segunda-feira, 6 de junho de 2011

Journal of Pain


Para se achar onde fica a sala de UTI do imenso hospital foi preciso subir e descer rampas, abrir portas detrás das quais uma equipe de mulheres e rapazes de aspecto funcionalmente servil rodeavam um médico de aparência sacerdotal que me fulminou com os olhos ao responder que a UTI não era ali, errar por portarias que só confirmavam o indício de que eu estava desamparadamente sem rumo quando a cara do recepcionista por detrás do balcão revelava ser a mesma vista do início da peregrinação pelo labirinto. E labirinto não é um mero artifício de imagem. Todo o hospital onde minha esposa dera entrada nesta sexta-feira para uma cirurgia cardíaca é um labirinto, não só na inóspita sensação de amplitude ilimitada, em que as paredes se reproduzem uma nos ângulos das outras e as portas fechadas vão se constituindo opressivamente diante dos olhos, como tem a mesma urdidura que compõe o enigma espiritual dos labirintos, coisa que se sente no desbaratino espantado que há por detrás da cordialidade profissional dos atendentes e das enfermeiras de encaminhamento. Não me surpreenderia se a maca com algum paciente morto só fosse encontrada numa saleta de canto anos suficientes para que a mumificação natural tornasse impossível identificar o cadáver. 
 
Quando finalmente encontrei a UTI, fui direcionado por uma enfermeira para participar antes de uma sessão que todos os parentes dos internos têm necessariamente que passar. Entrei por uma porta com uma placa que evocava um distante ressabiamento de felicidade, escrito “Biblioteca”, e me sentei numa cadeira escolar com espalmo para o braço, junto a mais umas vinte pessoas. Havia apenas duas estantes com revistas médicas com títulos assépciados de sentido, como Psychoneurology e Journal of Pain, revistas com figuras de capa onde não se detectava o mínimo indício de subjetividade, lirismo ou a mais inodora poesia. Por alguns minutos fiquei sob o efeito de uma dessas figuras, um desenho refeito por computador de uma chapa de raio-x do perfil de uma cabeça humana. O perfil estava em azul translúcido sobre fundo negro, e na região do cérebro o artista gráfico colocara uns três nódulos de eletricidade neuronal. Era uma imagem pura demais para ser compreendida, algo que tanto me fez pensar na aparição de um santo como num desfile militar. Era tão audaciosamente desprovida de transcendência que tornava ainda mais sem propósito e mesmo cruel a obrigatoriedade daquela reunião pseudoterápica. A única informação que se podia tirar daquela imagem era de uma fé absoluta nos limites a que chegara a ciência, e uma imposição a que se aceitasse com refinada condescendência que tudo que estava além dessa parca capacidade era uma aposta para o amanhã, sendo os vários resultados deletérios fatos inquestionáveis olhados não do ponto de vista da falência humana, mas da interrogação da técnica. O primeiro relato de uma das senhoras confirmou a completa incompatibilidade da reunião com a mensagem desprovida de emoção do desenho. Seu marido há 57 dias estava confinado na UTI. Seu comportamento não mais condizia a de um ser humano; ele gritava erguendo as mãos, tendo os enfermeiros que o segurarem para não retirar os cateteres, as sondas e os fios dos aparelhos elétricos ligados a ele, e o avanço da demência o tornava cada dia mais vegetativo. A educada senhora, com sua voz baixa que cobria o silêncio da sala com uma insistência hipnótica, no meio de um choro polido de quem tem vivência suficiente para não dividir o pedantismo com estranhos, disse que havia insistido com o médico para que sedassem o marido. O médico recusara terminantemente, pois a sedação para aquele estágio em que seu marido estava era algo muito arriscado. “Mas...”, ela continuou, olhando o mesmo ponto de convergência entre as cadeiras na qual servia para se dirigir a todos, “não seria melhor que o sedassem? Não seria melhor que lhe poupassem o sofrimento, que lhe permitissem descansar?”. 

