quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Rui está no quarto



Quem fez com que o namoro entre mim e minha esposa se firmasse foi ele. Nunca foi nenhum segredo. E foi dele o abraço mais gostoso que tive na vida. Os abraços da minha filha, que são os definitivamente mais gostosos, são determinismos irretocáveis. O dele foi um supetão, um abraço-afronta, coroado desde o início pelo marco assinalado em que o vínculo que tínhamos se desfaria e ele e eu seguiríamos, cada qual, o seu caminho, o que torna em retrospecto esse abraço tão doloroso. Ele fez onze anos semana passada, e é um garoto assolado pela tristeza. Minha esposa telefonou para ele para lhe dar parabéns, e sua voz apática, introjectada, agradeceu, como se ele falasse de uma terra muito distante e a ligação estivesse péssima. Como se ele falasse de uma região ártica subzero, e seu pescoço estivesse em volta de um cachecol grosso que amortecia a voz. Eu não falei com ele. Eu já não tento esconder de mim mesmo que eu desisti dele. A Dani desligou, se sentou ao meu lado no sofá e disse, com o olhar momentaneamente tomado por aquela antiga preocupação que perdeu seu caráter genuíno e inquisidor porque, enfim, não nos diz respeito: ela falou: "minha mãe tem que levar o Rui a um psicanalista. Ele está cada vez pior." Eu senti a latência de um sentimento definhado, por um segundo pensei com pesar no assunto, e esqueci. A Dani falou que desde que ele perdeu o avô, não sai do quarto. Trancado no quarto o dia inteiro, sem computador, sem livros, em silêncio. É notório que ele foi tomado por uma doença do afastamento que tem como sinal o afastamento inconsciente de todas as pessoas que lhe estão em volta. Todos vão se afastando dele sem notar, não vão mais se importando, pensam nele com uma efêmera empatia estatística, ele deixa de ser alguém para ser um sujeito gramatical em uma frase meramente evocativa, "o Rui está no quarto". Sua doença contagia todos com a insensibilidade a seu respeito. Tanto pior que sua infância esteja acabando, e tanto pior que seu corpo resolvera crescer a tal ponto em que ficou alto demais e com a coluna arqueada para a frente. Um sujeito triste e feio, que a graça da infância o abandonou sem misericórdia. A última vez que o vi, no aniversário da minha filha, no salão de festas, meu cunhado que mora nos fundos da casa onde o Rui mora com a avó me disse, com intenção não de todo humorista: "sabe aqueles garotos que um certo dia resolvem entrar armados na escola e fazer uma chacina? Pois o Rui parece que a qualquer momento vai fazer isso." Eu olhei para o Rui encolhido sobre si mesmo no nosso lado na cadeira, e não achei a mínima graça. Ele parecia mesmo.

