sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Bolaño no livro de Javier Cercas


O começo de Soldados de Salamina, o livro baluarte de Javier Cervas, me provocou desânimo. Avancei devagar pela primeira das três partes do romance, a leitura estacava, meus olhos percorriam as estantes atrás de algum outro livro que me retirasse da obrigação daquilo. Não havia nada de novo na empreitada do autor em desvendar um evento muito secundário da história de seu país, em desencavar um escritor mediano já esquecido das hordas do passado e investi-lo de interesse pela perfídia de ter sido um misto de traidor e alguém filosoficamente consciente da inutilidade em ter escapado da morte certa para ser um mero vivente cotidiano. A narrativa de Cercas é competente nessa primeira parte, seu diálogos são precisos, suas observações mostram aqui e ali mensagens de um grande arte escondida, de um talento que ameaça desdobrar-se da linguagem jornalística e transcender da reportagem requintada para uma obra genuína, e é justamente essa suspeita que me irritava, pois a via recrudescer sempre, sem cumprir a promessa. O que atrapalhava que eu gostasse de Cercas é a enorme sombra de seu conterrâneo e homônimo, Javier Marías, e a expectativa inercial de que eu fosse obter a mesma imersão profunda dos livros de Marías nesse livro de Cercas. Mas tudo bem: enfrentemos a narrativa despretensiosa e leve, fluida tal qual um rio dos bosques espanhóis pelos quais se refugiou o personagem Rafael Sánchez Mazas. Aceitemos a grande humildade de Cercas na escrita.

Ganha-se na perseverança. A segunda parte do livro, a que se centra de vez na vida de Sánchez Mazas, oferece um Cercas excessivamente seguro de si, um Cercas apaixonado pelo tema e pela escrita, a ponto da excelência encontrada aqui formar um descompasso com aquelas 75 páginas iniciais. A segunda parte, intitulada Soldados de Salamina, é soberba, de enorme beleza e sensibilidade. Acredito que seja uma das mais satisfatórias entregas que tive nesses últimos anos. Cercas simplesmente se apresenta exultante nessas páginas. O que se poderia dizer em desfavor dele aqui seria sua desmascarada entrega à voz de Garcia Márquez: há vários períodos que emulam com abuso os cacoetes epidêmicos da leitura desprotegida do autor de Cem Anos de Solidão, chegando Cercas a copiar parte da famigerada primeira frase deste romance em alguns pontos (além de arremedos borgeanos evidentes mas não deletérios, como essa frase, encontrada na página 117: "O fato, que pode parecer estranho, não é totalmente inverossímil.") Mas Cercas, talvez involuntariamente, traz essas características (que estão longe de serem limitações) para seu lado, provocando deslumbramento no leitor quando consegue mostrar sua própria voz naquelas que são as passagens mais belas do livro. A conclusão estoica e irredimida da vida de Mazas, por exemplo, é comovente (páginas 140-1), e em nada fica a dever às melhores coisas que Márquez e Borges escreveram.

A terceira parte do livro é um deleite para os amantes da literatura latino-americana, sobretudo os leitores de Roberto Bolaño. Uma das famas de Soldados de Salamina é o fato quase errático de Roberto Bolaño ser um de seus personagens, antes de Bolaño chegar a ser o portento das letras que é hoje e antes mesmo de chegar a ser conhecido fora de um círculo restrito de literatos. Tanto que Cercas apresenta Bolaño desta forma: "Um de meus primeiros entrevistados foi Roberto Bolaño. Bolaño, que é escritor e chileno, vivia já fazia muito tempo em Blanes, um povoado litorâneo situado na fronteira entre Barcelona e Gerona; tinha 47 anos, um bom número de livros nas costas e esse ar inconfundível de camelô hippie que aflige tantos latino-americanos de sua geração exilados na Europa." E os diálogos entre Cercas e Bolaño são impagáveis. É impossível não se emocionar com Bolaño aqui (Cercas diz que as falas do chileno aparecidas no livro foram gravadas, o que sugere que são apresentadas ipsis litteris). O que imediatamente chama a atenção são as diferenças entre esses dois autores: Cercas é um escritor indissociavelmente humilde, sem nenhum pudor em reconhecer sua medianidade, tanto que se assombra ao descobrir que Bolaño leu seus dois primeiros livros obliviados (eu leio até papel caído na rua, explica Bolaño). O Bolaño de Soldados de Salamina, quando recebe o diagnóstico médico de pancreatite, diz que sonhou estar um um ringue diante um imenso lutador de sumô, e sentiu uma tristeza infinita por ver que iria morrer antes de escrever tudo que tinha na cabeça, todas as pessoas que conheceu pelo mundo e foram mortas na tentativa de externarem suas vozes jovens contra a realidade, e que não poderiam ganhar através dele a página escrita porque ele seria morto por um oponente oriental implacável. As falas de Bolaño aqui, sendo literalmente dele ou não, são obras-primas por si mesmas. Lê-se isso com lágrimas nos olhos, um aperto no coração, uma certa saudade ilógica, e um quê de felicidade incompreensível. Ouso pensar que Bolaño deve muito de seu despertar a essa sua revificação promovida por Cercas. O chileno aqui se mostra um cara simpático, acolhedor, falando de tudo com "uma estranha paixão gelada, que no começo me fascinou e depois me incomodou" (Cercas)

2 comentários:

  1. A fala de Bolaño sobre papeis na rua na verdade vem de Cervantes. Charlles, você colocou lá "Cavalos" de Salamina.

    Eu gostei da primeira parte, assim como das outras. Se lê tão rápido que não deu tempo de pensar em outro livro. Não esqueço de um personagem que faltava lamber o prato, ao pedir refeições gigantescas. Você não ficou com a sensação que o livro poderia ter acabado umas duas páginas antes, sem a reflexão final? (Se tivesse o livro em mãos te indicava pontualmente.)

    Gosto desse livro, mas como disse em um comentário, há uns dois meses, ainda prefiro Nove Noites, que lida com uma narrativa similar, a meu ver.

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    1. Obrigado pela correção. É de Cervantes? Típico de Bolaño: mais à frente no livro, ele usa uma frase de César Vallejo.

      A primeira parte é um tanto morna e jornalística, mas tem, como disse, suas qualidades. O personagem a que se refere é o historiador Miquel Aguirre.

      É um livro que tem lá seus defeitos, um deles sendo a falta de pretensão de Cercas, o que talvez seja um mérito já que tal história não teria rendido mais que as 200 curtas páginas usadas para contá-la. Mas vamos lá: Cercas, pelo que diz, fez a via sacra de abandonar o jornalismo e tentar a vida literária pura e simples, não conseguindo e tendo que retornar à imprensa, como ele mesmo diz, "como um cachorro com o rabo entre as pernas". Servia até café para seu editor. Cercas é, antes de escritor, um repórter_ fato salientado num dos diálogos com Bolaño. Faltou a esse romance o que Bolaño conseguiu fazer em seus melhores livros (inclusive o conciso Noturno do Chile): a mitificação, o mistério, aquilo que Bellow se referia como o esoterismo dos grandes romances. Por isso a segunda parte é tão individualizada, com a intensidade de uma escrita poética e lúcida que por vezes alcança essa qualidade. Mas é uma prosa jornalística de primeira, com uma meritosa margem de independência. Tanto que me interessei por ler Anatomia de um Instante.

      Ainda não li Nove Noites.

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