Hoje é tão fácil, mas para ter meu primeiro A Love Supreme foram necessários uma lojinha cult de entendedores esnobes num bairro chic da capital, um vendedor belga avisado pelo recentíssimo mecanismo de e-mail, um espaço num container, a travessia de um cargueiro pelo Atlântico, rodovias e rodovias interestaduais, e meses de economia monástica. A espera foi de oito semanas, e lembro com a apreensão feliz de uma criança às vésperas do natal que o ar condicionado e os vários CD´s de dar inveja, ordenadamente expostos em prateleiras de mogno inglesas, foram o hino marcial para que me botassem nas mãos o pacote inacreditável onde estavam dois dos álbuns mais elogiados do jazz: In the Silent Way e A Love Supreme. Este último, uma edição comemorativa com capa tripla de cartão e um folheto de doze páginas contendo fotos inéditas e a oração a Deus manuscrita que Coltrane vocaliza, palavra por palavra, no sax tenor da parte 4. Desde então, na época da queda da Bastilha do download, comprei-o mais duas vezes, por preços miúdos, em sebos.
Odiei-o ferrenhamente quando o ouvi. Nada me parecia mais tosco. Não era o Coltrane exuberantemente oriental de Kind of Blue, filho direto de Rimsky-Korsakov, Stravinski e o escravo negro escondido que descobriu em plenitude beatificada o sentido da vida antes de morrer no silêncio dos batedores do campo lá de cima; não era o mesmo cara que, possuído por um anjo megatômico, espontaneamente contrabandia para a nossa limitada estratosfera o solo inclassificável de luz em Flamenco Sketches. O cara havia perdido a direção depois que separou de Miles Davis. Aquilo era grafite numa parede de cal, não tintas no acrílico. Pura enganação o jazz que se rebelou na década de 1960, tudo que existira de bom e sublime ficou confinado no be-bop e no jazz modal. A Love Supreme confirmava a perda de tempo em dar ouvidos aos experts, esses entendedores de uma maçonaria do gosto que ditavam graus de ascensão estipulados em herméticas burocracias internas, que nada tinha a ver com o mundo aqui de fora. Gente que sabia por completo o nome da baronesa Rothschild, os canais certos para se chegar ao hotel de onde Chet Baker saltara pela janela, o nome das cinco músicas e do auditorium onde Louis Armstrong inspirou o ensaio clássico de Cortázar, o maior baterista de todos os tempos, o maior clarinetista de todos os tempos, o maior tocador de glockenspiel de todos os tempos (e a estupidez de não saber a diferença óbvia entre o glockenspiel, o mero xilofone, a prosaica marimba e o demodé balafon).
Não tanto para manter minhas credenciais de iniciante ingênuo mas que pode ser trabalhado junto a essa turma, mas por pensar que havia gastado tanta grana numa coisa espúria, que insisti na audição de A Love Supreme. Por coincidência, assistira naqueles dias ao filme Adorável Professor, em que Richard Dreyfuss interpreta um professor aspirante a músico que, quando avisado da gravidez de sua mulher, entra numa crise de prostração. A esposa, sentindo-se rejeitada, chora num canto da cama. O jovem Dreyfuss, cujo martírio no filme é suportar estoicamente a um cotidiano insípido de professor colegial e homem casado que cada vez mais o separa de sua ambição de ser músico, senta-se ao lado da mulher e, num esforço de espiação, justifica que a primeira vez que escutara Coltrane achara aquilo um lixo; parecia um caos sem lógica e propósito, a enrolação de um soprador de tubo que não tinha talento nem para assoviar canções de marinheiro. A pior coisa que ouvira na vida, MAS...(daí vem a parte muito emocionante, a câmera se aproximando lentamente de um Dreyfuss invadido por intrusões inesperadas de beleza, entrando licitamente em sua região própria de espaço significativo), aos poucos foi compreendendo a sublime música de Coltrane, sua força inusitada, seu jorro de ira, sua conflagração ilimitada de ternura, sua insatisfação pelo absoluto, sua incrível inteligência despojada, seu misto de clamor visceral e ódio divino, sua imposição de dizer que existia e participava do jogo, sem requintes, sem retoques, com sua recém criada sofisticação e auto-atribuido pós-doutorado em uma nova refinadíssima estética. E como essa descoberta, continua Dreyfuss, o deixou maravilhadamente sem palavras, como essa percepção de algo transcendente desatrelado do senso comum e absolutamente puro, o reduziu ao silêncio da mais valiosa alegria. Por isso, conclui, quando você me avisou que está grávida, eu senti a mesma coisa de quando descobri Coltrane. A mulher lhe esfrega a cabeça no peito:" a coisa mais linda e verdadeira que já me disse".
