Tenho um problema de insônia com o qual convivo em relativos bons termos já há tempos. Na verdade não sei se chega a ser literalmente insônia, já que durmo em média seis horas por noite e não acordo nunca depois das seis da manhã, e não fico igual um zumbi ao meio dia. A única incomodação nova é que a leitura de Proust vai ficando cada vez mais crônica; quando eu pego o terceiro volume, em que parei há uma semana na página 200, sento-me no silêncio da biblioteca aqui de casa, me deixo envolver pela magia da linguagem e, o que acho ser lá pelo décimo minuto de leitura, tudo começa a se embaralhar e ficar narcotizado. Luto ferrenhamente para voltar a atenção irrestrita para o grande romance, consigo atravessar mais um parágrafo de um lado inteiro da folha, mas aí acontece algo embaraçoso e não de todo desprovido de prazer: as imagens do livro se misturam com toda espécie de entulho que tenho na mente. Desabo em um cochilo que vai se tornando progressivamente profundo, sinto uma consciência externada bastante nítida de que estou com a boca aberta e um ar de velhice desprotegida e ridícula, e a mesma crítica subserviente me acusa de que não posso deixar de forma alguma que meus filhos me vejam nesse desmazelo, tanto porque me parece que tal visão pode trazer uma angústia antecipada neles da minha mortalidade, ou da instância imediata anterior dos anos em que os sinais de que o antigo pai de ideias razoavelmente coerentes começa a se transformar em um outro, no seguimento triste de um senhor com lapsos de memória e sorrisinho entardecido de evitar assuntos mais comprometedores, o dia_ que talvez, como nas maturidades acionadas por uma programação biológica precisa e infalível, virá subitamente, sem zonas intermediárias, igual ao meio da semana glorioso em que o meu cão Miles deixou de morder os chinelos e se tornou um vigilante responsável e sério, ou em que cada um de meus filhos deixou de engatinhar e começara a caminhar, assim do nada, num estalo_ em que o pai combativo e ainda movido pela fé em todos os discursos, vira aquele senhor da poltrona, disposto a concordar com tudo, mesmo com o que outrora foram suas piores indignações, anunciando pelas novas paixões frias do sono e da ausência de estardalhaços estar preparado. Mas o que mais me incomoda é que eles, meus filhos, percebam essa falta de respeito inconsciente por Proust, o maior e mais elétrico dos escritores, mas que uma parte do senso comum mais execrável tem a ideia formada de que seu nome se pronuncia com a mesma inflexão da chatice, da sensaboria. Durmo no meio de um Proust não por ser Proust; a proposição é que meu descompasso de sono noturno se compensa medianamente quando, pelo acaso da minha escolha atual de leitura, estou com O caminho de Guermantes nas mãos. Mas aí também acontece o diabo, pois durmo com o livro no colo uns vinte minutos, e acordo já limpo de vestígios de sono, e da mixórdia de sonhos quebrados e sem nexo.
Meus filhos não me veem dormindo porque tranco a porta da biblioteca. Mas hoje aconteceu algo curioso, que provaria para eles que a culpa não está em Proust. Baixei a maravilhosa quarta sinfonia de Mahler, disponibilizada para download no site do Carlinus. O Carlinus fez um belo texto laudatório dessa sinfonia, e eu tenho escutado muito mal Mahler. Coloquei a sinfonia para tocar em um volume mais alto que o habitual, de forma a se poder ouvir bem do quarto das crianças, pois, quando me deitara à tarde no sofá para ir atrás da justiça que devo a Mahler, meus filhos me cobraram que lesse para eles um livrinho que trata de um ratinho, de um Morango Vermelho Maduro, e de um Grande Urso Esfomeado. Deitamos os três na cama e eu tornei a ler, ao que a reincidência não me espantaria se me anunciassem ser a centésima vez, o livrinho do rato. Impregnei todas minhas inflexões cênicas de pai maluco, que aos olhos de adulto pareceria algo canastrão e deplorável, mas que para eles é de uma pureza ortodoxa tal que pelo canto dos olhos vejo suas carinhas reagindo sincronizadamente com as sensações devidas quando o ratinho sobe de escada para apanhar o Morango Vermelho Maduro do pé de morango, e quando faço a voz questionativa do narrador sobre se aquele som de passos que se aproximam é do Grande