Eram dois velhinhos muito velhos. Eram tão velhos que olhá-los desmerecia qualquer pensamento de continuidade, como se ficasse claro na mente do observador que o momento ocupado no tempo e no espaço por eles era tão indelével que já no outro dia eles não teriam o direito de estarem na memória imediata. E foi assim que desapareceram da minha memória, após ter transcorridos uns dois meses da minha juventude em que os via descendo no elevador quase todos os dias, com suas surpreendentes caras estereotipadas de judeus sefarditas itinerantes, vestidos de casacos cinzas e com absurdos sacos pesados nas costas. E voltei a pensar neles por algum remanejamento do olhar ontem no apartamento de minha mãe, quando observava pela janela o pátio de estacionamento dez andares abaixo, com seu falso ar de abandono que a chuva contínua outorgava ignorando os tantos carros em placidez imóvel estacionados por sobre os números das vagas. Lembra daqueles dois velhinhos judeus muito velhos que moravam, acho, no sétimo andar?, perguntei à minha irmã. Ela olhou pouco abaixo do teto, enquanto arrumava o zíper da bagagem a ser levada para um congresso em São Paulo, procurando pela lembrança, e só repetiu velhos muito velhos no lugar da negativa. Descrevi-os por alto, a excessiva educação quando me viam entrar no elevador, uma subserviência pungente de abaixarem as cabeças quando eu perguntava se me davam licença para entrar, que eu passei a sempre perguntar para apreciar novamente seus sotaques de deserto e suas inflexões gnômicas em dizerem em suas costuras de português, poir favor, entrre, esteje a vontáde. Eram tão educados que me passavam a impressão que queriam se livrar de mim o mais rápido possível, uma humildade de foragidos que ofereceriam o lombo para serem deixados em paz, com o cimentado contentamento dos sobreviventes que se adaptaram à invisibilidade. Quando eu entrava eles se calavam por completo e mantinham as cabeças baixas; dois irmãos cujas dessemelhanças se evidenciavam por debaixo da linha de uniformidade das roupas cinzas, da fragilidade cujos sacos pareciam ir quebrá-los em diversos fragmentos. O mais novo transmitia a pureza desnorteada dos idiotas da família, tinha olhos vesgos que exumavam um tipo de docilidade oriental que era o suprassumo da inocência. Como um comerciante sobrevivia com aquela aparência?, eu pensava, e um comerciante com o gene da astúcia judaica! Talvez fosse o poeta desmerecido, a ovelha negra. Por isso, por ter que chamá-lo às honras do sangue, que seu irmão_ um tipo enfezado com olhos aterrados no solo insofismável da realidade_ sempre lhe passava as mais cortantes reprimendas, que eu presenciava em esporádicas ocasiões em que os via nas ruas próximas ao prédio, eles estando certos de terem desaparecidos no ar e seguros dos olhares alheios. Não, definitivamente eu não me lembro deles, minha irmã disse.
Na janta, lembrei-me de tascar essa pergunta à minha mãe, completando a descrição do segundo irmão com rompantes sensíveis que sempre me odeio depois por ter agido inadvertidamente como um homem apartado demais para o mundo literário_ um homem que lê em excesso, vejo a crítica subjuntiva nos cantos de enfado dos olhos de minha mãe, enquanto ela sustem o garfo próximo à boca. Acentuo que o irmão mais velho tinha uns olhos crivados dos fanáticos, mas os fanáticos pela vida, por tudo que seja tocável, material, sistematizado, o sujeito dos números mas não do universo nupcial da matemática com as especulações metafisicas. Deveria tratar deus como um mero sintoma inquestionável da geometria sólida pela qual transitava beneficiado pela permanência aguerrida no mundo. Um homem de certa forma perfeito, em sua obliquidade a todos os julgamentos. Não, não me recordo desse senhor, sentencia minha mãe, retornando ao jantar e ansiosa por passar para outro assunto. Hoje, antes de retornar para casa, paro no casebre da viúva do zelador que mora no prédio desde os primórdios e puxo os assuntos triviais até que o clima esteja maleável para lhe encaixar a pergunta. Dois senhores?, a viúva repete olhando para o topo das plantas no jardim. Ela faz uma lista ligeira dos muitos velhos que habitaram ali uma vez ou outra, mas nenhum sendo esses dois profetas bíblicos dissidentes. Lembra de tantos outros os quais eu não me recordo. Me dá um sorriso de desistência, antes recordando que houve alguns meses que ele e seu marido saíram de licença prêmio, tendo passado períodos distantes do prédio. Entro no carro cogitando da teoria dos kardecistas de que os mundos do aquém e do além não dividem uma fronteira precisa, havendo quem de um e outro desses mundos penetre no que julgamos ser a fase de sonho que transcorre em cada um deles. Me vem as disparidades tardias que eu não havia cogitado antes, do porque verdadeiramente dos dois levarem aqueles sacos pesados nas costas, qual feira comportaria entidades tão desenraizadas da urbanidade citadina do final do século XX?; por que se vestiam com tecidos que pareciam rústicos sacos de batatas?
