domingo, 2 de janeiro de 2011

Arcimboldo



O que aconteceu mesmo foi que o peru não foi sacrificado. De algum modo, nessas duas semanas em que fora colocado no terreiro da casa de frente à minha, ele conseguira, com seu charme consonantal e seu jeito de pensador reservado, reverter o propósito que o distinto senhor negro que o trouxera havia-lhe estipulado para a ceia de natal. E, no amanhecer do dia 26, quando abro a janela do quarto da minha filha para que a chuva fina que cai há tanto tempo refresque o ar interior, que surpresa vê-lo parado do lado de lá do portão, ainda vivo, com seu excesso de cristas subindo e descendo pelo pescoço suntuoso, olhando a rua deserta com a candura estóica de quem mesmo tendo caído nas graças do bom acaso de escapar do holocausto, não se desfaz de seu escudo de reserva em relação ao mundo. Respiro aliviado, reconhecendo que sua presença barulhenta (um barulho monocórdio de dois em dois minutos), e seus passos medidos de mordomo, haviam feito com que eu gostasse dele, o tornara um amigo, e digo baixinho:

_ Ah, danado! Então o senhor tá aí, firme e decidido.

Como não consta nem nos mais desatinados manuais de etiqueta gastronômica que essas aves dubiamente beneficiadas por sentenças de final de ano possam ser comidas em outras ceias que não a do natal, é certeza que ele sobreviverá por mais um ano inteiro. A primeira vez que nos vimos, ou eu o vi (tamanho o alvoroço que fez ao descer da caçamba da caminhoneta que só deve ter tido tempo de notar o homem de livro na mão sentado na cadeira de fio do outro lado da rua só quando identificou primeiro seu novo ambiente), quando o senhor Osvaldo, o negro sempre muito educado que é meu vizinho de frente, como que me o apresenta, "a patroa gosta de um peruzinho no natal".

E eis que o danado, com seu gluglu que espoca os sons habituais da cidade com uma indecifrável urgência que só a ele é séria, conquistou o senhor Osvaldo e a patroa do senhor Osvaldo, e, como a simpatia nesses casos tende a crescer ao longo do tempo, no natal que vem ele estará inconspícuo em seu lugar consagrado de animal doméstico, e minha filha já terá idade suficiente para também ter sido cativada por ele.

Arcimboldo, penso, é um bom nome.

_ Olhe lá Júlia, o quanto tá grande e bonito o Arcimboldo!

                                                    ___________________________________            

GLU-GLU-GLU
by Ramiro conceição


Estou muito desconfiado que o tal do Arcimboldo não é bobo,
porém um astuto Assimbardo culto a fazer “GLU-GLU-GLU”.
Ai dos futuros natais nessas plagas daí, do interior de Goiás! 
  
                                    (comentário do poeta Ramiro)

5 comentários:

  1. GLU-GLU-GLU
    by Ramiro conceição


    Estou muito desconfiado que o tal do Arcimboldo não é bobo,
    porém um astuto Assimbardo culto a fazer “GLU-GLU-GLU”.
    Ai dos futuros natais nessas plagas daí, do interior de Goiás!

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  2. É, Charlles,

    creio que o Arcimboldo, digo, Assimbardo, sofre daquela doença que, há muito, dá muita grana aos psiquiatras - que tratam dos políticos; mas principalmente da quase totalidade dos apresentadores, das apresentadoras e dos jornalistas da grande mídia brasileira; ou seja, a dita cuja - e suja: ONIPOTÊNCIA!

    É, caro Charlles, para os próximos natais serão necessários enormes caldeirões e, efetivamente, colossais bastões de beisebol para tocar, sem piedade!, a MARIMBA DA LIBERDADE EXPRESSÃO DESSES TRÓPICOS DO SUL nas cabeças desses urubus, que posam de águias ou de anjos; porém que não passam, na realidade, de fétidas minhocas mergulhadoras… na miséria humana!

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  3. errata:
    MARIMBA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO DESSES TRÓPICOS DO SUL.

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