Urso Esfomeado, que vem pegar o morango do ratinho. Pois bem, lia esse livro fantástico, de belos desenhos (que recebemos por um projeto honrado de promoção de leitura entre as crianças, por parte do banco Itaú_ quem sabe o banco Itaú cavando sua própria cova futura com uma nação de crianças esclarecidas), e a música de Mahler dominava a casa, com sua meiguice, sua atmosfera pastoril surpreendente para mim, parando no primeiro movimento na doçura de uma frase temática belíssima (no meu sistema de correlações musicais, parecia uma frase também de uma delicadeza incandescente de uma música do Gênesis chamada Cinema Show). Reli mais umas tantas vezes, já meio lisergiado e fora da sintonia fina das manifestações do mundo lá de fora, ouvindo a sinfonia de Mahler e me sentindo dentro da casinha na base da árvore do ratinho, sentado junto ao morango disfarçado com óculos-sobrancelhas-bigode de Groucho Marx para que o Grande Urso Esfomeado não lho tomasse. Agora me lembro que quando Aldous Huxley tomou mescalina, foi ao museu de Londres e teve uma epifania vendo as revolutas caudalosas das saias das matronas e reis pintados. Eu tive algo parecido hoje. Recordo que minha esposa acabou deitando-se com nós, e quando começou a quase imaterialmente diáfana parte da sinfonia cantada por uma soprano (tive que retornar ao Carlinus para ver: é a soberba Natalia Guerassimova), ela disse algo como "nossa, que música linda!", e eu concordei. Mas eu estava dentro do livrinho, deitado na rede junto ao rato que usava como chapéu a coroa do morango, e senti uma multitude de emoções que há 35 anos de meus 40 esquecera que sentira, em algum quarto de ensimesmada e acolhedora intimidade.
Este é o melhor Charlles.
ResponderExcluir:-)
ExcluirImaginei toda a cena, mas ao som do Bolero de Ravel
ResponderExcluirAna Paula Rocha
O Bolero é uma peça linda. Tenho um cd velhinho aqui que tem ele, o Pássaro de Fogo do Stravinski, e o Pinturas em Exibição, do Musórgski, justo três que eu adoro.
ExcluirGrande texto. Eu também quero ser um Morango Vermelho Maduro com barba e bigode postiço Groucho Marx e óculos escuros.
ResponderExcluirCharlles,
ResponderExcluiro seu “Morango Vermelho Maduro” levou-me a reler - mais uma vez! - um dos últimos parágrafos do “Escuta, Zé Ninguém!” de Reich. Considero tal passagem uma das mais sublimes da literatura ocidental (acredite, meu amigo, li tal livro mais de 100 vezes!...: houve tempo que o sabia de cor…).
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“Ainda bem que o destino me concedeu até hoje uma vida limpa e sem ambições, que pude acompanhar o crescimento dos meus filhos, ouvir-lhes as primeiras palavras, vê-los mover-se, andar, brincar, fazer perguntas, assistir à sua, alegria; ainda bem que não deixei passar a Primavera sem a sentir, que pude gozar o vento ameno e o rumorejar dos regatos e o canto das aves; que não perdi o meu tempo em mexericos com os vizinhos, que amei a minha companheira e que senti correr no meu corpo o fluxo da vida; ainda bem que, mesmo em tempo de perturbação, não perdi o norte nem o sentido da vida. Pois que me foi possível escutar a voz que murmurava no meu intimo: ‘Existe apenas uma única coisa que vale a pena: viver bem e alegremente a própria vida. Escuta a voz do teu coração, ainda que tenhas de afastar-te do caminho trilhado pelos timoratos. E não consintas que o sofrimento te torne duro e amargo.’ E assim, na quietude do cair da tarde, quando me sento na erva em frente de minha casa, depois de um dia de trabalho, com a minha mulher é os meus filhos, ouço no pulsar da natureza à minha volta a melodia do futuro: ‘Humanidade inteira, eu te abençoo e abraço.’ E desejaria então que a vida aprendesse a defender os seus direitos, que fosse possível modificar os espíritos duros e os medrosos, que só fazem troar os canhões porque a vida os desapontou. E quando o meu - filho instalado no meu colo me pergunta: ‘Pai, o sol desapareceu, para onde foi, achas que volta depressa?’, respondo-lhe: ‘Sim, filho, há-de voltar amanhã para nos aquecer.’”
Você já tinha citado esse texto há algum tempo, se não me engano. Lindo mesmo!
ExcluirRamiro, e nada mais certo como aquele belo poema seu, que fala que, perto dos filhos, é fácil crer em Deus.