Por longos 30 minutos, a psicóloga, uma mulher alta, de 40 anos, toda empacotada de azul dos pés à cabeça, com uma daquelas belezas que uma conjunção do acaso fez se encaixar plenamente à função_ um misto de Sigourney Weaver com alguma das minhas garotas de infância com ar intelectual pelas quais me apaixonava platonicamente_, pôe-se a falar com extrema paciência com cada um dos visitantes. É mesmo de uma lentidão hipnótica, acompanhando cada palavra bem pronunciada com revoluteios delicados das mãos, em que a psicóloga olha atentamente nos olhos da pessoa convocada a falar e espera que dela saia até o último filigrama de confissão mesmo depois que a frase apresenta todos os indícios de que chegara ao fim. Ela apresenta uma curiosidade apostólica por tudo que os pais, filhos, irmãos, amigos tem a dizer sobre o que seus desafortunados parentes estão vivendo na U.T.I., o que acentua ainda mais o caráter de monasticismo que sua função possui quando a maior parte dos relatos sobre coma, quadros de demência, vegetarismos, acabam por se concluír com a confissão de que melhor seria para os pacientes se podessem morrer de uma vez e em paz. Quando é chegada a minha hora de falar, identifico que estou ali para visitar minha esposa, Daniele, ao que a psicóloga identifica imediatamente e faz um relatório que mesmo para seu conteúdo promissor é rodeado da tensão reservada do costume de sua profissão, diz que ela está bem e que tem por certo que receberá alta no fim da tarde. Sou então tomado por uma complexa felicidade profundamente desconcertante e mesquinha de mostrar aos outros que não faço parte da segregação ao qual lhes submetem os seres tornados sub-humanos que lhes esperam do outro lado do corredor, que não terei que passar mais que algumas horas em suas companhias e não as semanas e meses nos quais eles se estabelecem uma familiaridade de moradores do limbo, escravos do amor obrigatório que devem dedicar sob todo o imenso fardo do sacrifício àqueles cujo único alívio lhes oferecido é o da confissão enviesada da hipótese da eutanásia.

Toda essa semana foi uma carga de tensão e espera. Todo dia morre alguém no hospital, ou alguém achega-se a você inesperadamente para anunciar uma áurea de morte. Encontrei o dono do maior supermercado da cidade onde moro, instalado na sala de espera, que se levantou e com seu mesmo costume educado veio me cumprimentar e dizer que há um mês sua esposa se encontrava internada ali. Haviam retirado de seu couro cabeludo uns focos de sarcoma, e, dias depois, no exame de acompanhamento, a internaram novamente para a cirurgia de retirada de um novo tumor detectado nos intestinos. Estava além da quimioterapia, ele me disse, para minha surpresa que sempre achei ser a quimioterapia o estágio final do tratamento. No outro dia, uma mulher extraordinariamente bela, toda de blusa e calça branca, e com uns óculos imensos que lhe tampavam quase todo o rosto, sai de um Porsche no estacionamento do hospital e se dirige para o balcão, e pergunta ao recepcionista para onde levaram o corpo do conhecido deputado morto após uma cirurgia craniana.

Quando levava a Dani para a casa de minha mãe, estando à espera diante o semáforo numa das avenidas principais da cidade, junto com mais uns cinquenta outros carros, uma turma de motociclistas batedores da PM surge do nada e fecha todas as vias de acesso transversais. Daí, esses guardas desmontam das motos e sacodem os braços em nossa direção, ordenando com todo tipo de frases descortezas para que acelerássemos as merdas dos carros e saíssemos dalí. No meio da perplexidade que tomou a todos nós motoristas, avançamos pelos semáforos fechados, ao que avistávamos logo em seguida mais uma série de braços uniformizados perfeitamente satisfeitos com a função delegada de ordem abrutalhada, que nos sinalizam sob o berro de vamos, desgraçados! Corre, corre! Assim que saímos para outra pista, uns 500 metros depois, vimos o motivo da urgência: uma comitiva de inúmeras viaturas escoltavam o ônibus da seleção que voltava do treino para o hotel. Estava justificado que colocassem em perigo os civis com filhos e passageiros convalescentes, em tributo à proteção dos heróis da pátria, que estavam destinados a dar o troco ao time estrangeiro que nos humilhara no ano passado na Copa.