Quando conheci a Dani, o Rui, filho da irmã dela, não tinha um ano. Era arisco e sorumbático demais para um bebê. Tinha a cabeça grande, eu chamava ele de cabeçudo. Ele tinha pavor de mim. E eu o atormentava sadicamente lhe fazendo correr quando eu chegava na casa dele. Eu sabia que ele estava na sala, nas pernas da avó, e eu pulava para dentro com um grito, e era compensador ver o pavor na cara dele. O pavor verdadeiro da criatura que chegou na Terra por agora, o horror puro. Ele foi perdendo o medo aos poucos, sabendo que, enfim, ele tinha um escalão de importância biológica no sistema da casa, e se ninguém compartilhava o terror que ele sentia, era porque eu não representava perigo. Ele parou de se esconder e de correr, só se amuava no colo do avô e da avó e não dava a mínima para mim. Ele fazia suas coisas cartoriais, suas obrigações de exploração infantil, sem se importar o pouco que fosse se eu o estivesse olhando. Seu pai abandonara a ele, à sua mãe, e à sua irmã três anos mais velha. Na verdade, eles é que fugiram da casa do pai, porque o pai batia muito na mãe. Lembro que ele deu sinais de que me aprovava, sinais típicos que um cãozinho dá quando a frequência que uma pessoa lhe visita até o portão da casa atinge um determinado grau que o deixa de ser um estranho, ainda que não um real conhecido, quando eu e a Dani o levamos à biblioteca da faculdade à noite e o colocamos em cima da mesa, e ele ficou pegando os livros e me entregando, fazendo seus primeiros gorjeios. Uma vez estávamos na casa de um amigo meu, e calhou dele se ver em meu colo, seus olhos me olhando como um inimigo que teve sua memória de uma antiga afronta desbotada pelo tempo olha para aquele que produziu negativamente a lembrança, não pela auto-proteção de um gesto de imprevidente capitulação, mas pela preocupação advinda do ato social de pensar se o outro também se lembra, se cabe ali a percepção vexaminosa de uma distração tão leviana. Outro dia eu o levei para minha casa, com a Dani, e lhe dei um grande brigadeiro, um brigadeiro enorme que dava em tamanho suas duas mãos. Ele não comeu, não aceitou. Ficou circunavegando o doce com o olhar mas me encarava com uma seriedade diplomática de quem desconhece os artifícios por detrás de uma compra arquitetada em oferenda. Eu lhe dizia: "Ruizinho, pra que essa defesa toda, meu chapa. Coma logo o brigadeiro, vai. Mete a boca aí." Eu entrava pela sala, fingindo que o deixava na porta com a Dani, ele averiguava se eu não estava vendo, e arrancava nacos de chocolate. Quando eu voltava, a Dani o consolava simulando para mim que ela que comera.

É a mais pura verdade: a primeira palavra que ele falou foi Charlles. Saiu pulando em uma perna só gritando Chali, Chali, Chali. Quando eu me levantava e me despedia de todos da casa, ele corria, apanhava a bola, e vinha me dizer do seu jeito para que eu ficasse. Bola, Chali! Bola! Eu o levava para a praça a ficávamos lá, sentados, vendo as pessoas, ele olhando as plantas e aventurando-se fora do meu círculo de proteção e voltando correndo. Todas as noites, eu o erguia nos braços e fazia a sombra com a mão de uma boca devoradora que vinha comer seu dedo espichado subindo o muro, e ele caía na gargalhada. Outra noite, ele com o boné virado para trás e vestido com um macacão de bad-boy, eu menti que queimava a língua com o café, e ele soltava deliciosas e sonoras gargalhadas. Todo mundo ria com as gargalhadas e era algo de uma beleza impressionante. Ele viajara com a mãe e os avós, por dois meses. Eu levava a Dani para casa à pé, no dia em que ele chegara, e eu dizia para a Dani: "É certeza que o Rui não se lembra mais de mim. A tal viagem me colocou em segundo plano." Eu acabava de dizer isso, virando a esquina, e ele estava andando junto à avó, duas ruas abaixo. Ele tinha três anos, e sincronizadamente, assim que eu terminara a frase, ele gritou o meu nome e saiu correndo em minha direção. Eu saí desesperado em sua direção, assim como a Dani e a avó, temerosos que algum carro passasse pela rua. Foi uma cena de cinema, para se encenar em uma praia, nós dois indo em direção um para o outro, e ao nos aproximarmos, ele se lançando em meus braços. Foi o abraço mais delicioso da minha vida. Ele vestia um moletom, e me apertou com tanta força que fiquei sufocado. E não parava de repetir, com a voz cheia de amor: "Charlles. Charlles." Depois de minutos em que nos sufocávamos de beijos e abraços, ele passou a pesar em meus braços, e quando eu tentava colocá-lo no chão, ele cruzava as pernas para me impedir.