ExcluirTenho deixado para trás o medo da selinidade, da placidez, a semi-afasia que acompanha a vida burguesa adulta em família. Só não consigo ainda me imaginar nesse papel, que - não quero ser mal-interpretado - vejo com muita ternura. Acho que eu tenho algum tipo de dispositivo psicológico dentro de mim, algum timer interno que eu penso vai zerar e começar de novo quando todos esses prazeres plåcidos da vida adulta enfim chegarem - a paternidade, o trabalho assalariado em escritório, o cansaço resignado, a pós-ideologia. Como um amigo querido meu que acreditava que morreria aos trinta e poucos anos (não conseguia imaginar mesmo a sua vida, a sua continuídade, a extensão da sua paternidade, depois dos trinta) porque seu pai falecera com trinta e poucos anos. A diferença é que creio os meus mecanismos mais misteriosos.
ResponderExcluirNinguém escreveu melhor sobre isso, sobre a acomodação à placidez adulta, que Onetti na minha opinião. Meu conto preferido dele, "Bienvenido, Bob," trata disso.
O próprio ato de ler já é uma contestação a esse conformismo, a meu ver. Tenho um colega de trabalho que tem um plano estranho e incoerente de vida, o de montar uma biblioteca numa casa no campo e curtir a velhice com a leitura. Sempre me pareceu de uma pose invertida isso, e eu lhe disse que ele já tinha que estar montando sua biblioteca e lendo desde muito cedo, se esse for mesmo um projeto sincero.
ExcluirA vida de casado demorou chegar para mim. A Dani e eu só nos casamos quando ela engravidou. Chamo o nosso primeiro filho de Golpe: "Dani, o Golpe já acordou?". Eu via que o casamento era, única e exclusivamente, a preocupação prática de ter-se alguém para cuidar de você na velhice. E é quase isso mesmo. Mas há inúmeras felicidades genuínas no casamento e, principalmente, nos filhos. Em "Dublinesca", do Vila-Matas, há uma reflexão belíssima sobre isso, de que a vida só compensa pela contemplação pausada das mínimas coisas. Há um crivo religioso nisso, e meu intuito para celebrar com dignidade isso é estudar essa religiosidade da forma mais profunda possível.
Deixei fora do texto e depois me lembrei que pretendia contar: assim que acabou o Mahler, começou a linha de baixo de Olé, do Coltrane. Arreganhei os olhos e pensei se era parte da sinfonia, se isso não era mais uma figuração da modernidade de Mahler, mas aí reconheci o balé tresloucado de Tyner no piano e a bateria e, mais tarde, a flauta do Dolphy. Foi uma tarde de percepções musicais maravilhosas.
ExcluirTem muito coisa séria escrita aí em cima no meu comentário que não dá para ser destrinchada assim, estampando num blog. Então conversemos sobre esse conto do Onetti, o Bienvenido Bob. Falar sobre esse conto não deixa de ser tratar disso de forma enviesada.
ExcluirVocê leu o conto?
http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/onetti/bienveni.htm
Esse excerto é maravilhoso. Por si só justifica a eternidade de Onetti:
"No sé si nunca en el pasado he dado la bienvenida a Inés con tanta alegría y amor como diariamente le doy la bienvenida a Bob al tenebroso y maloliente mundo de los adultos. Es todavía un recién llegado y de vez en cuando sufre sus crisis de nostalgia. Lo he visto lloroso y borracho, insultándose y jurando el inminente regreso a los días de Bob. Puedo asegurar que entonces mi corazón desborda de amor y se hace sensible y cariñoso como el de una madre. En el fondo sé que no se irá nunca porque no tiene sitio donde ir; pero me hago delicado y paciente y trato de conformarlo. Como ese puñado de tierra natal, o esas fotografías de calles y monumentos, o las canciones que gustan traer consigo los inmigrantes, voy construyendo para él planes, creencias y mañanas distintos que tienen luz y el sabor del país de juventud de donde él llegó hace un tiempo. Y él acepta; protesta siempre para que yo redoble mis promesas, pero termina por decir que sí, acaba por muequear una sonrisa creyendo que algún día habrá de regresar al mundo de las horas de Bob y queda en paz en medio de sus treinta años, moviéndose sin disgusto ni tropiezo entre los cadáveres pavorosos de las antiguas ambiciones, las formas repulsivas de los sueños que se fueron gastando bajo la presión distraída y constante de tantos miles de pies inevitables."
