempre se desculpavam por não ter tempo de ler romances. Recordo que um dos professores de que mais gostava lamentava nunca ter lido Thomas Mann, e suas leituras dos romancistas do boom era muito periférica. No meio acadêmico nacional há essa visão minoritária não assumida de que romances sejam leitura de segundo plano, fato que não se repete em países de onde vieram os principais intelectuais que esses professores dedicam a vida a estudar. Em cada livro do Hobsbawn, por exemplo, há capítulos inteiros, ou partes mais extensas, dedicadas ao estudo de romances; e isso também em gente como Ginzburg, ou Walter Benjamin e Adorno.

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    4. O copo carrega a água até minha boca e se esvazia e é lavado e guardado, assim como este computador só realiza suas possibilidades até o momento em que me dá na telha desligá-lo; se o necessário serve para cobrir uma necessidade, então o útil só é útil para invariavelmente tornar-se inútil. Esse movimento eu não percebo na poesia. Operando, resultaria nas obras não sobrevivendo no passo dos anos, muito menos sendo deslidas, revalorizadas. Na autoajuda e nos técnicos, a utilidade é óbvia: são veículos de informações específicas, sendo lidos até que a informação seja decentemente assimilada, depois, talvez, servindo para uma consulta rápida; o descarte está sempre presente aí. Fico com Guimarães Rosa para explicar a inutilidade da poesia: perguntado sobre o porquê de ter abandonado uma conferencia quando começaram a discutir política, Rosa disse "Sua missão [do escritor] é muito mais importante: é o próprio homem."

      Agora, do apego com o papel: tenho nenhum. Comprei o Ulisses do Galindo faz nem dois meses e ele já está completamente destruído e rabiscado; o segundo livro do meu Guerra e Paz tem boa das paginas amareladas de mijo do meu cachorro; vários livros meus estão todos roídos, nem todos pelo cachorro, pois uma colega de família vira e mexe traz o filho pequeno dela aqui. Vejo o livro como mero suporte para o Livro. Queimados todos os exemplares da Odisseia, a obra ainda não deixa de obrar, e nem inclusive precisou da palavra escrita para ser obra quando surgiu.

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    5. Passei muito tempo crendo que a poesia era realmente inútil, João. Hoje já não penso mais assim. Minha evolução vem de sair dos esteriótipos produzidos pela poesia ruim, a poesia engajada em alguma causa rasteira clássica, seja política, ou seja o amor romântico, ou baco. Nunca gostei de parnesianismos, naturalismos, ou suicídios exemplares. A poesia melhor que conheço está fora do molde dos versos, ainda que Whitman tenha mudado a minha vida (e existe poeta mais desvinculado de fórmulas que Whitman?), ou Eliot, ou alguma coisa ainda não de toda obsoleta de Maiacóvski. Mas a grande poesia que tem me brindado vem de Hannah Arendt, desse livro cheio de verdades infinitas que é o Dialética do Esclarecimento, os livros de Edward Said, a metafísica visionária de Conrad, Bellow, Dostoiévski. Faulkner estava certo: poeta é o escritor, não o versador. E ainda acredito nessa sentença aráutica do Dostoiévski, de que a beleza salvará o mundo. Te convido a ler o excepcional livro homônimo de Todorov sobre o tema.

      Sobre o manuseio de livros, eu os rabisco, faço anotações, sublinho, batalho com eles, mas os respeito. Gosto dos livros que eu desfragmentei por a intimidade que eles me deram, ou a cumplicidade, terem-me levado a isso. Mas quando um cai no chão, eu sinto dolorosamente a queda.

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    6. Faulkner é bom demais pra ser humano. Debruçado numa escavadeira e pensando como um grego!

      O que me lembra: Guimarães Rosa, de novo, numa entrevista a Günter Lorenz: "Revisando meus exercícios líricos (Rosa publicou Magma, livro de poemas elogiadíssimo na época de seu lançamento), não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes. Principalmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à "saga", à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas."

      Conheço o Todorov teórico do fantástico e desgosto dele; fiquei sabendo por um bom professor, porém, que ele renegou a a sua própria produção para escrever A beleza salvará o mundo. Estou pra ler esse livro desde então, mas li colados um no outro Luz em Agosto, Guerra e Paz e Ulisses, e agora a faculdade retornou da greve. Farei o esforço!

      Tenho dezenove anos e vejo que esse gosto pelo "livrolivro" é quase unânime nas pessoas mais velhas; são outras gerações, enfim. Da minha geração em diante, A Biblioteca de Babel de Borges começará a perder a infinitude, ainda não sei se para o bem ou para o mal.

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  5. Rapaz, felicidade ver um filho lendo. Minha pequena está devorando livros. Aos poucos está aproveitando a liberdade de ler o que quiser na minha biblioteca, só não deixei ler o meu livro ainda, que é impróprio pra ela (espero que leia assim mesmo).

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    1. É um imenso prazer vê-los, né, Cassionei! É muito bom isso!

      Seu comentário me fez lembrar dos filhos do Hemingway quando pré-adolescentes, já lendo, por facilitação do pai, o muito diabolizado e censurado Ulysses. Há um diálogo fenomenal deles no Ilhas da Corrente sobre isso: todos os moleques de sua escola lendo as literaturas amenas instituídas, e os dois lendo Ulysses, pelas mãos do pai.

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  6. Lembro da mãe do Scliar, que escondia não escondendo dele os livros do Erico Verissimo. Boa forma de provocar a leitura.

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  7. É engraçado que muitas destas mesmas pessoas que não leem ficção são viciadas em novelas, seriados, cinema...

    O pai de João Ubaldo era um excêntrico estimulador da leitura.

    http://www.releituras.com/joaoubaldo_memoria.asp

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