quinta-feira, 4 de julho de 2013

Relendo 1984



Com as manifestações que tomaram conta do Brasil, me vi com a propensão a me voltar à leitura de tudo que fale sobre opressão social, massas, dominação política, capitalismo/socialismo, lutas de classe, grandes manifestantes da história e congêneres, história oficial e paralela, alienação, indústria cultural. Fui tomado pela intuição feliz de retornar a um grande autor da minha adolescência, o George Orwell, alguém do qual só li 1984 e nada mais. Estou, pois, relendo 1984, na edição generosa da Companhia das Letras, dessas edições caprichadas, que revelam amor, em que desde o trabalho gráfico à revisão do texto se percebe perfeccionismo. Não há nenhum errinho no texto, o layout é modernoso, com páginas iniciais com algo do grafite e da arte pop americana, e, além, claro, do romance em si, o formidável são os três ensaios que vem de bônus, de ninguém menos que Erich Fromm, Ben Pimlott e Thomas Pynchon. Meu volume é a nona reimpressão. Estou na página 202. Li-o quando tinha lá meus 15 anos, e recordo que foi uma experiência impactante. De tudo, me ficara o peso de vidro para papéis com um pedaço de coral dentro, em que descem minúsculas partículas brancas simulando neve no interior, que Winston Smith comprara em um antiquário no mercado negro, e a cena terrível de quando, aos 12 anos, Winston exige para si toda a ração de chocolate da família (três onças, como está no romance), levando a mãe e a irmã famélicas à morte. Essa cena voltou à minha memória assim que a relia hoje, após décadas. A cara "parecendo um macaco" da pequena irmã de Winston, de tão raquítica; a forma como a mãe a abraça, diante o homicida egoísmo de Winston, em uma instintiva desproteção, sabendo que iriam morrer. Me deu a impressão de que é uma das cenas mais terríveis da literatura. E tudo na obra é derivativa, faz pensar, assombra, enternece, aterroriza, emudece. Há tantos conceitos ali que servem a entender os rumos da sociedade, que Orwell atingiu uma posição de um estranho profeta científico. Os termos que ele inventou podem soar com um eco ingênuo hoje, diante aos descalabros muito mais complexos da alienação atual (que dominam pelo ardiloso estratagema do prazer, e não da privação, como supunham Orwell e Huxley, o que é particularmente tão cruel e mais indefensável), mas em sua concisão vemos que Orwell criou uma parte importante tanto do imaginário do século XX, quanto de um novo gênero da escrita_ a distopia. Termos como despessoa, com sua burocracia seca, rigidamente limitada, ainda conservam uma intuição maléfica de força, principalmente quando vemos que a NovaLingua orwelliana tem em si uma miríade de informações sobre a retórica coercitiva do poder: uma linguagem plástica, despersonalizada, asséptica, que mutila as nuances da inteligência para tornar a dominação absoluta. Despessoa é, simplesmente, o indivíduo que, pela mínima suspeita que lhe caia em cima, é eliminado pelo Partido. Uma eliminação que apaga sistematicamente qualquer menção de seu nome dos registros oficiais e mesmo do direito de que seja lembrado. Claro, vivemos em um mundo melhor, a internet é uma revolução sem igual para a democracia, mas mesmo assim me fica algo de desconfortavelmente premonitório e atual nesse livro de Orwell, ele estando a dizer que a mente da supressão da personalidade para a serialização do homem está sempre trabalhando. Vou concluir 1984 e vou passar aos outros dois Orwell que tenho em casa, A revolução dos bichos, e O caminho para Wigan Pier.



15 comentários:

  1. Acho curioso que tenha corrido de volta, justo, a 1984 por ocasião da fermentação política atual. Há certamente algo de distopia no nosso destino, nesse estado de coisas que anuncia quase como uma predestinação nessa nossa estagnação civilizatória. Mas não sei, eu tenho para mim que muito dos augúrios e pesadelos da época da guerra fria, sobre um futuro perpassado pelo retorno de totalitarismos globais, está mais na esfera distópica de um Julio Verne, do que na de um presságio acertado para o Ocidente.
    Muito curioso portanto com o tipo de ligações que você faz entre o momento presente e Orwell.
    Eu também tratei de me debruçar sobre alguns certos livros para tentar entender o que se passa. Retomei o Living in the End of Times do Zizek e leio alguma coisa sobre a Primavera Árabe.

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    1. Eu tenho essa benéfica abertura de leitor, em me deixar levar por coincidências, aproximações, sinais, nem tão óbvios ou visíveis. Também não sei por que pensei em Orwell, mas a reação foi imediata: peguei meu 1984 da estante e me pus a relê-lo. Talvez seja pela real visão que Orwell tem dos pobres e despossuídos, pela capacidade lúcida de ver além das cifras de sucesso (Brasil a sexta potência do mundo, faça-me rir...). Talvez por ele entender de forma tão exemplar a falácia da opinião culta, que sempre prolifera pelas altas cúpulas da imprensa e das academias quando eventos como esse que ocorre no país acontecem: ele trucida a impostura que existe dos dois lados da questão, tanto na inerente exaustão das manifestações, sua falta de rumo, quanto na corrente descontrolada delas para realmente levar a roldo as estruturas viciosas da sociedade.

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    2. Mas uma coisa é certa: como na distopia de Bradbury, o que tem seu lugar na história de Orwell é a flagrante preocupação dos poderosos em manter a população inculta, sem conhecimento, anestesiada em um eterno presente maquiado que nem tangencialmente resvala com a verdade. Lembro de um texto que li não sei aonde e não quero me recordar o autor, em que este diz que Barretos, a cidade sede de um monumental evento country brasileiro, iria desenvolver-se realmente, exponencialmente, se cada um de seus moradores se dedicassem a ler um livro, ao menos, por mês (Mann, ele recomenda). Em cinco anos, a cidade seria uma potência econômica. Isso me deu muito o que pensar. De súbito, me deixei ser otimista com o país, eu que o decantava em todas as ocasiões apresentadas. Sei que não é esse o caso, infelizmente, mas imaginei a massa de pessoas esclarecidas, não mais deixando essa politicalha assassina tomar conta do Brasil.

