sábado, 1 de janeiro de 2011

Meus Horrores

Miles Davis


Inteligência não é muito o que tem a ver com o caso, mas uma espécie de gosto confortável pela inanição.

Até pouco mais dos meus trinta anos eu abominava responsabilidades. Talvez o único cálculo consciente que  fiz para a vida foi o de arrumar as coisas de forma a que a qualquer hora eu pudesse dar um chute e mandar tudo pelos ares. Se num emprego existisse a possibilidade recorrente de alguma coisa ou alguém me incomodar, eu faria igual ao hipotético ganhador da loteria, daria um tapa na mesa e apontaria o dedo médio num acintoso gesto de fornicação com o ar na cara de todo mundo, e me mandaria. Não à toa que passei por vários empregos, de professor a agente de segurança, de funcionário de cartório a sanitarista. Minha riqueza era não ter uma alma que dependesse de mim. Ao invés do requinte vingativo do dinheiro, as imagens que me confortavam era que não me incomodariam o completo isolamento. Dou-me muito bem comigo mesmo. Minha companhia me agrada plenamente.

Uma vez, no estágio universitário, tomei conhecimento da existência de um mendigo que havia construído uma choupana de papelão e zinco abaixo das margens de uma rodovia, e lá se refugiava do mundo. Eu voltava da granja onde estagiava e aprumava as vistas para ver mais uma vez a sua silhueta esguia, as barbas negras compridas, os cabelos saarianos desgrenhados. Numa noite, um grupo de adolescentes parara o carro de frente à sua caverna, retiraram-lhe lá de dentro, e o surraram pra valer. Somente no fim de meu compromisso universitário, quando me preparava para sair dali, foi que o vi retornando. Mendigos sempre me fascinavam. Não havia posicionamento de maior inconformismo que despojar-se de tudo, até do suicídio, e viver na mais completa contramão.

Fui assim até me darem o Miles Davis. Jamais cogitara a hipótese de ter um cachorro ou qualquer animal doméstico. Achava-me irresponsável e inseguro para cuidar dos mínimos pormenores de asseio e alimentação. Mas o Miles foi me dado por uma amigo, de forma que, ao ter a pelota de pêlos de um filhote de Rotweiller nas mãos, só me passava pela cabeça a premência imediata de achar alguém que o quisesse assim que meu amigo me desse as costas. Eu era solteiro, porque o casamento também me abominava pelas mesmas razões instrumentais que me abominava ter um cãozinho. O Miles ainda não tinha um nome, e o deixei de fora da casa, num cantinho improvisado com uma parede de tijolos e pneus para que ele não passassse pela porta sem trinco dos fundos e entrasse pela cozinha. Não achava quem o quisesse. Telefonei para vários conhecidos, sempre recebendo um não cordial, até que resolvi apelar pela exposição física do bichinho na certeza de que não haveria ser humano imune a sua fofura negra.

Acho que a coisa aconteceu quando fui pegá-lo no quintal para colocá-lo no carro, a fim de despachá-lo de uma vez por todas. Chovia uma chuva fina e constante, e aquele que ainda não era o Miles estava sentado nas patinhas traseiras e olhando para a água caíndo, com uns olhos tão maravilhados (ele tinha três meses e nunca tinha visto a chuva), uns olhinhos de encantamento com o mundo, que me fez sentar ao lado dele para selar nossa despedida com aquela descoberta tão importante. Coloquei-o em meu colo, lambi-lhe em retribuição sua linguinha, fiz-lhe cosquinhas na barriga. Não tem como fugir dessa lúdica cena de filme em que os sentimentos entre um homem e um cão dão uma esperada reviravolta e eles se tornam amigos para sempre, por isso, a partir daquele dia, minha vida transplantou-se de uma cidadezinha interiorana de Goiás para uma existência hollywoodiana de passeios na praça e sono acompanhado na solitária cama de casal. Dormíamos juntos, comíamos juntos, escutávamos música juntos. Quando o Miles ergueu pela primeira vez a patinha para fazer xixi foi um acontecimento histórico, um misto de palmas e afagos. Suas primeiras exteriorizações de braveza eram muito engraçadas. Ele pulava com as patinhas dianteiras no portão, ficando em pé, para latir para as pessoas que passavam, e soltava de quebra uns punzinhos traiçoeiros que o faziam olhar assustado para mim.

E o mais assustador foi que, para meu caráter certa vez definido por uma namorada desesperançada como o de um "eterno estudante universitário de jornalismo", despojado e leviano, eu me tornei o mais zeloso criador de cachorro. Comprava-lhe as mais caras rações, levava-lhe a passear duas vezes por dia. Quando minha mãe ficou sabendo que eu vivia com um cachorro, ela disse "Jesus amado, o pobre do animal não merece!", (referindo-se ao Miles, esteja explicado), e nunca mais teve coragem de tocar no assunto, até ver com os próprios olhos que em vez de levar um processo nas costas por maus tratos a animais, eu criava o mais bonito, limpo, domesticado e amado cão num raio de 15 mil quilômetros. A Dani, que na época era minha namorada, ficava entre tocada pela descoberta daqueles ensejos de ternura sobrenaturais e enciumada pelo excesso de espaço que o Miles tinha na casa, e foi a testemunha, uma certa vez, de minha falta de costume descomunal diante a situação inédita de ver o Miles doente. Ela me pegara chorando, desesperado, balbuciando pelo telefone feito uma criança que o Miles não queria comer fazia 3 dias e estava com febre. "Mas você não é veterinário, homem de deus!!", ela me lembrou, o que me fez aprumar de puro constrangimento e aplicar a cura no Miles com antiinflamatório e antibiótico.