Minha utopia não-burguesa nunca foi a clausura dos monges cristãos. Essa coisa do eremitismo bucólico, acompanhado de uma farta biblioteca e do silêncio. A minha utopia é aquela de uma mesa farta de boa comida e amigos, dos filmes do Quebecois Denys Arcand, por exemplo o Les Invasions Barbares. A repecuperação da vida contemplativa dos Gregos, a koina ta to̅n philo̅n, "tudo em comum entre amigos." Se eu pudesse transformar a minha existência na emulação perfeita do Banquete de Platão eu o faria.
Vou ler hoje à noite.
ExcluirMinha utopia também é a mesma sua. Por que acha que gosto de literatura beatnik?, por ser a literatura das amizades perdidas, das longas estradas abertas para a alegria conjunta peregrina. Mas... como você bem disse: utopia.
A amizade de As invasões bárbaras não chega nem a ser o subterfúgio ao casamento; aquela eutanásia entre amigos, sentados à mesa para a última ceia, é o fim do mesmo caminho, trilhado de forma um pouquinho diferente.
É muito profundo isso, igual você diz. Mas, ainda bem, a vida é muito mais que as palavras, e não é para ser levada muito a sério. Como Cioran disse que um belo solo de saxofone vale por tudo que Platão escreveu, eu digo que um abraço de uma pessoa que você ama vale por todo o conhecimento humano. Frase para o Facebook.
Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
ExcluirHoly! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!
The world is holy! The soul is holy! The skin is holy!
The nose is holy! The tongue and cock and hand
and asshole holy!
Everything is holy! everybody's holy! everywhere is
holy! everyday is in eternity! Everyman's an
angel!
The bum's as holy as the seraphim! the madman is
holy as you my soul are holy!
The typewriter is holy the poem is holy the voice is
holy the hearers are holy the ecstasy is holy!
Holy Peter holy Allen holy Solomon holy Lucien holy
Kerouac holy Huncke holy Burroughs holy Cassady
holy the unknown buggered and suffering
beggars holy the hideous human angels!
Holy my mother in the insane asylum! Holy the cocks
of the grandfathers of Kansas!
Holy the groaning saxophone! Holy the bop
apocalypse! Holy the jazzbands marijuana
hipsters peace & junk & drums!
Holy the solitudes of skyscrapers and pavements! Holy
the cafeterias filled with the millions! Holy the
mysterious rivers of tears under the streets!
Holy the lone juggernaut! Holy the vast lamb of the
middle class! Holy the crazy shepherds of rebellion!
Who digs Los Angeles IS Los Angeles!
Holy New York Holy San Francisco Holy Peoria &
Seattle Holy Paris Holy Tangiers Holy Moscow
Holy Istanbul!
Holy time in eternity holy eternity in time holy the
clocks in space holy the fourth dimension holy
the fifth International holy the Angel in Moloch!
Holy the sea holy the desert holy the railroad holy the
locomotive holy the visions holy the hallucinations
holy the miracles holy the eyeball holy the
abyss!
Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours!
bodies! suffering! magnanimity!
Holy the supernatural extra brilliant intelligent
kindness of the soul!
Ginsberg!
ExcluirLi o Bem Vindo Bob. Grande conto! Um tema capital esse de vermos o quanto a juventude é uma derrota antecipada, amargada pela pré-ciência do quanto as ilusões de se construir cidades maravilhosas ou se tornar entidades ao invés de individualidades apagadas vão doer mais ainda no futuro. Já disse aqui que me afastei de todos os meus grandes amigos da juventude, por ter visto o quanto eles se boçalizaram, não na aparência física ou no andar mais moderado, mas num nível de deformação espiritual que eu não suporto ver.
ExcluirSim! Howl! Uma ode a Kerouac, Neal Cassady e Carl Solomon. Acho que entendi a sua referência aos Beatniks e a amizades perdidas, mas não sou suficientemente versado na literatura.
ExcluirBienvenido Bob é um conto poderoso pelo que ele tem de verdade sem embelezamento, da inevitável aceitação das derrotas que configuram a vida adulta. Como você, eu também sempre me coloco do lado de Bob, e sofro com a sua recepção e o bienvenido que lhe é dado ao aportar "al tenebroso y maloliente mundo de los adultos."
