sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Século que Não Foi de Tolstói



Eu passei muito tempo amando Dostoiévski, só lendo Dostoiévski, tendo Dostoiévski como a unanimidade mais vantajosa tanto no aprendizado da escrita como dos ângulos mais certos para observar o raivoso e mesquinho diabo humano, de forma que me esqueci quase por completo de que ao lado dele há um outro desbravador de igual ou superior envergadura. Durante o século XX, Léon Tólstoi passou por um curioso processo de esquecimento que, à diferença dos tantos outros autores esquecidos, foi motivado não pela obsolescência e envelhecimento de sua obra, mas por sua imensa superioridade. Tolstói, trocando em miudos, foi relegado a um segundo plano na esfera dos grandes escritores justo por ser o maior de todos. O maior esteta, o compositor do maior painel ficcional de todos os tempos, o narrador por excelência, o dono de uma perfeição excessiva em cada um dos bastiões da escrita que frequentou, de forma que nomes sinonímicos das letras chegam a ficar pequenos perto dele. Era muito mais refinado na concisão lapidar do que Flaubert, nunca tendo sentido o terror que o francês sentia de ser escravo de sua própria técnica; sua memorialística faz com que os romances de formação produzidos pelos autores nos anos futuros percam o ar distintivo de legitimidade; suas fábulas infantis e moralistas são tão cheias de torpezas, degradações, e modelos etéreos de ascensão que dá a direção da literatura fantástica que se produziria no restante do século XX; suas descrições de pessoas  e paisagens são de uma beleza trágica e de uma reverberância para outras profundidades do discurso que é impossível ao leitor, mesmo a dez mil quilômetros de distância, não ter a certeza de que é íntimo das ruas de São Petersburgo e de Moscou, assim como não lhe sai da memória a lembrança detalhada da morte da princezinha e do rosto monumental do velho conde Bezukhov no leito de morte. Cada descrição de Tolstói tem as sombras de Rembrandt. Ser levado por ele através da enorme Rússia com seus mujiques e seus salões da aristocracia, é saber como os leitores do século XIX já sabiam o que era o cinemascope, ao mesmo tempo em que se entende porque Martin Amis disse que Tolstói foi o único escritor que conseguiu reproduzir por escrito a felicidade.

E mesmo assim, estabelece-se a incógnita do por que Tostói foi canonizado e preso a uma redoma de admiração empoeirada por cem anos, tornando-se um desses nomes citados como pontos de grandeza mas muito pouco lidos. No Brasil, por exemplo, até cinco anos atrás era algo de sobeja dificuldade achar alguma tradução de seus três romances principais, sobrando ao leitor persistente a procura por traduções antigas de Anna Karenina em sebos de livros usados, ou a espera de que o ciclo quinquenal de publicações de clássicos da literatura universal feito por revistas e jornais relançasse alguma tradução vertida do inglês. Ainda hoje, eu que procuro Guerra e Paz nas livrarias que visito, só encontro a informação no computador de buscas de que uma edição da obra em dois volumes pode ser importada de Portugal, ou então pode-se adquirir por um preço tirânico quatro volumes da LP&M que, apesar do respeito que tenho a essa editora, não me inspiram muita confiança.

É algo que penso ser motivo de um estudo mais abrangente por parte dos pensadores que se ocupam com os contrapontos ideológicos dos séculos, a razão de por que Dostoiévski foi eleito o respresentante do então moderno século XX, em detração de colocarem Tolstói como o homem estigmatizado por ter definido por inteiro o século XIX (a ponto de se enterrar na história junto com ele), e, uma nova questão que surge nesses cem anos da morte de Tolstói: a qual dos dois pertencerá agora o século XXI? Em um magnífico ensaio sobre esse assunto, escrito por Joseph Bródski e publicado pela Cia. das Letras no volume Menos que Um, Bródski diz que os autores modernos se identificaram com o conturbado e inconstante Dostoiévski. As vertentes mais importantes da intelectualidade do século XX tomaram Dostoiévski como pai  do homem urbano, exilado, perseguido por poderes institucionais inéditos que os transformariam em números, privando-os do direito à individualidade. Dostoiévski entregou dilapidado aos grandes analistas da alma da humanidade, confrontada pela primeira vez com sua bestialidade desencantada, um novo posicionamento profilático capaz de um certo esclarecimento ao ver para dentro do seu interior de caos e fúria. Em uma simples passagem de Crime e Castigo, em que Raskolnikov anda pelas ruas de Moscou tomado por uma febre cerebral, formulando no curso de seus pensamentos inconstantes a tese pessoal da grandeza que há por detrás do assassinato, há mais do que a gênese de vários procedimentos modernos da narrativa, do stream of consciousness, do relativismo moral, da quebra da linearidade da escrita, do romance coisa desprovido de personagens e ocupado no centro por impulsões do ego, o romance freudiano de Beckett.., há também o sintoma da falta de segurança total proporcionado pelas duas grandes guerras mundiais que lançou o homem na depressão desespiritualizada da modernidade.

