Em um registro de início da década de 1970 em seu diário, Norman Mailer se pergunta o que essa geração de escritores de Thomas Pynchon achava que estava fazendo. É fácil ver o realista tradicional que era Norman Mailer, pertencente à escola dos romances de guerra que remetiam a Hemingway e às biografias pretensamente panorâmicas da política dos Estados Unidos, desconcertado diante as experiências inapropriadas que falavam sobre drogas e tinha ritmo de comédia pastelão de O arco-íris da gravidade. É divertido observar o pasmo catastrofista de Mailer com o que lhe deveria parecer a crise absoluta do romance naqueles idos do século passado, com o calhamaço suportadamente lido até antes da metade de Pynchon em mãos. Não podemos culpar a incapacidade de perceber essa faceta do novo em Mailer; poucos escritores estariam na posição de entender o que gente como Pynchon fazia com a linguagem e os temas herdados de outra gente como William S. Burroughs (um ponto deve ser dado para Ian McEwan, que assistiu às conferências de Burroughs em Londres e afirmou que os romancistas ingleses só aprenderam a escrever depois disso). Ainda mais para alguém doente pela grandiloquência como Mailer, que tinha todos os cacoetes e gestos encenados da grandeza literária mais que um direito genuíno a ela, e para quem escrever sobre os temas clássicos da literatura só tinha os caminhos solidamente constituídos pela tradição, não se podendo desviar um centímetro dela.
Hoje, com o painel do romance atual, é indubitável aceitar sem reservas o lugar de Pynchon entre os grandes escritores da metade final do século XX. Uma aceitação que se torna mais esclarecedora ao vermos que a produção desses últimos dez anos na seara da ficção carece dramaticamente de empreendedorismo linguístico, de força revolucionária, da autenticidade do novo, do arrebatamento do estranhismo radical. O que se vê é que os ficcionistas vem manejando as técnicas sedimentadas de 40 anos atrás, e se amparando de uma maneira beirando ao constrangimento na propaganda interna dos elogios recíprocos e nos moldes do que é entretenimento livresco na era da velocidade digital propagada pela nova crítica literária. A quantidade de "melhor romance do século 21", de "grande obra que irá mudar a escrita dos anos vindouros", da "renovação do prazer e profundidade da leitura", de "maior feito nas letras dos últimos 50 anos", do "novo grande romance americano (e aqui se coloca qualquer outra nacionalidade"), é tão grande que se chega a cogitar em algum software que produza essas sentenças laudatórias sem a mínima compostura quanto à inteligência do leitor e as imprima aos montes nas contracapas dos livros. A impressão que advêm ao consumidor, depois que caem os panos do sarcasmo, é que algo muito sério acontece por debaixo desse arranjo que só tem por fora o tom leve de brincadeira. O que vemos é que, se Mailer estava enganado quanto à crise do romance em seu tempo, agora temos todos os motivos para acreditarmos que tal gênero sofre realmente um momento extenso de definhamento, não do que costumam apontar quanto a interesse dos leitores ou quantidade de gente de alguma relevância escrevendo, mas em seu núcleo mais grave da falta de criatividade. Ou falta do que dizer, ou falta de experiência básica de vida para escrever.
