quinta-feira, 8 de maio de 2014

A felicidade correndo pelas largas campinas



É fácil falar sobre a morte. A literatura se fundamenta desde sua gênese no ótimo tom lúgubre da saudade. Por isso gerações de grandes escritores da angústia da perda, da lamúria. Difícil mesmo, quase impossível, é escrever bem sobre a saúde e a felicidade. O propósito é tão impossível que são poucos os que acreditam que a felicidade realmente exista, e esses são combatidos pela excessiva relativização que a felicidade em um mundo onde impera o sofrimento por todos os lados oferece como auto-crítica. Ser feliz com a simples constatação de que minha vizinha, uma senhora costureira de sessenta anos, adotou uma cachorrinha como única companheira (e ouvir o terno arrastar do prato de comida pelo chão pela cachorrinha brincalhona, o dia todo), já é ser dotado de um estágio de alma matizado pela incômoda consciência da alteridade; e como ser feliz, então, com o linchamento reportado pelos jornais, ou as infinitas outras mortes, as nunca apaziguadas caras de desespero no mundo todo, provocadas pelas tantas fontes de agruras das quais esse mundo é generoso.

Os escritores russos sabem ser os mais tristes e ao mesmo tempo os mais felizes. São os únicos, fora os poetas, que realmente conseguem exprimir a felicidade na página. Há um sem número de páginas de felicidade em Guerra e paz e Anna Kariênina, no mais altíssimo estilo_ porque, pior que o sexo mal escrito, a felicidade má escrita destrói a carreira de um escritor para sempre. Também Cholokov, o ótimo mas esquecido escritor soviético, soube imprimir uma estranha e retroativamente ingênua felicidade em seus contos e em seu grande romance O Don silencioso. Não me recordo qual conto dele li certa vez em uma biblioteca pública, mas me lembro perfeitamente que o ar estava um tanto mais leve e elétrico depois que li as aventuras de um menino camponês que limpa o caminho para que Lênin passe pela aldeia onde mora. E em seu romance, há uma cena de reconciliação na frente de batalha de dois inimigos jurados que traz a felicidade do perdão dado e consentido. E também, em Turgueniév há aquela felicidade pelas largas campinas e pelo gelo que torna os sonhos primordiais do homem mais tangíveis quando ele está entregue à natureza. 

Me ocorreu escrever sobre a felicidade porque, em contrapartida, na casa solitária, hoje me pesa um punho fechado da tristeza. Disse a um amigo que não escreveria sobre isso, que não quero mais pôr aqui textos que avancem uma polegada a mais no culto da lamúria. Mas o fato é que perdi meu magnânimo e majestoso amigo, meu cão rottweiler, Miles Davis, na sexta-feira passada. E hoje, minha esposa e filhos tendo ido para a capital, passar 5 dias na casa da minha mãe, estou em absoluta solidão aqui em casa. Por seis anos nunca estive só. Miles Davis sempre foi minha companhia. E isso dói muito agora, dói de uma maneira única que eu jamais havia experimentado. Sinto tanta falta dele que o mínimo movimento dos calangos no quintal, ou do vento nas janelas, me acende subitamente uma alegria sem lógica por pensar "é ele, é o Miles!"; e o quanto essa alegria é sádica por se esvanecer diante a realidade de que não pode ser ele. É uma saudade feita para ele, feita para se sentir entre um homem e um cão; de certa forma, é mais dura de suportar do que a perda de meu pai, por se tratar de canais de amor distintos. Tudo em mim está condicionado pela escora que Miles oferecia: abro a geladeira e instintivamente espero que ele pule na janela pedindo um naco do que for que eu vou pegar para mim; se eu tiro o carro da garagem, eu paro um instante e me contenho de não ir aos fundos prender o Miles na coleira; quando chega a tardinha, como agora, eu me contenho para não recair na disciplina cultivada de esperar que ele bata com a pata na porta me lembrando que é a hora de passear.

Por vinte dias eu batalhei a vida dele. Levei em dois veterinários, cada um com um diagnóstico diferente. Um disse que era diabetes, mas fiz os exames de glicemia nele, e não era. O outro disse que era leptospirose, mas eu não acreditei muito. Tratei-o como sendo uma parvovirose, de início aliviado por ele ter vencido os cinco primeiros dias difíceis. Antibióticos, soroterapia, mas ele minguava cada dia mais, sem apetite. Eu tinha que jogar a comida batida e a água boca adentro dele com uma seringa. De duas em duas horas o hidratava, na esperança de que fosse as sequelas da parvovirose. Mas ele não resistiu. Depois que eu troquei o portão gradeado aqui de casa por um todo fechado, o Miles ficou triste. Na harmonia das coisas, os cães que passavam e lhe provocavam, e os moleques infernais que latiam para ele e o tiravam do sério quando voltavam da escola, era parte do que o mantinha vivo. Os moleques que eu tanto odiava! (Singer estava certo em seu conto "Alegria": sejamos sempre alegres, pois tudo anda conforme a impressão segura de que somos imortais.) Perguntei a um amigo sábio para onde vão os animais quando morrem, ele me disse que os animais tem alma, mas não espírito; seu princípio vital volta para a harmonia do cosmos para preencher de vida um outro animal à espera de nascer.

