domingo, 11 de maio de 2014

Em que acreditam os escritores ( I )



Saul Bellow: foi um dos últimos escritores esotéricos norte-americanos. O que pega é que ele foi melhor e mais inteligente que todos os outros, daí não ser encorajador para ninguém analisar criticamente suas crenças espirituais. Ele acreditava em Deus e na prevalência do espírito além da carne, mas em um deus distante do homem, um deus que deveria ser alcançado em seu elevado padrão de comunicação através da melhora intelectual da espécie. Há uma parte memorável de Sr. Sammler em que ele imagina o homem daqui a bilhões de anos, e escreve: "será então que esse nosso irmão de espécie estaria apto a conversar com deus?". Em sua biografia romanceada de Allan Bloom, ele escreve que não acreditava que alguém como Bloom desaparecia para sempre após a morte. Bellow estava à frente dos modismos e das conjunções filosóficas de sua classe de intelectuais; o mais culto de todos os escritores (para se ombrear a ele, somente Borges, Cortázar e Anthony Burguess), ele simplesmente evitava falar a sério sobre deus, pois, na sua concepção, tratava-se do mais importante (ou talvez o único) assunto da literatura, mas que não era cabível tratar do tema de forma simplória. Uma de suas frases principais era que não acreditava em nada que a criação técnica do homem havia promovido, pois trezentos anos de ciência era um estágio de engatinhamento que não dava a ninguém o direito de supor que tudo já fora explicado. Em outra parte antológica, ele ouve um homem que fora ateu convicto durante toda a existência ter uma revelação em um metrô de Londres, e dizer: "Nada é absurdo o suficiente para existir; talvez, então, Deus exista!". Ele expressava todas essas ideias através de seus personagens.

Isaac Bashevis Singer: em uma entrevista, perguntado se ainda acreditava em Deus, Singer responde que sim, mas que, se tivesse oportunidade, faria um grande cartaz de indignação e esfregaria na cara de deus. Singer está para o judaísmo assim como Tolstói está para o cristianismo: ele foi um devoto assolado por dúvidas e por lapsos duradouros de niilismo, mas na maior parte de sua obra vemos a crença batalhada através de uma compreensão libertária sobre o flagelo  humano. Vemos em sua ficção que a transcendência não é mero artifício literário, como o realismo fantástico dos escritores latino-americanos: o primitivismo conservado em que vive os últimos judeus tradicionais de seus contos remete à força da fé diante um mundo cuja aproximação arrasará essa fé de modo inexorável. Singer fez algo absolutamente inédito (e muito revolucionário em seu contexto) para um intelectual do século XX: se afundou cada vez mais em um universo avesso à modernidade em todos os sentidos, deu as costas deliberadamente para o século do esclarecimento niilista em que vivia. Mas não era, claro, um descerebrado anacrônico; em seus romances e contos nunca deixou de fazer um intercâmbio crítico com a futilidade da vida urbana americana (notavelmente em Sombras sobre o rio Hudson); em uma de suas novelas tardias, O penitente, ele mostra um narrador que foi empresário bem sucedido na megalópolis americana que abandona tudo para viver na tradição fechada do talmudismo aldeão em Jerusalém: e expõe todo o repúdio inicial diante uma sociedade minoritária religiosa também infestada pela ortodoxia vazia da busca por saciedade.

Albert Camus: não há como ler os diários de Camus sem intuir que, se Camus não tivesse morrido em um desastre de automóvel, provavelmente teria retirado a vida com as próprias mãos. Camus era um ateu que sentia uma enorme, colossal, orfandade de deus. Todos os seus livros tratam de deus, toda a sua vida era obcecada pela impossibilidade de viver sem a guarda de um deus. Ele trai uma nostalgia da simplicidade infantil em que toda a crença era possível em seus surpreendentes rasgos poéticos ao escrever sobre a natureza, mas era francês demais em seu colonialismo, era infestado pelo ultra-racionalismo de um exilado e de um apátrida que vivera as diásporas pós-coloniais do século para não ser outra coisa que um niilista. Mas não conseguia ser um niilista pleno: por detrás da doutrina filosófica de pensador moderno muito requerido, sua escrita traz uma série de contradições e pequenas mas relevantes auto-traições. Sua precocidade foi seu maior inimigo, e o fato de morrer ainda jovem sem que tivesse combatido o esteriótipo sofisticado de sua obra é um dos mais cruentos sarcasmos da literatura. O hipotético Camus velho, resguardado na segurança relativa de seu gabinete da manutenção do existencialismo como escola jovial para arrebatar adolescentes, teria se virado para uma cogitação menos defensiva, com menor cosmética dureza, rumo à possibilidade da transcendência. Teria feito como Bellow e Nooteboom: se preocuparia menos com esses terrores da alma. Em A peste, temos a mais pura posição de Camus quanto a isso (Camus foi um filósofo capenga, um bom ficcionista, mas um grande poeta e um ensaísta de mão cheia), na decisão dos dois personagens principais isolados na cidade contaminada, o médico e o fotógrafo, que se investem da qualidade de santos sem deus em darem suas vidas para a amortização da dor dos condenados e na premissa inevitável de que logo sucumbirão à morte pela doença. O ateísmo de Camus era algo que deveria ser conceituado e preenchido por ele; havia uma moral elevada, sobre-humana, quase religiosamente auto-martirizante em sua abdicação do mundo; havia uma nostalgia selvagem por alguma forma de compreensão desagrilhoada das filosofias e posturas congeladas, exigidas para se manter socialmente íntegro no século da destruição total. Camus em nada tinha a ver com Sartre; Sartre era um ateu político, detinha uma concepção segura da ausência de deus, era biologicamente imune a questões de sublimidade, era terreno até a medula e adaptado ao máximo aos confortos da cidade moderna; era um animal muito mais dotado de fatores de sobrevivência que seu companheiro de pensamento filosófico argelino; basta analisarmos naquilo na escrita em que os dois mais se aproximaram, seus volumes de contos, para percebermos o quanto eram diferentes e tornados semelhantes por uma convenção mercadológica editorial: em O exílio e o reino, de Camus, vemos a orfandade de personagens sem uma pátria definida, viajantes, passantes, turistas em países exóticos, pessoas à procura em meio à devassidão de um mundo que não oferece guarida; um livro escrito por um eterno exilado, que necessita criar para si um modo original de visão, desapegado dos valores políticos e espirituais do Império;  já em O muro, livro de contos de Sartre, vemos todos os sagrados temas europeus escritos por um europeu consolidado por séculos de boa digestão: um assassino psicopata transitando por Paris; um intelectual sexualmente impotente partindo seu amargor com novas formas de carinho na regra matrimonial a ser mantida; prisioneiros de guerra que se traem em uma comédia de erros (a única manifestação de humor de Sartre). Camus era oriental, místico inconsciente e religioso, que morreu em uma lamentável precocidade.