Depois eles se mudaram para outra cidade, a Dani foi junto. Eu ia às vezes vê-lo, ele se sentava em meu colo à mesa do almoço e dizia que eu era dele. Depois eu passei a ir com menos frequência, até que deixei de ir de uma vez. Casei-me com a Dani e ele, assim, perdeu também a tia. Ano passado o avô, que era o ser que ele mais amava no mundo, morreu atropelado por um carro, e ele se trancou no quarto. Sua mãe também ficou muito solitária com a morte do pai e tentou suicídio, interrompido pela lavagem estomacal que os médicos lhe fizeram às pressas. O pai do Rui, que é viciado em drogas, está preso há dois anos, acusado de ter invadido uma casa e estuprado uma menina de 12 anos. A vida não tem sido boa nem um pouco para ele. Ele já veio muitas vezes aqui em casa, mas nosso elo se perdeu. É uma das coisas da qual mais lamento. Lamento ter deixado que ele tivesse se mudado de cidade, ainda que não sei ao certo o que deveria ter feito para impedir isso: casado logo com a Dani e ter criado ele? Eu bem poderia ter feito isso, pois eu o amava profundamente. Mas eu tinha muito medo à época, medo de meu fracasso humano, medo das consequências da minha solidão brutal, medo das minhas sérias mutilações. Eu tinha muito medo de que algum dia eu fosse rejeitar a feiura das deformações do crescimento que eu veria nele, eu não confiava nem um pouco que eu pudesse ser perseverante. Eu poderia ter criado ele, eu poderia ter falado isso para a Dani à época. poderia ter refeito a louca matemática de improvisos da minha vida e ter comportado essa surpreendente leveza. (Porque, a vida agora me parece, tem me parecido cada vez mais, leve e fácil, absurdamente fácil, descomplicada leve e fácil em todas as suas complicações, desburocratizada.) Passei tempo demais me preocupando com cada coisa besta, com cada coisa sem razão, antecipando os medos afim de não ser sucumbido por eles, de tal forma que me prostrei.

Minha filha tem me ensinado muito. Minha filha e a Dani. Antes de ontem estávamos eu e a Júlia, que é a minha filha de 4 anos, sentados na biblioteca. Era uma hora da manhã, eu estava escrevendo no computador e a Dani já estava dormindo. Como era feriado, a Júlia e eu estávamos acordados mesmo sendo altas horas. A Júlia tirando os livros da biografia do Dostoiévski da estante e os folheando, me mostrando as fotos a cada segundo, de formas que era um milagre eu conseguir escrever. De repente, a Júlia parou de conversar e ficou me olhando, um olhar de profundo enlevamento. Eu notei pelo canto dos olhos, mas só deixei de fazer o que eu fazia para olhá-la depois de algum tempo. Daí eu vi seu olhar de profundo enlevamento, e perguntei o que era. E ela me responde: "Eu gosto muito de você." Assim mesmo. Uma voz sentida, puramente apaixonada. Ela não falou o que eu falo todas as horas para ela, eu te amo, o que seria um clichê, mas falou eu gosto muito de você. Era como se ela realmente tivesse se dado conta de seu amor por mim naquela hora. Foi um insight, uma revelação. Eu a peguei no colo e fiquei mais uma hora com ela lá, conversando, trocando carinhos, um entregue ao outro. Eu soube que aquele era um momento que ela lembraria para sempre, que era algo que moldaria seu caráter, um momento que estaria fazendo uma sombra estrutural de amparo para atos e impressões futuras, uma nota cristalina e talvez indeterminada que a iria fazer parar um instante, com a chave do carro na mão, com a sacola de compras no braço, com o mar batendo em seus pés na praia, 20, 30, 40 anos à frente, e escutar, emitir aquele mesmo olhar enlevado em direção a um raio de sol ou ao rastro aleatório de uma pomba no ar: uma música, imprecisa, reconfortante. E isso, que ela não saberá bem o que é, irá resolver um problema, dissipar uma dúvida ou talvez uma grande agrura, lhe indicar com uma incrível e imprevista facilidade um caminho. Eu quis também achar um idioma tão virginal como aquela frase que ela me disse eu gosto muito de você para lhe retribuir, e fiquei repetindo que eu é que a amava muito, eu é que a amava demais, e ela só concordou se aconchegando em meus braços, ela elegantemente sabendo que era verdade apesar da minha linguagem desgastada só encontrar as velhas formas comparativas do egoísmo da posse em me colocar lamentavelmente como eixo ativo do amor.