Yasnaya Polyana
Bródski cita o imediatismo da escrita de Dostoiévski (já citado por Nabokov, que disse não haver uma página de Dostoiévski que possa fazer parte de uma compilação de textos representativos), sua falta de uma organização mais apurada da narrativa, seus aparentes excessos que descambam espontaneamente para o grotesco, seu desleixo pela limpidez e fluidez. Exceto na intensidade, Dostoiévski é o oposto de Tolstói, e um oposto que, num primeiro momento, parece diminuído diante aos atributos retilíneos de Tolstói. Tolstói era  não só melhor escritor como melhor homem que Dostoiévksi. Tolstói foi coerente com tudo que  acreditou, até mesmo quando escolheu por puro exercício de campo ser um aristocrata burgues devasso na juventude. Entendia com lucidez os ciclos ontológicos da evolução pessoal, e por isso renegou seus grandes livros, permitindo que eles circulassem livremente nos milhões de exemplares pelo mundo , sem que cobrasse um centavo dos milionários direitos autorais a que teria direito. Em seu cristianismo íntegro, em sua piedade guerreira pelos despossuídos que nada tinha de pedante, criticou duramente tanto a igreja católica por seu niilismo abjeto de culto castrador a um Cristo martirizado, quanto ao evangelismo reformador ganacioso e prostituído pela sede pelo dinheiro; partilhou sua fortuna com os empregados de sua grande propriedade rural, Yasnaya Polyana, distribuindo-lhes a posse da terra. Diante tais ações, foi excomungado pela igreja russa ortodoxa, e olhado com suspeita pelos camponeses, e, no fim da vida, quando parte em exílio voluntário para longe dos interesses surrupiadores de seus herdeiros, morre solitariamente na gare de Astapovo.

Dostoiévski, epiléptico, polemista inconstante que sentia prazer em rebaixar-se diante o inimigo ao pedir-lhe desculpas,  propenso a admirar homens nefastos do alto poder czarista, e cujo cristianismo desesperado revelava toda uma arraigada falta de fé, era, pois, o anti-Tostói. Isso fez a diferença real a seu favor. Em seu eslavismo em cantar a superioridade do povo russo sobre os demais povos da Terra, foi, por contradição, o porta-voz do homem ocidental. Tolstói era centrado demais, seus tormentos espirituais dotados de uma dor cabível em um desenho lógico previa a redenção pelo isolamento e pela fidelidade individual; Tolstói era muito oriental e completo para ser interessante ao mundo ocidental e desfragmentado do século XX. Enquanto Dostoiévski era, geneticamente, o formulador de Mersault, Antoine Roquentin, Thomas Sutpen, Stephen Dedalus, no que tinha de pesadelo, de dissonância, de intriga, de incompletude.


Escrevi esse texto motivado pela leitura de Ressurreição, o último dos três grandes romances de Tolstói que a editora CosacNaify lançou, em 2010, no Brasil. A CosacNaify está fazendo o excepcional trabalho de resgatar Tolstói ao leitor brasileiro, empreitada que tem no tradutor direto do russo, Rubens Figueiredo, sua peça chave. Já lançou a primeira tradução direto do russo de Anna Kariênina, que teve sua primeira edição esgotada, assim como a obra de Tolstói preferida de Harold Bloom, Khadji-Murát, (essa pela tradução também do ótimo Boris Schnaiderman). Os livros tem um acabamento luxuoso, capa dura, fita de seda para marcar a página, fotos, de forma que são belas peças que também servem para colocar em relevância, no tocante de quem as possui, ao menos a decoração da casa.