Esse papo todo de amizade, vida adulta,etc. etc., só me lembra minha última leitura: Hell's Angels, do Hunter S. Thompson. Provavelmente vocês já leram (claro, eu quase sempre chego atrasada nas leituras) e o que o Hunter diz, sobre o laço que une aqueles homens adultos, recém adultos e maduros, deixou em mim uma pergunta que está me incomodando: afinal,o que nos une? Por que a família, os grupos de amigos e tal? O Charlles disse que "via que o casamento era, única e exclusivamente, a preocupação prática de ter-se alguém para cuidar de você na velhice" e eu vejo assim (mal da pouca idade, talvez). Não consigo me imaginar aos quarenta anos, levando uma vida de trabalho - família - trabalho - saídas ao final de semana. Essa vida me parece tudo que eu não quero, mas que no momento tenho (com a minha família, meus pais).
ExcluirOs beatniks, o Fante, o jornalismo Gonzo, tudo isso parece tão interessante e realmente vivo! O Ginsberg, apesar de ter sido diferente do estereótipo de machão dos Hell's Angels, foi aceito pelo grupo, se tornou amigo de muitos deles. Afinal, quem poderia entrar no grupo? Quem é jovem ou velho? Se está jovem ou se é jovem? Nunca tinha lido nada do Onetti ( obrigada Luiz por mais um bom link)e esse conto, creio, foi uma ótima iniciação (atrasada, porém a tempo).
Certamente estou vomitando um monte de questionamentos batidos, mas vá lá, foi o que pensei com o post, o livro, o conto, o poema do Ginsberg.
PS: vou tentar finalmente ler Howl por completo. Acabo acatando muitas sugestões de vocês, e tenho sido feliz nas leituras.
Ana Paula Rocha
Eu também nunca me imaginava aos 40, Ana, mas desejava ardentemente envelhecer e sair logo dos 20. Sempre fui um bobinho renitente, que, no propósito de disfarçar o enorme repúdio que sentia por tudo que a idade padrão deveria compulsória e violentamente aceitar, tentava disfarçar que eu era do rebanho para ser aceito. Escrevi sobre isso por aqui, diversas vezes. Me recordo com a mão preparada para apertar a tecla rec. para gravar numa fita cassete quando o locutor da rádio passasse "Será", da Legião Urbana. Eu vivia em uma depressão crônica leve, que se acentuava quando ouvia a Legião, querendo gostar, e achando aquilo uma merda. Eu era especial? Meu gosto e minhas tendências eram de ordem superior à da maioria? A coqueteria manda dizer que não, e é aqui que entra o benefício redentor dos 40 anos, poder dizer em clara e boa voz que esse esnobismo, ou elitismo do gosto, ou seja o que for, foi muito válido. Nós vivemos em uma sociedade que incentiva a opacidade feliz de consumidores de tranqueiras e todo tipo de lixo para calar o espírito, e na idade em que se vive com os pais e em que a necessidade de amigos é imperiosa, a pessoa que se respeita e vira as costas para a boçalidade estupidificante se sente imensamente solitária. Por isso, como fui feliz ao me tornar suficientemente independente (desculpe o cacofonismo), desde o pouco que comecei a ganhar até a renda harmonizada que tenho hoje. Nada foi melhor para mim que deixar a juventude. Livrei-me de um batalhão de fantasmas e traumas que antes me pareciam tão cósmicos que já nem mais questionava meu lugar em uma distante adstringência fora deles. Então, vejo os ritos sociais com o maior esforço possível para que eles estejam trabalhando em meu favor. Não vou a bailes das mães, a reuniões de bairro, às vernisagens de artistas locais cujo intuito é firmar um pertencimento de classe. Nunca suportei isso, mas antes tinha o peso de consciência de se eu era normal; agora, sou dono do meu próprio nariz, e convivo excelentemente comigo mesmo. Blablablá.
ExcluirPapo de velho, né? Sermãozinho desnecessário e umbiguista. Mas já que caí nessa, uma última constatação: o tempo é a verdadeira fortuna, e eu me conservo o mais ocioso possível. Sou um tipo vaidosamente preguiçoso.
Li o Hell`s Angels, no volume da L&PM. Gostei muito.
Devo ao Luiz meu conhecimento de Onetti, também. Tenho o volume com todos os contos, da bela edição listrada da Cia, mas o Paulo um dia informou que o mesmo livro foi republicado pela Folha, a 15 reais, se não me engano. É ótimo.
Meu filho completou quatro meses esta semana. Todos os meses fazemos uma festinha. Esta última, pela primeira vez, foi na cidade onde vivem os parentes da mãe. Vivemos em outra cidade, onde estão a maioria de meus amigos e parentes, todos adultos, e por isso as festas eram livres de qualquer solenidade. As pessoas chegam, comem, bebem, dão risada; nada diferente de uma reunião casual.