A coisa que mais impressionara um amigo meu de um livro que eu lhe emprestara de Nooteboom foi da extrema disciplina civil dos escandinavos. Diante um semáforo fechado, numa rua deserta e sob uma frio de 20 graus negativos, o motorista esperava diligentemente que o sinal mudasse para o verde, o permitindo seguir pela via. Desde então eu resolvi me tornar um motorista holandês, pronto a me humilhar diante à pressa desarroada. Mas houve momentos de delicada adstringência, que permitiu um substancial raio de luz em meu coração apreensivo. Um motorista de ônibus coletivo me dera passagem, ao me ver emparedado diante uma caçamba de construção, em plena hora do rush. E também outras vezes caminhonetas, caminhões, motociclistas. Exceções que me inundavam de um indefinível orgulho. E houve a equipe médica que tratou da Dani, com o cirurgião chefe paternalmente zeloso e atencioso, o anestesista que nos veio visitar uma série de vezes, mesmo tendo vencido em muito o horário do plantão. E houve aquele sorriso que me pareceu deliciosamente transloucado da enfermeira que veio levar a Dani à sala de cirurgia, e sua piadinha deliciosamente sem graça e incompreensível que, contudo, iluminou todo o dia com uma visível esperança, e que me fez pensar alto para minha irmã que nos acompanhava: queira Deus que a nossa Júlia também cresça assim.

10 comentários:

  1. O meu irmão, logo após o acidente, passou um mês na UTI. Então entre a tua situação e a dos outros, eu fazia parte daqueles que estão lá e não sabem por quanto tempo ficarão. Nas minhas primeiras visitas diárias, conversava muito com ele e chegava até mesmo a rir. Nas últimas, lembro que chegava lá e apenas segurava na mão dele em silêncio. Não havia mais novidades para contar, porque minha vida se resumia a estar naquela UTI. Eu me sentia esmilinguindo.

    O papel que cabia a psicóloga, no hospital que eu fui, cabia aos dois pastores. Cada vez que penso neles, sinto uma gratidão imensa. Eles intermediavam o contato entre os pacientes e a equipe médica. Taí, essa mesma religião que ateus acham que só fazem coisas ruins. Ficavamos no corredor esperando para ver nossos parentes durante no horário determinado. Mas o horário nunca era assim tão fixo, era comum eles demorarem mais de meia hora do previsto, o que nos consumia a manhã inteira. Sem que nada precisasse ser dito, a sala de espera se enchia de tensão, e começavamos a imaginar se alguém havia morrido e eles estavam removendo um cadáver.

    Aí os pastores chegavam e explicavam que um paciente precisou tomar banho de última hora. Só isso, naquela situação, era de uma bondade imensa. Eles estavam disponíveis pra quem precisasse conversar, quem precisasse de um "auxílio espiritual". Da minha parte, só precisei (ou só aceitei) de uma mão no ombro. Mas precisei.

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  2. A realidade ali é completamente diferente, Fernanda, outra velocidade, lentíssima, da qual temos que nos acostumar. Eu senti o vínculo que unia aquelas pessoas. Minha angústia de que a reunião acabasse logo não era repartida por elas, que se ouviam e falavam com pausas, com seriedade. Realmente há muito de religiosidade nisso, a percepção do fim através do outro que se ama. Como somos seres adaptáveis às circunstâncias, o espírito recorria a novas formas de aceitar e interpretar o enorme sofrimento, enxergar a apatia das horas de silêncio como uma comunicação indispensável.

    A psicóloga confessou o seu alívio em não ter optado por ser médica. Exigia muita frieza e uma salutar indiferença. Eu também jamais aguentaria essa profissão.

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  3. Sabia que havia alguma explicação para seu sumiço. Esperava que não fosse nada de drástico, o que não foi mas poderia ter sido (há sempre a má possibilidade, felizmente contornada). Felicito a você sua esposa, que devem estar em casa, com alguma apreensão, mas "felizes", o que quer que seja isso, ou simplesmente aliviados, certos de que prosseguirão a vida, com uma ou outra limitação, mas prosseguirão, o que é sempre o melhor em qualquer caso.

