(texto extraído do livro "A Era do Inconcebível", de Joshua Cooper Ramo, editado pela companhia das Letras; tradução de Donaldson M. Garschagen)
Entre seus primeiros quadros, esse é um dos mais grandiosos. De um lado a outro, mede 6,80 metros; de cima a baixo, três metros. A tela engole o observador postado diante dela. Mas o que se esperaria de cerca de vinte metros quadrados de tinta esculpida em camadas, uma pincelada sobreposta a outra, formando ondas que ainda parecem frescas? O título, Deutschlands Geisteshelden, estendendo-se ao alto, numa caligrafia que parece tensa, com letrasde trinta centímetros de altura. "Heróis Espirituais da Alemanha" _ assim se pode traduzir o título do quadro de Anselm Kiefer. A execução da tela durou dezoito meses. Kiefer trabalhou nela dos 27 aos 28 anos, entre 1972 e 1973, anos antes de ser aclamado um dos grandes pintores de nossa época, décadas antes de os críticos contemplarem essa obra em particular e dizerem: "É o tipo da coisa que olharão daqui a duzentos anos para compreender nosso momento na história".
A tela mostra um dos ambientes arquitetônicos alemães mais típicos, o salão de uma igreja luterana, todo feito de madeira. Na perspectiva do quadro, as linhas das tábuas do assoalho afastam-se do observador como os trilhos de uma ferrovia. Ao longo das paredes veem-se lâmpadas a óleo acesas, espaçadas com exatidão. Junto da base de cada uma, Kiefer escreveu o nome de um herói alemão homenageado. O que confere ao quadro uma tensão perturbadora é o que percebemos ser inevitável, o que sentimos à medida que nossos olhos avançam pelas paredes do imenso salão, passando da chama para a viga de madeira e de volta à chama: a estranha tolice de haver tanto fogo junto de tanta madeira. Aquele é um prédio à beira da combutão. (...)
Kiefer terminou o curso de arte em 1969 e seu projeto de formatura não foi o previsível quadro de campos de cores nem a escultura abstrata que se poderiam esperar de um estudante ambicioso. Em vez disso, ele apresentou uma série de fotografias em que aparecia fazendo a saudação nazista em diversos lugares da Europa. As imagens formavam um ersatz de um álbum de férias. Aqui estou saudando o Louvre. Aqui estou saudando o canal da Mancha. Se as fotografias enfureceram a banca de avaliação _ ele foi reprovado _, os professores ao menos ficaram tão perplexos que a única coisa que puderam fazer foi se esconder na pequena caverna da defesa artística. O trabalho de Kiefer, disseram, "carecia de distanciamento". Mas era exatamente isso o que ele queria. Como seria possível que alguém, quanto mais um alemão, tivesse algum distanciamento do passado recente do país, de seus hábitos culturais e históricos homicidas? O único membro da banca que votou a favor de Kiefer foi Rainer Küchenmeister, um homem sem distanciamento algum, em nenhum momento e durante o resto da vida, em relação ao que Kiefer tentava evocar. Ele compreendeu a mensagem daquelas fotos: não há meio de você se afastar da história ou de afixá-la atrás de um vidro como num diorama. A história vem à sua procura, como tinha feito com Küchenmeister e sua família.
Mais tarde, explicando suas fotos, Kiefer declarou que seria melhor vê-las de outro modo: ele se perguntava, como alemão, exatamente que tipo de DNA político ele tinha, queria sentir se alguma coisa nele mexia quando ele erguia o braço daquela maneira. Uma combinação correta de condições históricas traria à tona um instinto fascista latente, como uma doença fatal, hereditária, invisível? Ele se perguntava o que poderia fazer se um momento da história colidisse com sua vida. (...) "Pensa que esta tela está engolindo você?", pergunta Kiefer naquele quadro monumental. Bem, espere até ser engolido pela história.
Compartilho deste gosto pelo grande artista que é Anselm Kiefer. Reconheci imediatamente a imagem no blog, dessa forma resolvi ler o que tens escrito por aqui. Parabéns!
ResponderExcluirFique à vontade, Alex. Bom que tenha comentado. Kiefer exerceu um impacto único sobre mim, em especial esse quadro do cabeçalho do blog. Obrigado.
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