quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Love Supreme/John Coltrane, 46 Anos Hoje




Hoje é tão fácil, mas para ter meu primeiro A Love Supreme foram necessários uma lojinha cult de entendedores esnobes num bairro chic da capital, um vendedor belga avisado pelo recentíssimo mecanismo de e-mail, um espaço num container, a travessia de um cargueiro pelo Atlântico, rodovias e rodovias interestaduais, e meses de economia monástica. A espera foi de oito semanas, e lembro com a apreensão feliz de uma criança às vésperas do natal que o ar condicionado e os vários CD´s de dar inveja, ordenadamente expostos em prateleiras de mogno inglesas, foram o hino marcial para que me botassem nas mãos o pacote inacreditável onde estavam dois dos álbuns mais elogiados do jazz: In the Silent Way e A Love Supreme. Este último, uma edição comemorativa com capa tripla de cartão e um folheto de doze páginas contendo fotos inéditas e a oração a Deus manuscrita que Coltrane vocaliza, palavra por palavra, no sax tenor da parte 4. Desde então,  na época da queda da Bastilha do download, comprei-o mais duas vezes, por preços miúdos, em sebos.

Odiei-o ferrenhamente quando o ouvi. Nada me parecia mais tosco. Não era o Coltrane exuberantemente oriental de Kind of Blue, filho direto de Rimsky-Korsakov, Stravinski e o escravo negro escondido que descobriu em plenitude beatificada o sentido da vida antes de morrer no silêncio dos batedores do campo lá  de cima; não era o mesmo cara que, possuído por um anjo megatômico, espontaneamente contrabandia para a nossa limitada estratosfera o solo inclassificável de luz em Flamenco Sketches. O cara havia perdido a direção depois que separou de Miles Davis. Aquilo era grafite numa parede de cal, não tintas no acrílico. Pura enganação o  jazz que se rebelou na década de 1960, tudo que existira de bom e sublime ficou confinado no be-bop e no jazz modal. A Love Supreme confirmava a perda de tempo em dar ouvidos aos experts, esses entendedores de uma maçonaria do gosto que ditavam graus de ascensão estipulados em herméticas burocracias internas, que nada tinha a ver com o mundo aqui de fora. Gente que sabia por completo o nome da baronesa Rothschild,  os canais certos para se chegar ao hotel de onde Chet Baker saltara pela janela, o nome das cinco músicas e do auditorium onde Louis Armstrong inspirou o ensaio clássico de Cortázar, o maior baterista de todos os tempos, o maior clarinetista de todos os tempos, o maior tocador de glockenspiel de todos os tempos (e a estupidez de não saber a diferença óbvia entre o glockenspiel, o mero xilofone, a prosaica marimba e o demodé balafon).

Não tanto para manter minhas credenciais de iniciante ingênuo mas que pode ser trabalhado junto a essa turma, mas por pensar que havia gastado tanta grana numa coisa espúria, que insisti na audição de A Love Supreme. Por coincidência, assistira naqueles dias ao filme Adorável Professor, em que Richard Dreyfuss interpreta um professor aspirante a músico que, quando avisado da gravidez de sua mulher, entra numa crise de prostração. A esposa, sentindo-se rejeitada, chora num canto da cama. O jovem Dreyfuss, cujo martírio no filme é suportar estoicamente a um cotidiano insípido de professor colegial e homem casado que cada vez mais o separa de sua ambição de ser músico, senta-se ao lado da mulher e, num esforço de espiação, justifica que a primeira vez que escutara Coltrane achara aquilo um lixo; parecia um caos sem lógica e propósito, a enrolação de um soprador de tubo que não tinha talento nem para assoviar canções de marinheiro. A pior coisa que ouvira na vida, MAS...(daí vem a parte muito emocionante, a câmera se aproximando lentamente de um Dreyfuss invadido por intrusões inesperadas de beleza, entrando licitamente em sua região própria de espaço significativo), aos poucos foi compreendendo a sublime música de Coltrane, sua força inusitada, seu jorro de ira, sua conflagração ilimitada de ternura, sua insatisfação pelo absoluto, sua incrível inteligência despojada, seu misto de clamor visceral e ódio divino, sua imposição de dizer que existia e participava do jogo, sem requintes, sem retoques, com sua recém criada sofisticação e auto-atribuido pós-doutorado em uma nova refinadíssima estética. E como essa descoberta, continua Dreyfuss, o deixou maravilhadamente sem palavras, como essa percepção de algo transcendente desatrelado do senso comum e absolutamente puro, o reduziu ao silêncio da mais valiosa alegria. Por isso, conclui, quando você me avisou que está grávida, eu senti a mesma coisa de quando descobri Coltrane. A mulher lhe esfrega a cabeça no peito:" a coisa mais linda e verdadeira que já me disse".