Eu sinto uma vontade enorme de falar com o Rui, lhe dizer que nada disso por qual ele está passando é novo. Que eu passei por infernos tão graves como o dele. Que eu fui o menino trancado no quarto, vitimado pela doença da insensibilização alheia e da transfiguração para uma forma gramatical inócua. Eu gostaria de falar para ele que eu não tenho nenhuma lembrança imediata de felicidade vindo da minha infância, e poucas ou também nenhuma vindo da minha juventude. Dizer que a vida, olha só, não é nada complicada, e que isso não é slogan de propaganda de refrigerante e nem tão pouco qualquer outra forma de ardil às custas de uma falsa ingenuidade. Mas se alguém tivesse me dito isso, eu não acreditaria. Aliás, eu nem daria bola. Eu seguiria trancado no quarto, imerso em um universo muito particular. Eu já disse uma vez para a Dani o convidar para passar as férias aqui em casa, mas ele não veio. Eu também não viria, quando estava trancado em meu quarto. Eu queria muito, muitíssimo, que ele viesse, ficasse aqui uma semana, um mês. Ele, emborcado em sua altura e com essa lucidez excessiva e desconsolada de não se ater a nenhum charme visível, e eu, em meu desconcerto, submetido às raízes mentais de alguma associação com personagens descolados de filme americano. Eu com o jeans rasgado, os cabelos compridos e os óculos escuros de meu avatar imaginário de um Kevin Costner acidamente simpático. Um amor seco de um clã de machos, com direito a choro. E ele, como um desenho animado europeu feito para ganhar um Oscar em seu manequim de lixo mecânico de madeira e olhar triste, estilisticamente feioso com a compensação de uma redenção no final para alegrar as famílias espectadoras, fazer valer o preço das pipocas. Ambos andando pelas ruas sem muita conversa, desengonçados, mas também com o direito de uma adstringência de no final do dia, nem se for por enfado mútuo, olharmos de novo um ao outro sem nenhuma reserva. Eu poderia dizer a ele que ele imprimiu em mim uma nota eterna, que me salvou várias e várias vezes, aquele abraço que foi o mais delicioso da minha vida, aquela corrida debelada pelo meio da rua, tão perigosa, que se coroou com uma declaração de amor. O mais delicioso abraço. Eu gosto muito de você

Posso ver ainda o que eu faço.

39 comentários:

  1. Belíssimo texto, Charlles.
    Quisera eu também ter encontrado a chave para levar a vida com leveza.

    Segue um contraponto a um outro assunto corrente aqui no seu espaço. Minha defesa de que o livro vai morrendo:
    http://cultura.elpais.com/cultura/2015/03/04/actualidad/1425453103_819705.html?id_externo_rsoc=TW_CM

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    1. Obrigado, Luiz.
      Claro que eu sou uma pessoa normal cheia de neuras, como todo mundo. Mas, talvez por exaustão, eu tenho mesmo levado as coisas com muito mais leveza.

      Penso que, em relação à crise das livrarias, isso é um desses caos que obrigará não só o setor comercial, como toda uma complexa estrutura de escritores e leitores, a buscar uma solução. Chegou-se a um nível limite, em que um dos pontos lucrou absurdamente durante décadas, e todos os outros estavam por debaixo submissos às regras de como era. Mas uma solução será encontrada, nem que seja pela emergência global futura de conter tanta burrice. Aqui no Brasil, livros que eu só sonhava um dia ter, estão sendo oferecidos a preços muito baixos, muitos a preços irrisórios. Esta semana mesmo, parece que o catálogo da Cia das letras está por 60% de desconto. Olhando de uma maneira localizada, o artigo do link fala da Espanha, e Espanha e Brasil estão passando por uma crise brava.