Na conversa pela webcam agora há pouco, entre minha esposa e minha mãe, eu torno a perguntar simulando brincadeira pelos velhos. Minha mãe me lembra as febres cerebrais que eu tinha na infância, o gigante que brincava de ciranda com crianças na esquina, a teimosa certeza de que eu voava até os postes de luz e me sentava nos fios elétricos até me dar na telha voltar. Rio sem naturalidade mas solto a seguinte frase, que ela não ouvirá mas a deixará enfadada até o nível da irritabilidade: Tenha paciência comigo, mãe, que estou esquecido. Podes segurar abertos mais um pouquinho esses teus olhos tão pesados e tocar teu instrumento, nem que seja dois acordes?
Será que eu vou ter que ser o primeiro a admitir que o blog do Charlles acabou?
ResponderExcluirPor que dizes isso, nobre doutor?
ExcluirUm acesso de exagero talvez.
ResponderExcluirSíndrome de abstinência pode ser a palavra mais exata.
O leitor é um serzinho bem egolátrico.
Não fala uma coisa destas, Luiz. Eu, por exemplo, tenho lido regularmente (as publicações feitas em menor volume, é verdade), mas não tenho comentado pq (a) tenho lido com atraso e (b) não venha me achando muito digno de dizer coisas q prestem... o anterior, por exemplo, sobre Tolstoi, só conseguir pensar em "bah".
ResponderExcluirsó estou dizendo, então, antes de ler o post acima, q o charlles podem bem ter diminuído o ritmo em número, mas não perdeu a mão... e volto sempre aqui com bastante expectativa. abraços!
relevem os erros acima, vou almoçar.
ResponderExcluirImagina se perdeu a mão o nosso Faulkner do Centro Oeste...
ResponderExcluirSó queremos mais Charlles.
É um tantinho egoísta fazer esse tipo de "protesto"... Dito isso, como demover o cara a escrever aqui "também" se não com uma provocação?
Ih, essa do protesto eu não peguei não -- a produção diminuiu? Eu já tinha tirado como certo que o Charlles, metido no livro dele (torço muito pra que dê certo, e tô quase comprando pompons de cheerleaders), acabaria diminuindo o número de postagens, mas até agora eu não senti isso não. O que ele tá lendo pra escrever é um calhamaço também, aquele livro da Tartt.
ResponderExcluir(E esse início do texto, especialmente o comentário sobre a perenidade dos velhos, me lembrou bastante os dois velhos de Sartoris, Bayard e o outro que esqueci o nome, isolados nos fundos dum prédio e berrando um no ouvido do outro para conseguirem se escutar. Só que lá a continuidade brilha quando a contação se volta para o cachimbo e o fantasma do Sartoris que deixou aquelas marcas inerradicáveis na madeira e que está ali naquela sala, presente; no seu, é depois de um trabalho de lembrança partido do acaso, sem precisar nem de madelaine nem cachimbo e nem nada comumente entendido como digno de nota, só dois velhos. Gostei bagarai.)
Aproveitando, vai sair álbum novo do Pink Floyd: http://www.rollingstone.com/music/news/pink-floyd-roll-out-plans-for-the-endless-river-their-first-lp-in-20-years-20140922
ExcluirÉ uma seleção que o Gilmour e o Mason fizeram do material que sobrou das gravações do Division Bell. No aguardo.
Concordo contigo, João. Foi um acesso de umbiguismo!
ExcluirÉ sempre bom revisitar a memorabilia Charlleana também...
Desculpas gerais a todos e principalmente ao Charlles.
bah! adoro The Division Bell! a começar, dã, por Cluster One!
ExcluirObrigado aí pelo carinho, meu povo! (Faulkner do Centro-Oeste é o tipo de coisa que eu colocaria em pauta se um dia fosse aí no Canadá conversar com você, Luiz.)
ResponderExcluirParece que esse Pink Floyd tem tudo para ser, ao menos, genuíno. Muitas partes instrumentais e dividido em quatro lados, lembra os bons tempos autorais de Ummagumma.