Precisamente hoje, Coltrane entra no Van Gelder Recording Studio, em Englewood Cliffs, no estado de Nova Jersey, junto com o baterista Elvin Jones, o baixista Jimmy Garrison e o pianista McCoy Tyner, para a gravação de uma das mais belas músicas de todos os tempos, firmemente decidido,  na paráfrase a Walt Whitman, a falar em idiomas aromáticos. Poucas pretensões foram tão fielmente atendidas.

8 comentários:

  1. Belo texto, camarada. Deu até vontade de ouvir o disco. Valeu!

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  2. Um disco emblemático mesmo, necessário, como quase tudo o que Coltrane fez. Esse disco, paradoxalmente, mostra o início da viagem sem volta que ele impingiu a si mesmo, cheio de referenciais místico-religiosos, crença absoluta e, por meio da música, chegar a Deus. É muito para mim.

    Wayne Shorter deu uma entrevista afirmando que Coltrane ascendeu, com "A Love supreme". Vaticinou e não disse mais nada.

    Valeu a cobertura.
    Abraço

    Grijó

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  3. Comentário ambíguo, meu caro Grijó. "É muito para mim." como, não gostas do álbum?

    Gostaria mesmo que vc postasse sobre ele, quem sabe hoje, lá no ipsis?

    Abraço

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  4. Apesar do essay caminhar de maneira previsível para a resolução do tipo "então era eu que não estava preparado para o Love Supreme", o texto poderia, fácil, estar na capa de dentro de um dos discos da Prestige assinado pelo Ira Gliter.
    Apesar do Coltrane dos quintetos do Miles, o Trane dos Sheets of Sounds, ser um negócio fabuloso - quem não se emociona com o solo do Trane, entrecortado pelos suspiros do Flugelhorn do Miles, na gravação de My Funny Valentine desse período não tem coração - o Coltrane só consegue se desprender do Miles mais ou menos a partir do Love Supreme.
    Imagino que se o Trane de Love Supreme foi de difícil digestão, o Ascension e o New Thing então não são muito a sua praia...

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  5. Caro Luiz, tenho a experiência de saber que parte da boa arte é seletiva, ela que escolhe você. Assim foi, para mim, com Faulkner, com Coltrane e vários outros. Atualmente, por exemplo, fui aceito na obra do espanhol Javiér Marías, após muita persistência minha. Após aceito, não há coisa melhor.

    Adoro Coltrane. Tanto o da época de Kind of Blue, quanto o do "One Down, One Up", que deve ser o álbum dele mais exemplar da sua otimamente definida Sheets of Sounds, com a faixa título de 27 minutos. Não só é a minha praia como me deito tranquilamente na margem.

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  6. Caríssimo,

    Discos como o A Love Supreme e o Ole são definitivamente obras one or two steps further da esperiência dos quintetos do Miles e da alquemia modal do Bill Evans e do Miles. Eu particularmente não classificaria o tenor do Trane desses discos como o estilo sheets of sounds que caracterizou o seu encontro com o Miles. Coisa bem diferente é o Trane dos solos ofegantes, de meia hora, que terminaria de eternizar agora não só o tenor, mas a transversal, o barítono desse que merecia tambem que dois outros gênios se encontrassem na ficção, parindo um outro El Perseguidor.
    Já escutou o encontro entre o Sheep e o Trane no album The New Thing at Newport? Esse é um período do Trane que exige mais de você. Corresponde ao arroubo de Ascension e rivaliza com a genialidade do Change of the Century do Ornette Coleman. Mas esse é ainda outro Trane.

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  7. Vou conferir as indicações, Luiz. És um versado em jazz, meu amigo!

    Por esses dias estou absolutamente comprometido com o Charles Mingus. Deixei minha ranhice de lado contra downloads, e passei a invocar os orixás virtuais até exauri-los. Como todo ideólogo da honestidade relativa, eu assumia que, se econtrasse os CD´s que quero por, vamos lá, 10 a 15 reais cada, evitaria tomá-los de graça. Pouparia uma quantia por mês para obtê-los. Quase foi possível a realização desse propósito, pois os CD´s originais de jazz são mais baratos, mais ou menos na faixa de preço acima pretendida. Mas não se acham muitos títulos.

    Daí a baixaria de baixá-los (desculpe o trocadilho). O que tu achas do Mingus? Estou ouvindo, estudando, analisando, o The Black Angel..., o Let My Children..., e o Um, Ah. Maravilhosos. E quando cheguei do meu serviço hoje às 9 horas, o que havia na memória do micro? Os 101 álbuns do Miles Davis disponibilizados pelo Torrent.

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