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    3. Massa de pessoas esclarecidas é uma contradição em termos. A não ser que você esteja se referindo à massa islandesa. Mas o que é isso de massa na Islândia? Só se for aquela que eles fazem para o bolinho de peixe.

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    4. Que seja. O nível da ignorância das massas da Islândia e da França, contaminando a nossa, já me deixaria feliz.

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  2. Há uma distância imensa do momento político atual com o que Orwell viveu e parodiou em 1984. O romance é de uma amargura, angústia e terror sem fim. Mas a NovaLíngua que me deixa sob domínio do medo mesmo é o esperanto erudito do Finnegans Wake.

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    1. 1984 oferece muitas pontas de reflexão sobre política e aquilo que aquele francês denominou de microfísica do poder, independente do momento do enredo da obra. Mas o que me chama mais atenção, como eu disse, é como grandes mentes da distopia, como Orwell e Huxley, e Bradbury, forma ingênuas. Hoje não se precisa queimar e abolir os livros, não há esse temor reverente das autoridades pelo esclarecimento libertário do povo dominado_ o que se faz hoje é apenas uma massiva propaganda de entretenimento de dissipação, de todo tipo, que impossibilita ao cidadão comum de se achegar a um raio de dez quilômetros de um livro. Os personagens de 1984 comem comida porca e ruim, forçosamente, enquanto o padrão de vida americano, seguido por todo mundo, é de uma colorida e democrática merda calórica, que mata pela diabete e pelo câncer. Em 1984 o regime abole a cumplicidade afetiva, que poderia juntar insatisfações e promover a revolução, acabando de vez com o desejo e o ato sexual: hoje abolimos a cumplicidade afetiva justamente pela oferta desregrada e ilimitada do sexo, sendo que transformaram a libido sexual compulsiva e diuturna em comportamento santificado.

      Vê? A dominação plena de idiotas não veio pela repressão e pela tortura, nem pela privação e pelo policiamento onisciente, mas pelo caminho contrário: a sensação da liberdade sem freios, da felicidade do consumo selvagem, a sensação de estar sendo crítico e combativo pela erudição torpe e inofensiva da internet.

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    2. achei genial esse comentário, charlles. uma espécie de totalitarismo subliminar, muito a ver com a propaganda. e há de se pensar, subliminar pra quem? o q não vemos é tbm o q não queremos ver.
      qto ao post em si, esse negócio da linguagem me interessa. tenho sempre a impressão de q quase ninguém sabe o q está dizendo - e o q está deixando de dizer, q rima com viver, inclusive no vice-versa.

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    3. ficou dúbio: obviamente "uma espécie de totalitarismo subliminar, muito a ver com a propaganda." não se referia ao teu comentário, mas àquilo sobre o q comentou.

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    4. Eu pensava mesmo em chamar aquele francês para essa dança. Não seria justamente o contrário? Não seria 1984 obsoleto como diagnóstico político do nosso destino, precisamente porque Orwell não podia ainda, no seu tempo, adivinhar um poder que não fosse exercido de forma monárquica, vertical e não-anônima? (que é afinal a concepção de poder da maioria das distopias de então que agonizavam sob a ameaça do advento de totalistarismos globais?). Por detrás da ameaça totalitária de 1984 ainda perambula o poder absolutista do fascismo europeu, do stalinismo com a sua ditadura do partido, de ditadores da América Latina. Portanto uma concepção de poder que se dá de cima para baixo, que se dá de forma bem definida do ponto A ao ponto B, onde também se encontram bem definidos quem detém o poder e quem sofre do poder. Aquele francês, em meados de 1975, vai justamente propor que o insidioso do poder mora no fato dele não ser monárquico, nem vertical (mas rhizomático) e anônimo (independente de uma face que o represente, como é o caso do fascismo, onde se tem o líder detentor do carisma, ou, no caso do stalinismo pós-Stalin, (onde o partido decide o destino de todos).
      Kafka nesse sentido é muito mais contemporâneo que 1984, quando ele anuncia o poder anônimo da Lei que todos desconhecem, mas que todos são obrigados a obedecer.

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    5. (esqueci de comentar q essa menção à assepsia da linguagem me lembrou, pelo negativo, daquele documentário q indiquei há uns tempos, Estamira. a forma como ela, Estamira, se expressava tinha um quê de libertação, de revolta)

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    6. Bonita essa lembrança, arbo. Deu o que pensar.

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    7. É Luiz, Foucault e Kafka faltava a esse diálogo, no que tem de óbvio para a questão da dominação política. Mas 1984, a meu ver, não está obsoleto. Sei que Anthony Burguess lançou uma contestação à obra, intitulada 1985, que nunca li, e Burguess se aproximou muito ao pós-fascismo e ao neoliberalismo ultra-permissivo com sua distopia da Laranja Mecânica.

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    8. Charlles, obrigado pela referência ao 1985. Não conhecia. Lendo algumas resenhas do livro me deu a impressão que o inferno neoliberal preconizado lá é mais spot on que a distopia de Orwell.

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  3. "Hoje abolimos a cumplicidade afetiva justamente pela oferta desregrada e ilimitada do sexo, sendo que transformaram a libido sexual compulsiva e diuturna em comportamento santificado."

    Isso é Admirável Mundo Novo. Talvez fundindo os dois romances dê para fazer um 2013.

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