De 2010 para cá li parte considerável do que se vende como grandes romances atuais, e afora um ou outro, nenhum me pareceu nem chegar perto da propaganda que foram vendidos. Tirando a excelência clara de Javier Marías, Philip Roth, o próprio Pynchon no auge de sua produção tardia, os novatos das letras estão fadados ao esquecimento assim que a poeira do marketing se assentar. Eu disse em algum outro texto que sou um leitor passível de constante deslumbramento, e que cada dois meses me deixo arrebatar por um romance. É verdade. Mas é porque ainda resta muita coisa boa para se ler de escritores de gerações passadas que se encontram vivos: Le Clézio, Nooteboom, Vargas Llosa. O perigo é que escritores mais novos, como Eugenides, Chabon, Franzen, começam a pisar em falso com suas novas obras, começam a perder o que parecia ser a força inicial de grandes prosadores que tinham e se deixam escorregar para o ambiente contemporâneo de narrar em livro como se estivesse escrevendo para uma série de televisão. Começam a escrever como Jennifer Egan, com uma excelência técnica relativa que também parece um software em que dá ao público o que convenciona-se que ele queira: agilidade, sombras sobre a mortalidade que são dissipadas com uma lata de coca-cola, sexo depravado com seu adendo indispensável de compensação moralista punitiva no final, diálogos de seres urbanos inteligentes em suas intimidades invioladas de consumidores em apartamentos descolados. Requinte, é a norma da literatura produzida atualmente, e o requinte tem o gosto aspartâmico da profundidade simuladamente alcançada. É uma linha decídua preocupante que o mesmo autor dos magníficos Virgens Suicidas e Middlesex seja quem escreveu a comédia televisiva de erros bastante fraca A trama do casamento; ou que As correções, de Franzen, seja vilipendiada em troca de Liberdade, esse romance chatíssimo e de um pieguismo desaforado, que foi um dos romances que a loteria de realengo da crítica anunciou como o maior do século XXI. (Comecei ontem O pintassilgo, temeroso de que a tão aclamada Tartt seja mais um desses engodos de vendas.)
Michael Chabon ainda está em um patamar acima desses outros companheiros citados. Quem leu As aventuras de Kavalier & Clain e Associação Judaica de Polícia sabe do que estou dizendo (dois desses livros que se tornam paixão instantânea, que só o futuro dirá o quanto a distância temporal os colocarão nas futuras listas pessoais de melhores livros de todos os tempos). Seu último romance, Telegraph Avenue, me pareceu um enigma enquanto o lia. Não sabia mesmo definir, nem na seguridade apraz a todas as confissões difíceis de minha poltrona de leitura, se eu estava gostando ou não desse livro. O fato é que contava positivamente que eu o estava lendo todas as horas, até chegar ao fim; o fato contrário era que me parecia que Chabon, a exemplo do papagaio da parte 3 do livro, que faz uma panorâmica em voo por cima dos dramas pessoais em uma escrita de uma só longa sentença, tangenciava a trama sem nunca entrar realmente nela, às custas de uma demonstração de virtuosismo de mostrar o quanto sabe escrever bem que caía no vazio. Gabriel Márquez dizia que quando estava aprendendo escrever, destrinchar uma página de Hemingway era muito fácil, devido à simplicidade do escritor de Por quem os sinos dobram; já analisar uma página de Faulkner era como desmontar um relógio ultra-complexo e tentar juntar de maneira correta todas as suas partes de novo. Pois partindo desse ponto de vista, o livro de Chabon é uma generosa abertura total do escritório do escritor; neste romance, ele nos mostra à exaustão todas as sua técnicas, suas armadilhas, seus maquinários dos minúsculos aos mais evidentes. Acontece que ele se mostra de forma exagerada, extenuante. Não há uma palavra de preguiça neste livro: tudo é escrito em uma fé em sua eficiência e propósito, com um frescor e inteligência típica do escritor, que é o que me faz pensar que há algo escondido nele que me passou batido, ou que eu ainda não aceitei da forma correta. Como se Telegraph Avenue fosse o Moby Dick de Chabon, um livro que só será reconhecido em suas sutis artimanhas daqui algumas décadas (por enquanto fica no leitor contemporâneo só a miopia dos que acham que capítulos curtos e ensaios náuticos é pura enrolação).