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  2. Muito bom, Charles.
    O Rui precisa saber que é bem-vindo a este mundo rude e imperfeito.
    Aquele é o abraço da vida. O abraço do "eu gosto de vc". Fala pra ele, Charlles.

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    1. Como é estranho esse negócio de escrever, Wagner. Eu estava sem sono aí decidi "ah, vou ver se escrevo alguma coisa para o blog". Nem me passava pela cabeça escrever sobre o Rui, e nem sabia que essa questão me incomodava. Daí surgiu esse texto, como um aviso. Falei com a Dani ontem, após ter postado à noite, sobre uma providência da nossa parte quanto ao Rui.

      Acho que todo mundo deveria escrever. Não é tergiversação: acredito mesmo que o mecanismo para uma evolução social é ensinar seriamente a leitura e a escrita e o deleite inerente em ambas.

      Ah... o Rui era lindo, um garotinho loiro que teve um período de radiante alegria. Continua bonito, atrás da tristeza.

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  3. Atualização:

    A Dani falou com a mãe agora pelo celular. Deu um ultimato para que o Rui venha passar pelo menos uma semana das férias de julho aqui em casa. Eu estou acabando de ler Absalão, Absalão! aqui na biblioteca, com o ventilador ligado (mais para funcionar como um ruído branco do que para refrescar, já que o céu está tampado de nuvens de tempestade) e a Dani veio me contar. Na grande casa da dona Maria cada qual dorme em seu próprio quarto. Ou dormia, já que o Rui se nega e dormir em seu quarto sozinho, pois, segundo ele, seu avô falecido aparece a noite inteira para ele. O Rui então foi dormir no quarto da d. Maria, que, por sua vez, vê com tanta frequência o seu Gercino que nem se importa. Ontem, a irmã do Rui, Hanny, pediu para que ele dormisse com ela no quarto dela, pois ela também se assusta com as visões que tem do avô, tanto que só dorme de luz acesa. Ambos passaram a noite inteira acordados, olhando fixos para o seu Gercino que teimava em ficar sentado na cama, ao lado deles. Por que eles não saíram do quarto?, perguntei. Porque não tinham coragem. Resultado: meu cunhado hoje instalou as duas camas no quarto da d. Maria, para que as crianças passem a dormir lá.

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    1. Daí é que eu falo: uma história tem diferentes pontos de vista, diferentes humores e atmosfera. Pode ser o prenúncio ou a intuição trágica de um homem indisposto em tudo contra o mundo. Pode ser a história de um grande homem, um mecenas espiritual de alguma arte ou algum maravilhoso trabalho humanitário, contrariando as rendidas impressões que os outros tinham de que ele sucumbiria à violência com que foi tratado na infância. Pode ser a história de fantasmas, com um retumbar frio de um turn of the screw, ou o acalanto de drama inerentemente risonho dos fantasmas de um Garcia Márquez. Pode ser qualquer coisa. Um escritor é, em ambas e acumulativas formas, um mentiroso e um visionário de alguma sutil verdade. Escolhi_ ou fui escolhido, talvez pelas forças esotéricas meramente neurológicas de meu subconsciente_ escrever esse texto com um eco de tristeza, a mesma tristeza que me identifica tanto com o Rui. Por isso acho que a vida se tornou mais simples e descomplicadas_ ou talvez seja um engano, à espera de retratação_: ela oferece inúmeros pontos de vista. Nada me parece mais leve do que esse arranjo de moverem as camas para junto da cama da avó.

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    2. E meu cunhado, vejo-o se dedicando ao trabalho de desmontar e remontar as camas com nenhum ar de insatisfação no rosto. Ele deve ter feito isso com a mesma convicção inabalável com que teria consertado uma porta ou uma telha deslocada, pois ele mesmo já viu o fantasma do seu Gercino inúmeras vezes.