Assim também foi com o casamento e, sobretudo, com os filhos. Só fiquei sabendo o quanto é fundamental e maravilhoso, quanto está tão à frente do senso comum e das preocupações comezinhas comigo mesmo, quando tive o Eric nas mãos, no dia do seu nascimento. Durante os fogos da passagem de ano de ontem, para que a Júlia não se assustasse e não despertasse do sono tão trabalhado por quinze minutos de acalanto nos braços, eu coloquei a Sétima Sinfonia de Beethoven para tocar num volume acima do normal, para que sobrepujasse o barulho da rua e a envolvesse num muro acústico de proteção. Os fogos começaram e se prolongaram por bons outros 15 minutos, e a Júlia não se incomodou. O mundo inteiro explodindo de regozijo forçado, e a Júlia com os olhos fechados, a mão espalmada contra meu peito. Ela não dá tregua para a Dani, e a Dani é absolutamente feliz com isso. Ela é tão suarenta quanto eu, mas adora ficar agarrada em meus braços enquanto eu a levo de canto a canto pela casa por muito tempo, até que nós dois estejamos encharcados um com o suor do outro. Se eu me encontrasse no tempo com a pessoa que fui há 5 anos e me informasse sobre isso, não acreditaria.

Numa dessas conversas sobre os males do mundo que tenho com um amigo, diante ao desfile de coisas que antes me deixavam depressivo e pesaroso, descobri que há alguns anos não tenho mais o luxo de ser depressivo. A filosofia só pode contar numa postura ativa quando se é pai, ou se tem um cão a que se ama da mesma forma que se ama um filho. Ainda me solidarizo com o distante mendigo dos tempos de estágio, mas, como Nick Adams certa vez respondeu à pergunta de para onde estava indo, lhe feita por uma turma de renegados, eu também vou por um caminho oposto ao dele.

Júlia (3 meses hoje)


6 comentários:

  1. ÔÔÔ, Charlles,

    caso um dia venhamos a nos conhecer pessoalmente, ensine antes, por favor, ao seu bichinho aquela famosa lógica canina: “o meu amigo é seu amigo” ou “amigo de amigo é amigo”.

    Outra coisa Charlles, ele não é meio surdo nem tem qualquer tipo de dislexia, isto é, por exemplo, confundir o som de “a” com o som de “ini”, né ?

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  2. Claro que a tradução não é das melhores, e sim da Nova Fronteira. Mesmo assim, o livro está fazendo a sua parte de me absorver (e mobilizar) tanto quando um livro inesquecível deve fazer.

    Teu post me chamou a atenção por cenas: imaginei o Miles (que cachorro lindão, hein?) com olhar grande e inocente - que só os filhotes possuem - maravilhado com a chuva; pensei no fascínio tão grande que esse mendigo exercia (talvez tanto quanto qualquer outro mendigo), que os brutos reagiram a ele com violência - talvez os mendigos tenham o dom de nos jogar na cara o quanto nos vendemos, todo tempo, por coisas desnecessárias; me identifiquei com você desesperado com o Miles sem comer; por fim, seu olhar com seus próprios filhos, que são uma prova material da sua própria mudança, do seu enraizamento definitivo no mundo.

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  3. Milton Ribeiro, 2 filhos incondicionalmemnte amados e cuidados e muitos, muitos cães. Hoje, tenho duas cadelas.

    Só eu dou banho e trato da Juno (uma pastor alemão imensa e de capacidade comparável a de qualquer técnico de futebol) e da Vicentina (uma vira-latas pretinha de nome inspirado no samba de Paulinho da Viola).

    Eu odiava crianças e essas coisas no passado. Bom, somos maravilhosos.

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  4. lembrei do milton [oi, milton] lendo esse post [ok, lembrar de markey e eu era inevitável], pela simplicidade q transparece. e nunca tive cães, mas desde sempre adoro animais e crianças, carinho q eles todos sempre retribuem. agora mesmo em asunción tive a oportunidade de conhecer o Tommy, um http://pt.wikipedia.org/wiki/Weimaraner. qdo cheguei lá ele não tinha um mês, era engraçado q mal sabia andar, e tropeçava nas tentativas de correr, e ontem me despedi dele e ele já dava boas corridas atrás de mim ou fugindo de mim, na nossa brincadeira. tbm conheci a montse [montserrat], prima da bianca, menos de seis meses, loirinha (pai alemão) linda. primeira vez q vejo a bianca pegar espontaneamente uma criança no colo [ela sempre diz q não tem mto jeito, tem medo de não saber como pegar...]... a mãe, antes do parto estava depressiva, a menina tem down... agora é totalmente apaixonada pela guria e nunca a vi tão feliz... já hj sinto saudades dos dois

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  5. A Júlia está cada vez mais linda!
    E teu texto belo como sempre.

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  6. Linda sua filhota.
    Tenho uma Júlia também, 21 nos mais velha que a sua.
    Muita saúde para ela.

    E quanto a seu cão Miles, digo a vc que tenho um sapo de estimação chamado T. S. Eliot, que aplaude quando ouve Charlie Haden acompanhando Ornette Coleman.

    Abraço

    Grijó

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