Chabon é um mestre. Não adianta virem com essa de que ele parece forçar o humor, etc, etc. O cara é um mestre, é só lerem com atenção. Quando li Associação Judaica de Polícia, havia acabado de ler O mestre e margarida, e eu soube que dificilmente coincidiria novamente ler lado a lado livros que tinham diálogos tão excepcionais. E a profundidade do tema de AJP, a forma como toca em um dos mais caros assuntos da alma, é uma proeza para poucos escritores. De forma que é perigoso analisar Telegraph Avenue com um filtro apenas, o de que Chabon simplesmente errou. No livro, parece que nada acontece: forma-se um cenário espetacular para uma trama que envolve a história do jazz, e os personagens (como em uma parte do livro admite) são bastante pynchonianos, mas isso tudo é abandonado por Chabon. Os indícios da relojoaria do romance são oferecidos também à farta: um dos personagens, negro, velho jazzista, traz em seu bolso uma edição escangalhada e muito anotada de Ulisses, o livro que é uma espécie de cabala para o ensinar a viver. E TA é fundamentalmente o prosaísmo, o provincianismo, a vida não-intelectual e visceral de Ulisses. Mas Chabon quer que todos esses sinais sejam sofisticados, o que não é difícil para ele; quer que o leitor erudito reconheça as migalhas de pão que orientam o traçado de ida e retorno ao labirinto, com a mesma inteligência pop que no novo filme do Homem-Aranha o tema musical do herói é um plágio intencional de Fanfare for the common man, enquanto se é mostrado o cotidiano inglório de um Homem-Aranha combatendo o crime como se enfrentasse o metrô com uma pasta executiva debaixo do braço indo para o escritório (ou, ao que me parece uma isca sofisticada demais para o público alvo de uma franquia francamente inferior à de Sam Raimi, o personagem negro de Electro deixando a sua condição de invisibilidade racial para aparecer nas telas da Times Square enquanto o fluxo de energia luminosa dos cabos elétricos remete ao esconderijo do narrador do grande livro de Ralph Ellison, que se escondia em um depósito subterrâneo da Companhia Elétrica).
Em uma página do romance pode-se colher uma série de referências pop e da história dos EUA, assim como em Ulisses temos a mesma coisa em referência à história da Irlanda e da Europa. Jethro Tull, Return to Forever, as convenções partidárias de um incipiente Barack Obama, o sistema de saúde americano com suas intersecções com uma obstetrícia ainda medieval, a velha exploração sobre a onipresença cultura do fast-food e das indústrias do entretenimento na personalidade e no modo de pensar e agir dos personagens. O que se sente no romance de Chabon é essa euforia, essa ilimitada vida e ruído urbano de Joyce, suas camadas de infinitas correlações inteligentes que o leitor parece adquirir a capacidade quase tegumentar de perceber_ há aquele ganho atrasado de compreensão em que tudo parece desconexo e tumultuado mas que páginas adiante de súbito se nos revela, o que Chabon se mostra exímio em fazer.
Mas é impossível não desejar que Chabon tivesse contado realmente a história dos personagens, tivesse amarrado todas as pontas que ele deixou soltas. Os personagens são maravilhosos, prometem muito: os donos da loja de discos antigos de jazz que está para fechar as portas por causa da chegada da megastore, o vereador mandrião que promete ajudá-los mas que só faz acentuar ainda mais o fim, o filho homossexual, o filho bastardo, o velho pianista de jazz que tem um papagaio sábio chamado Cinquenta-e-Oito, a mulher grávida que trabalha como parteira e que cometeu um erro no exercício da profissão. E por aí vai. Chabon poderia ter feito o que anuncia fazer: ter sido francamente pynchoniano e joyceano nesta obra que é uma clara demonstração de amor a esses dois escritores. Chabon deve ter algum propósito. Talvez esse seja o mais humano de seus livros, o mais pessoal, por Chabon ter recorrido à voluntariedade de dizer que esses seres humanos pueris, sem nada de muito interessante, sem nenhuma relevância, falidos e à procura da felicidade instantânea, são o que realmente importa, são o emblema de uma certa e factível continuidade do homem. E dizer dessa forma, nesse experimentalismo inusitado e ousado de incorrer no erro de não ser entendido, é um ato de renovação da escrita que situa Chabon acima dos arquétipos previsíveis do que se vem fazendo na indústria da escrita atual.
Me conveceu, vou ler ele. Já fiz o pedido pela Submarino da Associação Judaica de Polícia, que de R$ 67,00 passou para R$ 20,90.
ResponderExcluirE ainda tem empresas reclamando da Amazon..
Pois é, li não lembro onde li um artigo dizendo que esse choro contra a Amazon é pura balela, pois as outras fazem descontos tão grandes quanto ela, mas como é uma empresa "de fora", estrangeira, ela seria a inimiga do momento.