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  4. Charlles, parabéns pelo belíssimo texto!!

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    1. "Eu sinto uma vontade enorme de falar com o Rui, lhe dizer que nada disso por qual ele está passando é novo. Que eu passei por infernos tão graves como o dele. Que eu fui o menino trancado no quarto, vitimado pela doença da insensibilização alheia e da transfiguração para uma forma gramatical inócua. Eu gostaria de falar para ele que eu não tenho nenhuma lembrança imediata de felicidade vindo da minha infância, e poucas ou também nenhuma vindo da minha juventude. Dizer que a vida, olha só, não é nada complicada, e que isso não é slogan de propaganda de refrigerante e nem tão pouco qualquer outra forma de ardil às custas de uma falsa ingenuidade. Mas se alguém tivesse me dito isso, eu não acreditaria. Aliás, eu nem daria bola. Eu seguiria trancado no quarto, imerso em um universo muito particular."

      Li e reli seu texto ontem, por coincidência, logo após você postá-lo. Sobre o trecho que destaquei, em específico, não sei se os psicólogos teriam capacidade de dizer isso ao garoto. A maioria, provavelmente não. Não dessa maneira amiga e compreensiva.

      Já fui o "carinha" do quarto também ( E se fui, ainda sou, de certa forma). Ler isso me fez muito bem porque por mais que você compreenda ou tente compreender a própria dor, sempre há esperança de que alguém estenda a mão e dê ou devolva um abraço num ato de comunhão. Sem julgamentos moralistas, sem sermões...

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    2. Uma das frases enigmas mais importantes para mim é a do Dostoiévski: "a beleza salvará o mundo." Soljenitsin fez seu discurso do Nobel em cima dela, assim como o Todorov escreveu todo um ótimo livro usando-a como tema e título. Acho que Dostoiévski aqui se referia à beleza da fragilidade, do reconhecimento mútuo, da desnudez "sem moralismos e sermões". Há um texto do Calvino (Ítalo), que fala sobre o papel salvador da mutilação no homem, mutilação no sentido do reconhecimento da incompletude. E há a magnífico discurso que prega a fragilidade como real e única força no Stalker, do Tarkóvski.

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    3. "Que se cumpra o idealizado. Que acreditem. Que riam das suas paixões. Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia espiritual, mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem neles próprios e se tornem indefesos como crianças; porque a fraqueza é grande, enquanto a força é nada. Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre, é impassível e duro. Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; flexibilidade e fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece, nunca vencerá."
      (Stalker, Andrei Tarkovski)

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    5. Essa citação é maravilhosa, não a conhecia. Ela me trouxe a mente um ensaio do Brodsky, "Um discurso inaugural", que em sua essência, acho, trata de aspectos do mesmo assunto de forma sábia também.

      Sabia que era um diretor espiritualizado, o Tarkovski, pois tive a oportunidade de assistir dele "O Sacrifício". Assistirei "Stalker". Uma pena um diretor como este, fundamental, de estética apuradíssima, para o cinema, não ter suas obras, de imagens belíssimas em BD, por exemplo.

      Ainda procurarei o discurso do Soljenitsin, na internet, e ficaria muito agradecido se pudesse apontar a obra do Calvino a qual se referiu, pois, infelizmente, também a desconheço.

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    6. Procurei as obras do Tarkóvski em blu-ray, mas não encontrei. Stalker e Nostalgia são dois dos mais belos filmes.

      Na verdade, Marcos, também não sei em qual livro Calvino diz isso. Vi esse trecho no Facebook da Caminhante.