O amigo com o qual falei sobre Miles me disse que minha alegria aos poucos retornaria com um novo livro, uma nova distração, um novo cachorro. Eu devo isso ao Miles: continuarmos sendo preguiçosos e desimpedidos, machos destemidos que protegem nosso território. (Antes de me casar, a imagem de uma felicidade pessoal era Miles e eu em uma casa de campina, voltando à noite de nossas correrias pelo campo.) Eu devo isso ao Miles: voltar a ouvir sem um nó no coração as sonatas de Mozart que ele tanto amava, quando deitávamos lado a lado no colchão que eu colocava na sala e partíamos para aquelas sublimes dimensões da música_ eu acordava, lhe dava um beijo no pescoço sentindo seu delicioso odor de cachorro, e ele dava um suspiro profundíssimo.

Eu devo essa felicidade ao meu grande amigo Miles Davis. Nada de lamúria, Miles Davis. Essa noite vou ficar aqui sozinho; lá pelas nove, vou me preparar um sanduíche, e será impossível não pensar que você subirá à janela com as grandes patas solicitando o direito irrevogável do seu. E amanhã vou para a capital ficar com os meus. E vou comprar Memórias de um Caçador, de Turgueniev.

11 comentários:

  1. Charlles, isso foi bonito. Simplesmente bonito.

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  2. Pqp Charlles! Sinto-me rendido diante dessa realidade que também é minha.
    E viva a Rússia!

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  3. Charlles,

    Só queria dizer que sinto muito pelo Miles Davis.

    Assim como vc já se sentiu, hj eu me sinto: meu ideal de felicidade sou eu e meu cachorro, mesmo deitados, sem fzer nada. Eu apenas sentindo o corpo dele junto ao meu e, de vez em quando tocando-o, e ele dando aquele suspiro profundo de que está repousando depois de um longo dia. E aquele sono pesado com a barriga descoberta, de quem se sente seguro e pode se abandonar ao descanso.

    Acho que, diferente de vc já tive cachorros de quem tive que me despedir.

    Muitas vezes ficamos concentrados em nós mesmos - no impacto em nossas vidas, na nossa dor e na nossa lamúria. Mas vale a pena olhar por um outro lado também: o quanto vc impactou a vida dele e quanto vc o fez feliz. O que dizer da vida se vc, unicamente, pôde fazer feliz a existência de um outro ser?



    Inúmeras vezes, enquanto meu cachorro dormia, ele chorava, como se estivesse tendo pesadelos. Não sei até que ponto isso procede, mas sempre me deu uma enorme pena,e semprei tentei acordá-lo gentilmente quado ele passava por isso. Um dia desses vi uma cena inédita, que me tocou profundamente: meu cachorro, enquanto dormia, abanava a cauda.

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    1. Obrigado, Carina. Lindo comentário. Meu Miles frequentemente sonhava quando dormia, mas eu ficava observando-o rindo com ternura. O que mais me doeu foi isso a que se refere: te-lo feito feliz; seus últimos dias, enquanto batalhava por sua vida, parecia que eu o estava torturando,pois tinha que administrar remédios e alimentação à força, a ponto dele se esconder de mim. Mas creio que, mesmo assim, ele sabia o que eu estava fazendo. Eu o fiz muito feliz, e ele me fez muito feliz. Fiquei muito sensibilizado pelo seu comentário. Forte abraço.

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  4. Meus pêsames, meu amigo. É duro, bem sei. Há os que dizem que não, que desprezam o elo que pode se formar entre um homem e um cão ou gato... Mas estes não sabem nada.

    Turgueniev. Nunca o li, mas vou procurar. Adoro livros que têm como personagem a natureza. Mais algum para me indicar? (Já li muito London, Whitman, Thoreau...)

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    1. Obrigado, Fabricio.

      Turgueniev é maravilhoso. Há anos esperava a publicação de Memórias de um caçador, que nunca teve tradução para o Brasil. É um marco na literatura russa, esteve diretamente por detrás da emancipação dos servos russos, devido a crítica contundente que T. faz contra a escravidão. É mesmo uma obra monumental. Li dois dos 25 contos, e... (coloque aqui um superlativo de sua escolha, que estará valendo).

      Neste tema da natureza, recomendo o ótimo Knut Hamsun, títulos "Pan", e "Frutos da terra".

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  5. Obrigado pelas dicas, Charlles. Passei na livraria ontem, e não havia nenhum título do Knut Hamsun. Saíram aqui pela Atibaia, de acordo com o meu amigo que trabalha na loja, e os livros da Atibaia são difíceis de encomendar, diz ele. Mas um dia eu acho. Em compensação, achei o Turgueniev, comprei-o. Vai ser uma das próximas leituras.

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    1. Fabricio, todos os meus do Hamsun são edições velhíssimas encontradas em sebos. Há décadas não sai nada dele por aqui. Dei uma olhada por alto na Estante Virtual, e vi vários dele lá por cinco reais. "Vitória" e "Fome" são ótimos também.

      Tenho certeza que não se arrependerá de Turgueniev.

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    2. Pois passei num sebo agora de manhã e achei um livro de Hamsun chamado "... E não consegue fugir". Leu esse?

      E veja que boa notícia: a Editora 34 lança agora em junho "Absolutamente Nada e Outras Histórias", compilação de textos do Robert Walser. (Li isso na nova Piauí).

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    3. Fiquei exultante com essa informação da Piauí também, Fabricio. E que baita pedido de emprego de Walser o texto da Piauí. Antológico.

      Tenho esse do Hamsun (capa azul com um sol roxo, se não me engano). Não recomendo antes que tenha lido alguns dos grandes títulos dele. É válido como obra menor.

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