Precisamente hoje, Coltrane entra no Van Gelder Recording Studio, em Englewood Cliffs, no estado de Nova Jersey, junto com o baterista Elvin Jones, o baixista Jimmy Garrison e o pianista McCoy Tyner, para a gravação de uma das mais belas músicas de todos os tempos, firmemente decidido, na paráfrase a Walt Whitman, a falar em idiomas aromáticos. Poucas pretensões foram tão fielmente atendidas.
Belo texto, camarada. Deu até vontade de ouvir o disco. Valeu!
ResponderExcluirValeu, Salsa. Data histórica, hoje.
ResponderExcluirUm disco emblemático mesmo, necessário, como quase tudo o que Coltrane fez. Esse disco, paradoxalmente, mostra o início da viagem sem volta que ele impingiu a si mesmo, cheio de referenciais místico-religiosos, crença absoluta e, por meio da música, chegar a Deus. É muito para mim.
ResponderExcluirWayne Shorter deu uma entrevista afirmando que Coltrane ascendeu, com "A Love supreme". Vaticinou e não disse mais nada.
Valeu a cobertura.
Abraço
Grijó
Comentário ambíguo, meu caro Grijó. "É muito para mim." como, não gostas do álbum?
ResponderExcluirGostaria mesmo que vc postasse sobre ele, quem sabe hoje, lá no ipsis?
Abraço
Apesar do essay caminhar de maneira previsível para a resolução do tipo "então era eu que não estava preparado para o Love Supreme", o texto poderia, fácil, estar na capa de dentro de um dos discos da Prestige assinado pelo Ira Gliter.
ResponderExcluirApesar do Coltrane dos quintetos do Miles, o Trane dos Sheets of Sounds, ser um negócio fabuloso - quem não se emociona com o solo do Trane, entrecortado pelos suspiros do Flugelhorn do Miles, na gravação de My Funny Valentine desse período não tem coração - o Coltrane só consegue se desprender do Miles mais ou menos a partir do Love Supreme.
Imagino que se o Trane de Love Supreme foi de difícil digestão, o Ascension e o New Thing então não são muito a sua praia...
Caro Luiz, tenho a experiência de saber que parte da boa arte é seletiva, ela que escolhe você. Assim foi, para mim, com Faulkner, com Coltrane e vários outros. Atualmente, por exemplo, fui aceito na obra do espanhol Javiér Marías, após muita persistência minha. Após aceito, não há coisa melhor.
ResponderExcluirAdoro Coltrane. Tanto o da época de Kind of Blue, quanto o do "One Down, One Up", que deve ser o álbum dele mais exemplar da sua otimamente definida Sheets of Sounds, com a faixa título de 27 minutos. Não só é a minha praia como me deito tranquilamente na margem.
Caríssimo,
ResponderExcluirDiscos como o A Love Supreme e o Ole são definitivamente obras one or two steps further da esperiência dos quintetos do Miles e da alquemia modal do Bill Evans e do Miles. Eu particularmente não classificaria o tenor do Trane desses discos como o estilo sheets of sounds que caracterizou o seu encontro com o Miles. Coisa bem diferente é o Trane dos solos ofegantes, de meia hora, que terminaria de eternizar agora não só o tenor, mas a transversal, o barítono desse que merecia tambem que dois outros gênios se encontrassem na ficção, parindo um outro El Perseguidor.
Já escutou o encontro entre o Sheep e o Trane no album The New Thing at Newport? Esse é um período do Trane que exige mais de você. Corresponde ao arroubo de Ascension e rivaliza com a genialidade do Change of the Century do Ornette Coleman. Mas esse é ainda outro Trane.
Vou conferir as indicações, Luiz. És um versado em jazz, meu amigo!
ResponderExcluirPor esses dias estou absolutamente comprometido com o Charles Mingus. Deixei minha ranhice de lado contra downloads, e passei a invocar os orixás virtuais até exauri-los. Como todo ideólogo da honestidade relativa, eu assumia que, se econtrasse os CD´s que quero por, vamos lá, 10 a 15 reais cada, evitaria tomá-los de graça. Pouparia uma quantia por mês para obtê-los. Quase foi possível a realização desse propósito, pois os CD´s originais de jazz são mais baratos, mais ou menos na faixa de preço acima pretendida. Mas não se acham muitos títulos.
Daí a baixaria de baixá-los (desculpe o trocadilho). O que tu achas do Mingus? Estou ouvindo, estudando, analisando, o The Black Angel..., o Let My Children..., e o Um, Ah. Maravilhosos. E quando cheguei do meu serviço hoje às 9 horas, o que havia na memória do micro? Os 101 álbuns do Miles Davis disponibilizados pelo Torrent.