ExcluirNão procurei e tenho preguiça de procurar pelo Google alguma lista dos países com livros mais caros do mundo, mas sinto que o Brasil está entre os primeiros lugares. Aquela velha máxima que eu ouço desde criança que livros aqui são artigos de luxo. Tem suas explicações comerciais, talvez, pelo fato de que somos um dos países com uma população menos interessada em livros: menor demanda, maior os preços para compensar os custos de produção. Eu, até antes dos 30, penava para comprar livros, e como foi trabalhosa a vida de leitor durante a adolescência: talvez meu amor exagerado por Thomas Mann atenda um tanto ao fetiche de que conseguir comprar um livro dele_ mesmo e, prioritariamente diante minhas condições financeiras dessas épocas, usado_ era algo quase impossível. Lembro da vez em que vi o primeiro volume de José e seus irmãos ao lado de Auto-de-fè do Canetti, juntos em estante de usados, e eles me pareceram uma cena de filme absurdo em que os livros cresciam e subiam mais em distância enquanto eu me tornava minúsculo, tamanha a verdade de que eram inacessíveis. E Auto-de-fé, novo, pela Cosac (!!!, Capa dura e tal!!!), que custa 89 reais, sai por 36 na Amazon.
ExcluirTalvez nisso o desregulamento do mercado seja mesmo a melhor opção, fazendo assim que os preços no Brasil fiquem aquém do surrealismo em que estão. Imagine uma Amazon de carros, obrigado às montadoras e concessionárias a fazer com que "o ridículo preço do Cheerokee do Brasil" perca seu caráter histriônico e vil?
Pois é. Não vejo uma diferenciação entre hardcover, paperback e mass-market paperback por nossas bandas. Talvez só na L&PM. Nem há por aqui livros clássicos feitos de papel meio vagabundo, barato, em bancas de jornal. É possível encontrá-los todos - ou quase todos - de graça na internet hoje, e os números de downloads feitos é até considerável, mas não sei se são lidos (eu mesmo não leio a maioria do que baixo, talvez se comprar um leitor digital me anime mais...).
ExcluirComo disseste, livros são artigos de luxo, de adorno. Só desregulando o mercado para os preços baixarem, e forçando a leitura desde criança para o cenário começar a mudar mesmo, daqui uns 10 anos, nos costumes do povo. É preciso de um MEC (e escolas, entidades, e os pais) enfiando goela abaixo a leitura dos clássicos da literatura brasileira e mundial, cobrando em vestibular, ENEM, até em concurso do Banco do Brasil. Ser humano só aprende na marra, não importa o que seja. Mesmo que não goste, acaba fazendo o certo por costume e pressão social. Depois de muuuito tempo, de gerações, alguma coisa muda na genética de cada indivíduo e isso vira padrão. Mas num país que acredita-se em preconceito linguístico, que não se deve corrigir o aluno que fala e escreve errado etc., é difícil. Mais quinhentos anos sendo uma grande ilha semialfabetizada de bundalelê. (Uma dessas vloggers bonitinhas que resenham livros fez um vídeo sobre isso recentemente que...bem...é o retrato das nossas faculdade de letrinhas).
Comprei O Eleito de Thomas Mann por 15 reais, versão da Portugália, tradução portuguesa, que seria melhor escrita 9porem mais pudica) que a da Lya Luft. Espero que um dia consiga ler o burguês hanseático no original.
Texto do Luiz Schwarcz, 'A geração perdida?'
Excluirhttp://www.blogdacompanhia.com.br/2014/09/a-geracao-perdida/
http://spotniks.com/amazon-pratica-precos-predatorios/
ResponderExcluirÉ esse? Meu comentário acima, foi baseado nesse artigo.
E Charlles, tens razão.
Isso, Anônimo, Spotniks! É o novo site da galerinha ultra liberal, não?
ResponderExcluirSim é liberal. Mas não sei se é ultra. Quando vejo esse liberalismo ao pé da letra, sempre vem a cabeça os left libers.
ExcluirCharlles, o "Auto-de-fé" já está custando 53 reais e só tem 2 exemplares no estoque, mas ainda está num preço muito bom.
ResponderExcluircomprei Auto-de-fé por 32,80, exatamente há um ano, na Cultura (pela internet)
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