Thomas Bernhard: o pragmatismo minimalista de Bernhard é algo assustador. Bernhard nunca escreveu sobre deus, sobre crer ou não crer, sobre a transcendência. Sua escrita é uma força natural de ódio concentrado, expurgador, asséptica. Ele fundou na catarse todo o motivo de sua obra: ler Bernhard é livrar-se das toxinas espirituais, dos envenenamentos crônicos que a história e a vida entre os homens nos impregna. Seus personagens estão todos no limite: no limite da estupidez consentida em seguir rebanhos, ou no limite da contravenção, da não-coaptação, da não aceitação. Na lápide do tio do personagem de Extinção, por exemplo, lemos "aqui jaz aquele que deixou os estúpidos para trás na hora certa". Bernhard, assim como na arte, foi um homem coerente: foi odiado por sua pátria, processado pelas igrejas institucionais, e pessoa respeitada mas non grata pelas academias (que ainda assim incorriam no erro de lhe outorgar prêmios e lhe dar motivos para ler "agradecimentos" ácidos que lhes faziam cair um tanto mais o reboco dos bustos de pensadores proeminentes). Em O náufrago, faz seu narrador dizer que era uma estultície viver até os 50 anos. Doente crônico, Bernhard viveu com a iminência da morte desde menino, mas sua convivência com a finitude é algo desprovido quase por completo de filosofia. Seu trato com a mortalidade é cheia de humor, de uma ternura nem sempre bem sublinhada mas fortemente percebida pelos excluídos e sofridos e renitentes. Seu único inimigo nunca foi a potestade ou o vazio de qualquer resposta quando se clama aos céus, mas a ignorância. Bernhard foi o irado e profundo contestador da ignorância e do atraso humano, investindo-se contra todas as formas seculares e institucionalizadas desse atraso. Foi o escritor mais bem equilibrado na realidade desse mundo, justamente por mostrar em cada frase seu inconformismo absoluto com ela. Não era ateu e nem um crente: era um radical reacionário em seu mais exímio e puro significado.

Um comentário:

  1. Charlles, se captei bem… Seguir-se-á um conjunto de posts, no qual você tentará nos presentear, com sua síntese, os valores de alguns autores, embora contraditórios entre si, mas que podem nos auxiliar na compreensão dessa cultura judaico-cristã, complexa, à qual pertencemos. Se for isso, então deixo a minha específica sobre a referida…
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    *
    ANDROIDS
    by ramiro conceição
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    *
    Muita coisa na rede diz que
    “a poesia política… morreu,
    após a bala de Maiakovski.”
    *
    “Crítica social? Ora,
    vire um jornalista!”
    *
    Dessa maneira,
    em uma zoeira,
    abortados, nasceram publicitários,
    apresentadores de TV, astrólogos,
    comentaristas de futebol e até
    pasmem… gurus sentimentais.
    Alguns receberam até a chave
    da respectiva cidade. Pasmem!
    *
    O lirismo foi proibido a não ser
    quando…travestido com ironia.
    Dessa maneira, abandonou-se
    a última e matou-se o primeiro:
    um pastiche… Não deu pra ler!
    *
    Separaram-se palavras. Uniram-se palavras.
    inventaram-se aquelas… projetadas ao céu,
    à noite, a laser… Era a idade do silício onde
    na batucada
    dos teclados:
    *
    nunca tantos
    falaram tanto
    com tantos,
    com tanta
    estupidez.
    *
    Por isso,
    diante desse avesso do mundo,
    por não separar a arte da política,
    às vezes, a olhar-me no espelho,
    pergunto-me com terror:
    *
    “Naquela noite, quando cães
    fugiram do inferno, de qual
    lado da gritaria eu estaria
    naquele gueto de Cracóvia?”

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