Esse pequeno livro de Geoff Dyer pretende comportar as principais características mitológicas do universo do jazz, lidas pela ótica quase lírica do autor na forma como ele anuncia na epígrafe: "não como eram, mas como me parecem ter sido...". Nisso, o pequeno livro ganha estatura ao tangenciar a profundidade de degradação e misticismo social dos grande pianistas, saxofonistas e trompetistas que teceram essa revolução da expressão artística tida como responsável pela música mais importante dos últimos cem anos, mas se apegando menos à literalidade dos fatos que na impressão subjetiva da interpretação cabalística dos objetos deixados em torno dos biografados. São 200 páginas que falam de loucura, drogas, alienação, heroísmo, prisões, fracassos, derrotas e uma ou outra vitória relativa logo encoberta pela fragilidade conceitual das ascensões do espírito. Dyer é inteligente e escreve bem o suficiente para descartar qualquer tipo de pedantismo: sua narrativa é ágil, suas descrições tem o lapidamento incisivo da astúcia poética da sarjeta, impregnando as histórias com um nostálgico ritmo que lembra ao leitor a escrita honesta, estentórea e um tanto ultrapassada do melhor noir americano, e da atmosfera estética pré-beatnik no que pega como centro de interesse heróis sem casa, com memória biológica deteriorada pela consumação febril da saúde corporal, e lavados por uma chuvinha eterna e um frio cósmico de prenúncios. A pena de Dyer é tão envolvente e cala fundo no leitor, que o clichê surgido agora na mente não parece menos sincero e verdadeiro: os heróis do livro tem como única pátria o jazz.
Estranho dizer que esse livro é ficção. Dyer diz que a maior parte dos diálogos foram colhidos em fontes fidedignas, escritas e orais; todas as cenas descritas equivalem a momentos reais da vida dos músicos. Ficção seria, aqui, aceita nos altos planos da imaginação reconstitutiva dos romances que analisam as possibilidades da interpretação pessoal sobre momentos do passado, apenas que Dyer faz o trabalho extemporâneo de encorporar-se na afetividade secreta de outros; uma espécie de mediunidade proustiana que contempla a solidão e a dor da alteridade de uma maneira tão fluidamente intensa que dificilmente se cogita que não foi assim. Dyer invade a subjetividade mais recôndita de Lester Young, Thelonious Monk, Bud Powell, Charles Mingus, Chet Baker e Art Pepper, com uma transfiguração alcançada pela literatura, e costura os eventos determinantes da biografia desses criadores através de um outro recurso da paranormalidade: inserindo todos eles na intuição de um Duke Ellington que vai compondo uma grande peça sobre a história do jazz enquanto transita de carro, conduzido por seu fiel companheiro Harry, por todo os Estados Unidos. Somos convidados a ver Young em seu quarto de doente, incapaz de se comunicar com o mundo e obnubilado pelas drogas, sendo vislumbrado pela janela por músicos que entram para tocarem no clube de frente como um fantasma_ um Young excessivamente sensível massacrado pela segregação brutal sofrida no exército. Vemos a criança crescida de um portento negro de quase dois metros de altura, Thelonious Monk, em sua catalepsia anunciadora da doença cerebral, tendo os dedos das mãos quebrados por policiais que interpretam a passividade do grande pianista como afronta de um negro a policiais brancos_ um Monk, conduzido angelicalmente pela esposa protetora, e de uma nobreza espiritual que o faz admitir a culpa de portar papelotes de cocaína por ver que seu amigo Bud Powell, o verdadeiro culpado, jamais suportaria o ambiente da prisão. Um Bud Powell que logo em seguida vemos na mendicância total, identificado por um guarda terno que hesita em acreditar que a sublimidade dos discos que tem em casa nasceram daquele impossível animal antropomórfico refugiado em meio a caixas de papelão. E um Charles Mingus irascível, que espanca músicos durante as apresentações ao vivo, o mais intratável dos homens que, nos bancos dos tribunais, respondendo como réu a um de ofendidos, consegue a absolvição da vítima de água nos olhos após remediar a apresentação que o juiz lhe faz afirmando altivamente não ser um compositor de jazz, pois jazz para ele "quer dizer crioulo, discriminação, cidadãos de segunda classe e todo lance de ficar no fundo do ônibus"_ um Mingus que amainece com a idade e é responsável pelos momentos mais belos do livro, quando cala uma madame fútil da plateia por interromper sua comunicação pela música com um Eric Dolphy falecido, e que se refortalece ao ver um Roland Kirk cego, com um só braço e destruído pela idade renascer no palco, possuído pela divindade da música. E as partes sobre Baker e Pepper são tão delicadas que para o leitor já completamente seduzido parecem dissolver nas mãos.