Lendo Ressurreição eu aventuro dizer que talvez esse novo século seja, até por saturação à toda herança bem esgotada que o modernismo recebeu de Dostoiévski, o século de Tolstói. Uma surpresa foi a descoberta de que um de meus autores preferidos, Thomas Bernhard, parece ter bebido muito da maneira de escrever de Tolstói, em sua limpidez, sua falta de pomposidades, seu discurso direto e destemido, sua repulsa a se integrar ao modernismo e às escolas da moda, sua forma minimalista de, em alguns preciosos parágrafos, usar da repetição para firmar uma ideia (a diferença fundamental que valorisa essas traduções diretas é notar esse detalhe substancial do método de escrita de Tolstói, completamente apagado nas traduções do francês e do inglês). Talvez esse novo século não suporte mais os modelos de realidade paralela, as fábulas kafkianas, as parábulas distópicas de Orwell, e, aos esclarecidos que ainda restam e aos inconformados, a crítica dura e sem artificação de Tolstói seja a nova arma para confrontar os poderes instituídos. Pois Ressurreição é uma viagem sem eufemismos e sem retoques artísticos aos porões do sistema judiciário russos (e, por derivação, brasileiros), e mais ainda, uma denúncia saturada da corrupção humana, da ignorância e, sobretudo, da crueldade gritante mas oficialmente aceita dos que se omitem.

(Sobre as novas traduções diretas dos grandes russos, esse ensaio imprescindível:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao_47/artigo_1392/Nossos_tres_russos.aspx)

6 comentários:

  1. De Tolstói eu li apenas alguns contos, então não me arrisco a uma análise. Só sei que achei muito chato e previsível tudo acabar em religião, por assim dizer. Isso para mim o tornaria séc XIX quando comparado aos dilemas sem solução de Dostô.

    No mais, devo te dizer que estou lendo Luz em Agosto, daquele autor lá que você gosta. Estou sofrendo, sofrendo, sofrendo. Tenho que interromper a leitura para respirar outros ares, límpidos e não opressivos. É assim mesmo ou eu me identifiquei de maneira exagerada com pobre Joe?

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  2. Primeiro: Luz em Agosto de qual editora, a da CosacNaify? Se for, ótimo! Tenho mais duas traduções sofríveis, a começar pelo engano que puseram no título, Luz DE Agosto. É um livro fenomenal. Muito negro mesmo, opressivo, parece um pesadelo. Camus disse que Joe é o personagem mais solitário da literatura. Note as descrições de Faulkner para os personagens. Em Santuário, um romance quase gêmeo desse, ele compara os olhos de um personagens a maçanetas. Todos tem algo de maquinário, férreo, muito embrutecido. As únicas características legitimamente humanas são as convictas obsessões a seus pecados e erros pessoais. Quando se predispõem a fazerem algo piedoso, o fazem com uma espécie de asco, como se movidos por um espírito que agonizam de repúdio dentro da carne, como é o caso do carroceiro que leva a Lena para casa no início da história; ou então, por uma inocência canhestra e prontamente perecível, antidarwiniana, como é o caso do próprio Joe, quando se conta o quanto foi rejeitado na infância. Vc acaba de revelar algo grandioso de Faulkner: não sei se vc assistiu ao Ônibus 174...

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  3. A DIFERENÇA
    by Ramiro Conceição


    A diferença entre a Arte
    e tais ínfimos senhores
    é que eles são somente
    essas contas-correntes
    com seus juros, enquanto Ela
    é um rio corrente - ao futuro.

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  4. ...em que o Padilha nos mostra toda a vida do sequestrador, de sua infância, de sua tia-avó _ única pessoa que chorou por ele na morte _, até os momentos cruciais dentro do famigerado ônibus. O Padilha segue uma linha faulkneriana tão eficiente, que, de forma secreta, não confessável, a gente acaba se reconhecendo na figura do sequestrador. Faulkner mexe com os sentimentos que estão bem abaixo da superfície polida dos sentimentos arraigados pelas convenções e lugares comuns da sociedade. Continue lendo, se renda ao livro, não brigue muito com ele, deixe-se apresentar a um universo genuíno, vc está em seuríssimas mãos, nada há de enganação e enfado ali.

    E olha que em Luz em Agosto Faulkner não apresenta toda a verve de sua força narrativa. É um de seus grandes romances, mas sua sinfonia está mais arrebatadora em Absalão, Absalão. Como Borges disse, de nenhum romance de Faulkner se sai como se entrou. Há uma mudança substancial.

    Também achava isso de Tolstoi, até CONHECÊ-LO. Estou obcecado pelo cara. (Digo CONHECÊ-LO em seus 3 grandes romances).

    Bom, não vou pergunatar porque li lá no Facebook: vc pegou o livro da biblioteca, né.

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  5. Ah, Caminhante. Agora que dei por mim pela coincidência: enquanto está lendo o Faulkner por indicação minha, eu estou lendo o Zygmunt Bauman, "Vida para Consumo", por sua indicação. Estou gostando muito!

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  6. ótimo post para encerrar o ano. vida intensa a esse blog em 2011

    rômulo arbo

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