ResponderExcluirMas a família da mãe está cheia de crianças pequenas, que fizeram questão de cantar parabéns. A barulheira foi enorme, e meu filho começou a gritar com força e a balançar as pernas e braços descontroladamente. O que eu pensei ser desespero era na verdade euforia. Ele nunca tinha ficado neste estado, creio que sequer poderia imaginar que existia tanta felicidade. Ele nunca poderá saber como ficamos eufóricos por dentro, apesar de nossa calma aparente. Agora teremos que trazer os primos dele para as festas em minha cidade.
As crianças vivem em êxtase contínuo. Muitas vezes digo à Dani: "é, agora é a hora de chamarmos o exorcista".
ExcluirEu não tenho filhos (quer dizer, não que eu saiba, mas essa suposta dúvida envolve tanta coisa trágica que, como diria o outro, não dá para estampar no blog). E eu nunca tive muito jeito com criança.
ResponderExcluirAí apareceu o filho do meu primo, que eu conheci há cerca de um mês. Moleque genial, três anos, que me olhou com cara de piedade quando eu disse que não conhecia o Ben 10. Fala pelos cotovelos, fala tudo e até ri de si mesmo quando não consegue a pronúncia correta. Tem entonações e expressões "adultas" ("Ai, graças a Deus, parou de chover!" ou "Eu fiquei desesperado de tanto que o cachorro latia").
Sou seu mais novo amigo de infância - isso é verdade para ele e um privilégio para mim. Faço mágicas, tais como arrancar o dedo e fazer o lenço sumir (ele gostou muito). Eu não sabia que criança gostava de ouvir a MESMA história, o pai dele me contou essa parte: sua preferida é a de uma lesma que demora muito tempo para fazer tudo: a diversão é inventar erros no meio da história para ele corrigir. Ele já está careca de ouvir a história, mas eu tive que ler o livro também.
Desde que nos conhecemos, ele só fala com a minha irmã ao telefone depois de ela se identificar como minha irmã. Até minha mãe, agora, virou a "mãe do Fábio". E ela me ligou este sábado, contando que ele sempre pergunta por mim. Daí eu liguei para ele pela primeira vez. Ele não se esqueceu de nada...
- Oi, Fábio, onde é que você está?
- Na minha casa.
- Onde é a sua casa?
- Longe. Fica em Porto Alegre.
- Eu moro na Mosela (Riso alto, é o nome do bairro em Petrópolis)... Porto Alegre?
- É.
- É longe?
- É, sim. Bem longe.
- Você vai vir aqui em casa?
- Não, estou longe, como eu te disse.
- E, amanhã, você vem? (Aí eu começo a derreter).
- Também, não. Mas um dia eu apareço. De surpresa.
- Surpresa?
- É, surpresa.
- A-ha.... vai tirar o dedo de novo!
Outra do moleque. O pai dele estava no sofá da sala.
ResponderExcluir- Vai lá na cozinha e pede para a tia Lourdes fazer bolinho de chuva
- Tá
(Bolinho de chuva fica pronto e ele traz)
- Traz um copo de Coca-Cola pro papai
- Tá
(Ele traz o copo de refri)
- Traz um guardanapo pro papai
- Você não vai fazer nada, não?
Hahahaha. E nada há de mais delicioso aos pais do que contar esses inúmeros momentos de verdadeira genialidade.
Excluir"Tenho um problema de insônia com o qual convivo em relativos bons termos já há tempos. Na verdade não sei se chega a ser literalmente insônia, já que durmo em média seis horas por noite e não acordo nunca depois das seis da manhã, e não fico igual um zumbi ao meio dia. A única incomodação nova é que a leitura de Proust vai ficando cada vez mais crônica; quando eu pego o terceiro volume, em que parei há uma semana na página 200, sento-me no silêncio da biblioteca aqui de casa, me deixo envolver pela magia da linguagem e, o que acho ser lá pelo décimo minuto de leitura, tudo começa a se embaralhar e ficar narcotizado. Luto ferrenhamente para voltar a atenção irrestrita para o grande romance, consigo atravessar mais um parágrafo de um lado inteiro da folha, mas aí acontece algo embaraçoso e não de todo desprovido de prazer: as imagens do livro se misturam com toda espécie de entulho que tenho na mente. Desabo em um cochilo que vai se tornando progressivamente profundo, sinto uma consciência externada bastante nítida de que estou com a boca aberta e um ar de velhice desprotegida e ridícula"
ResponderExcluirÉ descrição mais próxima à exatidão de mim mesmo. O que quer dizer: quão banais nós dois somos.