    Não tive tanta sorte. Quando meu pai estava à morte, com cãncer generalizado, não esperava nada além de seu fim. Mas doeu mesmo assim. O esperado também doi. A psicólogo do hospital, dee ser padrão, tinha o mesmo tom confortante, com uma diferença capital: a minha ouvia com paciência e falava com serenidade mas, se voltávamos a ela meia hora depois, percebíamos que ela havia esquecido quem éramos.

    O que queremos sempre, em momentos assim, é a simples solidariedade humana. O olhar compassivo, o abraço terno. Poucas palavras, do gênero "conte conosco", mesmo que haja pouco para ser feito, ou nada, e as palavras sejam apenas emissões retóricas.

    Algo que me perturbava eram as confidências de pessoas como eu, a esperar por notícias de seus parentes. Histórias tristes demais ou aquela devoção fanática ao pensamento positivo que, aplicado a quem só espera pelo fim de um processo incontornável, irrita ao ponto de produzir em nós a explosão de violências, internas ou externas. Às vezes falta paz, ou silêncio, apenas silêncio, um abraço, aperto de mão, coisas de canções melancólias e banais, como Everybody Hurts, do R.E.M., que eu cantava mentalmente em meio aos cheiros horríveis de produtos químicos, desinfetantes, sangue e excrescências humanas.

    Bom você ter voltado, apesar de minhas más lembranças. Espero que continue tudo bem com sua esposa, contigo. Abraços.

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  4. Obrigado, Rachel. Não tem como disfarçar que estou bastante emotivo nesses últimos dias, e palavras singelas são realmente_ estranhamente, ou não, já que somos apenas humanos!_ importantes. O problema da Dani veio com a gestação da Júlia, o que remete a tensão para muito antes desses dias (escrevi a respeito no post "Abrir Mundos"). A Dani havia contraído reumatismo na infância, e teve o infortúneo da doença se manifestar numa variação espécifica a gestantes. A válvula mitral de seu coração estava debilitada, não abria e fechava corretamente. Ela perdeu 15 quilos com isso. A cirurgia estava marcada havia meses. Não precisou abrir a caixa torácica, graças a Deus, e o defeito foi corrigido através de um catéter que instalou uma espécie de balão para reforçar a válvula.

    Perdi meu pai nas condições mais terríveis, pelo câncer. Lembro das grades nas janelas do Hospital do Cãncer, e da explicação do médico: "tivemos que colocá-las em todas as janelas, pois era rotina os pacientes se jogarem lá embaixo."

    Abraços.

    (Coloquei o post sobre a Samanta, mas não pensem que isso seja demasiado precoce pelo que diz esse post. A Dani é muito mais bonita.)

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  5. Bem, reitero os comentários de Rachel, á exceção daqueles relacionados a morte do pai dela, sendo meus sentimentos algo diversos.

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  6. Charlles, o Guto e eu enviamos todo o nosso carinho daqui para você e a Dani. Tenho pouco o que comentar, pois UTIs e hospitais são feridas ainda e por um tempo decidi não cavocá-las. Mas sempre que leio coisas como o teu texto (maravilhosamente escrito), fico com a impressão que o conceito que usei na tese tem uma carga ainda mais pesada que a que lhe dei. Em doença, independente do lado da porta ou da cama que estivermos, somos todos sofredores.

    Tudo de melhor para vocês quatro e que a recuperação da Dani seja muito rápida, como foram as minhas.
    Bjs

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  7. Nikelen, enquanto estive lá, a lembrança da experiência de vocês contada pelo Luiz estava na minha mente, e serviu muito como consolo.

    Estamos todos bem. Minhas tarefas como pai que se redobrarão nos próximos dois meses, que serão de convalescença da Dani. Obrigado pelo carinho.

    Beijos em todos aí.

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  8. Charlles, meu caro.
    Saiba que penso em vocês TODOS os dias. E que torço por vocês mesmo sem conhecê-los. Quero conhecê-los.
    Teu texto é lindo e devastador.
    Estou no século XIX escrevendo um artigo, mas logo te escrevo com mais calma.
    Grande abraço a todos.

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  9. Farinatti...sem palavras. Muito obrigado!

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