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    7. Marcos, obrigado. Fui atrás deste discurso inaugural e achei fabulosa a parte q fala em minar o mal pela sua, digamos assim, exposição excessiva, subvertê-lo. sempre pensei nisso, raramente pratiquei (mas pratiquei).
      http://marcelocentenaro.blogspot.com.br/2012/12/um-discurso-inaugural-de-joseph-brodsky.html

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    8. arbo! Sou eu quem agradeço: assisti ontem a palestra que indicou ao Charlles sobre Hamlet e gostei bastante dela, mormente da sua contextualização com o fenômeno das redes sociais. De qualquer forma, é sempre bom ouvir comentários sobre um livro querido e tão prenhe de significados e beleza.

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    10. Marcos, a Criterion se debruçou sobre algumas das obras do Tarkosvky em Bluray. Stalker, por exemplo, foi lançada recentemente. Procure no makingoff.org que você acha.

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  5. Cara....Chorei,teu texto é belíssimo e tocante,as partes mais bonitas são o abraço do Rui e a fala da tua filha,reitero,belíssimo texto,sensível,natural,verdadeiro,acompanho sempre teu blog e adoro,vi que tu procuras a parte do espólio de O Homem sem Qualidades,do Musil..,foi publicada em Portugal pela editora Dom Quixote,o livro completo foi lançado em três volumes,essa parte dos escritos inacabados é a terceira,grande abraço e vida longa ao blog.

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  6. Nunca fui o sujeito do quarto, tive infância e adolescência bem típicas. Mas sou testemunha do que aconteceu à minha irmã mais velha, ainda que o quadro dela, nem de longe, pareça ter a mesma gravidade (poxa, que vontade de ajudar o Rui...).

    Quando nos mudamos de cidade, ela tinha 12 anos. Detestou o prédio, os vizinhos, a escola, os amigos, o clima, tudo. Foi uma crise vital para ela. Isolou-se de tudo e de todos. Cortou os longos cabelos e isso a fez sofrer mais ainda. Certo dia, ela arrancou praticamente todos os cílios e sobrancelhas, quando os meus pais parecem ter se dado conta da delicada situação. Profundamente deprimida, nada deu certo para ela naquele ano, encerrado com uma reprovação em todas as disciplinas. As férias, que passamos enfurnados no sítio, zona rural mesmo, também não melhoraram muito as coisas para ela, que seguia apática, calada, colecionando pedrinhas.

    Ela começou a melhorar no ano seguinte. Meus pais concordaram em trocá-la de colégio. Mas o que a ajudou mais, eu acho, foi voltar para a natação (eu e ela nadamos desde muito pequenos). Ela gostava de nadar. Nadar (para mim) é sempre um esforço de superação individual que te proporciona longo períodos "sem pensar": visão, cheiro, sons, tudo é diferente enquanto se nada. Há um propósito a ser vencido a cada batida.

    Minha irmã não era velocista, mas tinha muito fôlego nas provas de fundo. Gostava de nadar 400 m, 800 m, até 1500 m. O treinador a escolheu para a equipe de competição, ela aumentou o ritmo de treinamento e teve bons resultados nas provas que disputou. Isso a ajudou a recuperar sua autoestima, voltar a sorrir, empolgar-se com treinos e campeonatos etc.

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    1. Conheci cada caso de inadequação juvenil quando dava aula, Fabio... Um dia ainda conto. Deixei a sala de aula também por causa do impacto que era sobre mim a constatação de que a juventude é um laboratório para tudo que a pessoa será, e como o sistema educacional que temos parece feito para despertar o que há de pior.

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  7. Morre Antônio Abujamra. Uma grande perda para o teatro. Talvez a última resistência ao emburrecimento da TV brasileira.

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    1. Pena. O filho dele_ do qual gosto muito no Os Mulheres Negras_, trabalhando como músico de realejo no programa do Rafinha Bastos já diz muito sobre a sua última frase.

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    2. Me lembro de uma entrevista do André, na qual ele viajava por um país do qual ele não falava a língua e acaba ficando sem dinheiro, e ele liga para o pai, e o Antônio Abujamrra diz:" meu filho essa é uma boa hora para você aprender a se foder". Eu acompanhava o programa "provocações" na teve cultura, agora fica impossível assistir algum programa de entrevista na televisão Brasileira, sobre o André estar como músico de realejo como você citou, é aquele coisa de fazer uma música de vanguarda e não ter público, e ter que recorrer a essa baixeza.