O livro ainda se encerra com um apêndice ensaístico, em que Dyer analisa os rumos seguidos pelo jazz atual, tendo se desprovido da força contestatória e do inerente arsenal libertário. Dyer diz uma coisa que só é vista em sua obviedade quando lida: o próprio jazz carrega sua crítica, sua reificação perpétua e sua metalinguagem, na forma em que os músicos se comunicam entre si ao longo do tempo e através do mundo dos que já partiram: o próprio jazz é sua feitura, sua análise e sua metamorfose evolutiva, por isso não existam, na constatação de Dyer, grandes livros sobre jazz. Com essa lucidez de conhecedor profundo, vemos a despretensão do livro, e como Dyer acerta em compor uma obra tão humana, arejada, como os mais belos solos de saxofone.
O livro ainda se encerra com um apêndice ensaístico, em que Dyer analisa os rumos seguidos pelo jazz atual, tendo se desprovido da força contestatória e do inerente arsenal libertário. Dyer diz uma coisa que só é vista em sua obviedade quando lida: o próprio jazz carrega sua crítica, sua reificação perpétua e sua metalinguagem, na forma em que os músicos se comunicam entre si ao longo do tempo e através do mundo dos que já partiram: o próprio jazz é sua feitura, sua análise e sua metamorfose evolutiva, por isso não existam, na constatação de Dyer, grandes livros sobre jazz. Com essa lucidez de conhecedor profundo, vemos a despretensão do livro, e como Dyer acerta em compor uma obra tão humana, arejada, como os mais belos solos de saxofone.
Ao Marcos Nunes,
ResponderExcluirbem-vindo das férias
a esse blog...
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POEMA MORTAL
by Ramiro Conceição
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Não necessariamente tudo acontece com o poeta,
mas necessariamente tudo acontece com a poesia,
que o poeta sequer planejou; consequentemente,
a arte se utiliza do artista como mero instrumento.
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No fundo, somente são atores de uma peça a existir.
No fundo, só há uma plateia num teatro que gera a si,
pois tudo é um processo num turbilhão que passeia.
O que sobra? Ora, registrar o possível que escasseia.
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Necessariamente tudo aconteceu com o poeta,
mas nem tudo virou necessariamente…poesia,
que o artista quis inventar; consequentemente,
o poeta - da sua arte - só cabe saber uma parte.
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No fundo, é uma peça com seus atores…ao existir.
No fundo, é um teatro com uma plateia a gerar a si,
pois tudo é um turbilhão dum processo de estrelas.
O que não sobra? Ora, é o acalanto… das sereias.
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Por isso somos inacabados.
E por isso o poema é mortal.
Já comprei o livrinho, e chegando em casa, o danado se enfiou ali na frente de vários outros na pilha de próximos para ler! (Eu bem sei que essas pilhas de próximas leituras nunca funcionam; minhas leituras -- o fim delas, quero dizer -- é que decidem sempre qual a próxima direção eu tomo, ignorando assim qualquer planejamento prévio que eu tenha feito... Mas eu continuo mantendo a pilha mesmo assim, pois gosto [risos])
ResponderExcluirDaí lá na livraria tinha um outro do Geoff Dyer, em promoção ainda por cima. "Yoga para quem não está aí", uma compilação de textinhos cujo tema meio frouxo, apenas aparente, são viagens, lugares pelos quais o autor passou, etc. Acabei levando também, bastante me interessa o tema, mesmo que seja só um ponto de partida para outras divagações (talvez me interesse ainda mais nesse caso), ainda mais que estou lendo um outro desse tipo pelo qual eu nutria altíssima expectativa, mas está me frustrando um pouco. Li o primeiro textinho do "Yoga para quem não está aí" na volta para casa, uma não-história (palavras de Geoff) sobre uma temporada em Nova Orleans. Coisa fina! Recomendo. (Se é que dá de recomendar um livro apenas pelas suas primeiras 20 páginas.)
Quero ir atrás do livro dele sobre fotografia, ainda mais que algumas das melhores páginas deste livro sobre jazz, você verá, é a análise que Dyer faz, minuciosa, sobre a foto de três músicos que aparece já nas primeiras páginas.
ExcluirBoa recomendação a sua.
Também fiquei com vontade de ler este sobre fotografia, mas não tinha lá na livraria. Daria de encomendar, mas ele tá custando R$ 55,00... Achei melhor deixar para depois.
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