Miles Davis |
Inteligência não é muito o que tem a ver com o caso, mas uma espécie de gosto confortável pela inanição.
Até pouco mais dos meus trinta anos eu abominava responsabilidades. Talvez o único cálculo consciente que fiz para a vida foi o de arrumar as coisas de forma a que a qualquer hora eu pudesse dar um chute e mandar tudo pelos ares. Se num emprego existisse a possibilidade recorrente de alguma coisa ou alguém me incomodar, eu faria igual ao hipotético ganhador da loteria, daria um tapa na mesa e apontaria o dedo médio num acintoso gesto de fornicação com o ar na cara de todo mundo, e me mandaria. Não à toa que passei por vários empregos, de professor a agente de segurança, de funcionário de cartório a sanitarista. Minha riqueza era não ter uma alma que dependesse de mim. Ao invés do requinte vingativo do dinheiro, as imagens que me confortavam era que não me incomodariam o completo isolamento. Dou-me muito bem comigo mesmo. Minha companhia me agrada plenamente.
Uma vez, no estágio universitário, tomei conhecimento da existência de um mendigo que havia construído uma choupana de papelão e zinco abaixo das margens de uma rodovia, e lá se refugiava do mundo. Eu voltava da granja onde estagiava e aprumava as vistas para ver mais uma vez a sua silhueta esguia, as barbas negras compridas, os cabelos saarianos desgrenhados. Numa noite, um grupo de adolescentes parara o carro de frente à sua caverna, retiraram-lhe lá de dentro, e o surraram pra valer. Somente no fim de meu compromisso universitário, quando me preparava para sair dali, foi que o vi retornando. Mendigos sempre me fascinavam. Não havia posicionamento de maior inconformismo que despojar-se de tudo, até do suicídio, e viver na mais completa contramão.
Fui assim até me darem o Miles Davis. Jamais cogitara a hipótese de ter um cachorro ou qualquer animal doméstico. Achava-me irresponsável e inseguro para cuidar dos mínimos pormenores de asseio e alimentação. Mas o Miles foi me dado por uma amigo, de forma que, ao ter a pelota de pêlos de um filhote de Rotweiller nas mãos, só me passava pela cabeça a premência imediata de achar alguém que o quisesse assim que meu amigo me desse as costas. Eu era solteiro, porque o casamento também me abominava pelas mesmas razões instrumentais que me abominava ter um cãozinho. O Miles ainda não tinha um nome, e o deixei de fora da casa, num cantinho improvisado com uma parede de tijolos e pneus para que ele não passassse pela porta sem trinco dos fundos e entrasse pela cozinha. Não achava quem o quisesse. Telefonei para vários conhecidos, sempre recebendo um não cordial, até que resolvi apelar pela exposição física do bichinho na certeza de que não haveria ser humano imune a sua fofura negra.
Acho que a coisa aconteceu quando fui pegá-lo no quintal para colocá-lo no carro, a fim de despachá-lo de uma vez por todas. Chovia uma chuva fina e constante, e aquele que ainda não era o Miles estava sentado nas patinhas traseiras e olhando para a água caíndo, com uns olhos tão maravilhados (ele tinha três meses e nunca tinha visto a chuva), uns olhinhos de encantamento com o mundo, que me fez sentar ao lado dele para selar nossa despedida com aquela descoberta tão importante. Coloquei-o em meu colo, lambi-lhe em retribuição sua linguinha, fiz-lhe cosquinhas na barriga. Não tem como fugir dessa lúdica cena de filme em que os sentimentos entre um homem e um cão dão uma esperada reviravolta e eles se tornam amigos para sempre, por isso, a partir daquele dia, minha vida transplantou-se de uma cidadezinha interiorana de Goiás para uma existência hollywoodiana de passeios na praça e sono acompanhado na solitária cama de casal. Dormíamos juntos, comíamos juntos, escutávamos música juntos. Quando o Miles ergueu pela primeira vez a patinha para fazer xixi foi um acontecimento histórico, um misto de palmas e afagos. Suas primeiras exteriorizações de braveza eram muito engraçadas. Ele pulava com as patinhas dianteiras no portão, ficando em pé, para latir para as pessoas que passavam, e soltava de quebra uns punzinhos traiçoeiros que o faziam olhar assustado para mim.
E o mais assustador foi que, para meu caráter certa vez definido por uma namorada desesperançada como o de um "eterno estudante universitário de jornalismo", despojado e leviano, eu me tornei o mais zeloso criador de cachorro. Comprava-lhe as mais caras rações, levava-lhe a passear duas vezes por dia. Quando minha mãe ficou sabendo que eu vivia com um cachorro, ela disse "Jesus amado, o pobre do animal não merece!", (referindo-se ao Miles, esteja explicado), e nunca mais teve coragem de tocar no assunto, até ver com os próprios olhos que em vez de levar um processo nas costas por maus tratos a animais, eu criava o mais bonito, limpo, domesticado e amado cão num raio de 15 mil quilômetros. A Dani, que na época era minha namorada, ficava entre tocada pela descoberta daqueles ensejos de ternura sobrenaturais e enciumada pelo excesso de espaço que o Miles tinha na casa, e foi a testemunha, uma certa vez, de minha falta de costume descomunal diante a situação inédita de ver o Miles doente. Ela me pegara chorando, desesperado, balbuciando pelo telefone feito uma criança que o Miles não queria comer fazia 3 dias e estava com febre. "Mas você não é veterinário, homem de deus!!", ela me lembrou, o que me fez aprumar de puro constrangimento e aplicar a cura no Miles com antiinflamatório e antibiótico.