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  8. Isso, Charlles, fica tranquilo, está claro q tu pode ajudá-lo. Tuas palavras vêm de um lugar deste abraço. Também me emocionei muito com o texto.

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    1. Grato, arbo.

      O discurso acima citado pelo Marcos é um dos textos que mais me tocou. Inspirei-me nele para fazer um dos primeiros textos meus na internet, aqui neste blog intitulado de "Propósito". Tal discurso faz parte de um volume indispensável de ensaios do Bródski, "Menos que um".

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    2. "Vou ter um filho daqui a quatro meses, o que me faz temerosamente feliz. E a maior lição que prevejo pela frente, a passar para ele, é o exercício salutar e superestimadamente sofrível de engolir sapos, e ao mesmo tempo incentivá-lo ao contato com mortos ilustres que nunca fizeram outra coisa senão expulsar anuros a grito. Ensina-lo que a gentileza possui uma estética muito sui generis, às vezes não tão catártica quanto acompanhar aos berros “God Save the Queen” dos Sex Pistols, mas mais verdadeira e compensadora na hora de saber o valor de favores desabnegados e aceitar o dedo em riste no trânsito até que se desgaste por total inapetência a vontade onanística de matar. Por que, no primeiríssimo momento que precede à reação, nós somos uns serezinhos cruéis. Mas só nesse enorme e libidinoso momento inicial."

      Aqui, Sr.Campos:
      http://charllescampos.blogspot.com.br/2011/05/proposito.html

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    3. apenas observo q não sou o anônimo acima.
      no mais, lembrei de ti, charlles, vendo o vídeo q segue - e, no exercício cotidiano de transferir responsabilidades (pero sin perder la ternura jamás), pensei q seria maravilhoso para o mundo q voltássemos a ter um professor de história chamado Charlles Campos. Não seria necessária metade da oratória desse cara (o vídeo é longo, mas penso q vale muito a pena assisti-lo): http://www.cpflcultura.com.br/wp/2015/04/28/hamlet-de-shakespeare-e-o-mundo-como-palco-com-leandro-karnal/

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    4. (aí vai lá a pm e tacale pau nos professores, q baita incentivo)

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    5. arbo, não sinto falta dos meus tempos de professor. Admiro muitíssimo os professores, e se trata de uma dessas profissões sacerdotais, o cara nasce para ser. Sempre tive um respeito meio que religioso pelos meus professores.

      Lendo o trecho do meu texto acima, me deparo com uma das minhas palavras ranhetas, aquelas que custo a acreditar que não existam, e, por birra e incorreção, reitero constantemente seu uso: "desabnegado" é uma impossibilidade léxica, mas como é difícil me livrar dela.

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    6. desculpa (sei q não precisa), foi exatamente pelo respeito imenso q tenho por professores q te coloquei na barca.

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  9. Arbo faz falta. Eis aí uma instituição Charlleana

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    1. ;)
      Que coisa boa ouvir isto de ti, Luiz. Me criei lendo Milton, aí fui capturado pelos longos comentários do cc, que sempre funcionaram para mim como uma espécie de labirinto ao contrário, ou só a consciência dos labirintos.

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    2. Há alguns dias, de madrugada, fiquei repassando aqueles meus comentários no blog do Milton. Cara, que nostalgia. Reafirmei minha inadmoestada e inexorável convicção de que escrever é se violentar e ir bem além da zona do vexame.

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    3. Não sei do que vocês estão falando, mas "labirinto ao contrário" é muito bom.

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  10. Que história terrível e triste! Me lembro da morte de Gercino, quando você se fechou em Ruído Branco, mas não sabia nada de Rui. Ele já está aí?

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