Assim também foi com o casamento e, sobretudo, com os filhos. Só fiquei sabendo o quanto é fundamental e maravilhoso, quanto está tão à frente do senso comum e das preocupações comezinhas comigo mesmo, quando tive o Eric nas mãos, no dia do seu nascimento. Durante os fogos da passagem de ano de ontem, para que a Júlia não se assustasse e não despertasse do sono tão trabalhado por quinze minutos de acalanto nos braços, eu coloquei a Sétima Sinfonia de Beethoven para tocar num volume acima do normal, para que sobrepujasse o barulho da rua e a envolvesse num muro acústico de proteção. Os fogos começaram e se prolongaram por bons outros 15 minutos, e a Júlia não se incomodou. O mundo inteiro explodindo de regozijo forçado, e a Júlia com os olhos fechados, a mão espalmada contra meu peito. Ela não dá tregua para a Dani, e a Dani é absolutamente feliz com isso. Ela é tão suarenta quanto eu, mas adora ficar agarrada em meus braços enquanto eu a levo de canto a canto pela casa por muito tempo, até que nós dois estejamos encharcados um com o suor do outro. Se eu me encontrasse no tempo com a pessoa que fui há 5 anos e me informasse sobre isso, não acreditaria.
Numa dessas conversas sobre os males do mundo que tenho com um amigo, diante ao desfile de coisas que antes me deixavam depressivo e pesaroso, descobri que há alguns anos não tenho mais o luxo de ser depressivo. A filosofia só pode contar numa postura ativa quando se é pai, ou se tem um cão a que se ama da mesma forma que se ama um filho. Ainda me solidarizo com o distante mendigo dos tempos de estágio, mas, como Nick Adams certa vez respondeu à pergunta de para onde estava indo, lhe feita por uma turma de renegados, eu também vou por um caminho oposto ao dele.
ÔÔÔ, Charlles,
ResponderExcluircaso um dia venhamos a nos conhecer pessoalmente, ensine antes, por favor, ao seu bichinho aquela famosa lógica canina: “o meu amigo é seu amigo” ou “amigo de amigo é amigo”.
Outra coisa Charlles, ele não é meio surdo nem tem qualquer tipo de dislexia, isto é, por exemplo, confundir o som de “a” com o som de “ini”, né ?
Claro que a tradução não é das melhores, e sim da Nova Fronteira. Mesmo assim, o livro está fazendo a sua parte de me absorver (e mobilizar) tanto quando um livro inesquecível deve fazer.
ResponderExcluirTeu post me chamou a atenção por cenas: imaginei o Miles (que cachorro lindão, hein?) com olhar grande e inocente - que só os filhotes possuem - maravilhado com a chuva; pensei no fascínio tão grande que esse mendigo exercia (talvez tanto quanto qualquer outro mendigo), que os brutos reagiram a ele com violência - talvez os mendigos tenham o dom de nos jogar na cara o quanto nos vendemos, todo tempo, por coisas desnecessárias; me identifiquei com você desesperado com o Miles sem comer; por fim, seu olhar com seus próprios filhos, que são uma prova material da sua própria mudança, do seu enraizamento definitivo no mundo.
Milton Ribeiro, 2 filhos incondicionalmemnte amados e cuidados e muitos, muitos cães. Hoje, tenho duas cadelas.
ResponderExcluirSó eu dou banho e trato da Juno (uma pastor alemão imensa e de capacidade comparável a de qualquer técnico de futebol) e da Vicentina (uma vira-latas pretinha de nome inspirado no samba de Paulinho da Viola).
Eu odiava crianças e essas coisas no passado. Bom, somos maravilhosos.
lembrei do milton [oi, milton] lendo esse post [ok, lembrar de markey e eu era inevitável], pela simplicidade q transparece. e nunca tive cães, mas desde sempre adoro animais e crianças, carinho q eles todos sempre retribuem. agora mesmo em asunción tive a oportunidade de conhecer o Tommy, um http://pt.wikipedia.org/wiki/Weimaraner. qdo cheguei lá ele não tinha um mês, era engraçado q mal sabia andar, e tropeçava nas tentativas de correr, e ontem me despedi dele e ele já dava boas corridas atrás de mim ou fugindo de mim, na nossa brincadeira. tbm conheci a montse [montserrat], prima da bianca, menos de seis meses, loirinha (pai alemão) linda. primeira vez q vejo a bianca pegar espontaneamente uma criança no colo [ela sempre diz q não tem mto jeito, tem medo de não saber como pegar...]... a mãe, antes do parto estava depressiva, a menina tem down... agora é totalmente apaixonada pela guria e nunca a vi tão feliz... já hj sinto saudades dos dois
ResponderExcluirA Júlia está cada vez mais linda!
ResponderExcluirE teu texto belo como sempre.
Linda sua filhota.
ResponderExcluirTenho uma Júlia também, 21 nos mais velha que a sua.
Muita saúde para ela.
E quanto a seu cão Miles, digo a vc que tenho um sapo de estimação chamado T. S. Eliot, que aplaude quando ouve Charlie Haden acompanhando Ornette Coleman.
Abraço
Grijó