terça-feira, 31 de julho de 2012

William Faulkner no Balcão


Nas fotos ele sempre aparece muito senhor de si, com um certo ar distante de artista a quem não interessa a vanguarda, como se obedecendo um antigo e arraigado conceito adquirido nos pátios da infância quando se deparou pela primeira vez com a obscura imagem de algum poeta francês morto e há muito esquecido e que então passou a ser a atmosférica mitológica não revelada de tudo que escreveu_ não revelada e nunca manifesta em nenhuma palavra sobre sua particular urdidura artística, a não ser nessas fotos, em sua pose de barão destituído de quem nunca tirarão a última filigrana de honra e sobrevivência familiar e de impecabilidade estampada no branco anódino de seu terno. Em algumas fotos, não de todo inconscientemente desprovidas de intenção, ele aparece em situações mais íntimas, sem camisa e de calção sentado em uma cadeira de praia, em mangas de camisa, furtivamente flagrado na sacada de sua propriedade rural, por entre as pilastras, depois do que parece ser o cotidiano árduo não da escrita, mas do bruto trabalho no campo. Isso casa bem com suas declarações de que não se considera mais que um fazendeiro, de que não lhe interessam viagens para o exterior, de que as rodas de conversa das quais participa não são as dos salões literários mas as que ensejam os funcionários de suas terras, a maioria negros e o absoluto deles iletrados e só intuidores, sem que isso lhes desperte importância, de que o patrão exerce hora ou outra algumas tarefas referentes a um mundo estrangeiro distante de brilho inapreensível.

Nada revela mais sua fragilidade física que vê-lo pessoalmente, aquém dos efeitos helênicos das fotos em preto e branco prontas para reforçá-lo inigualavelmente em peso e imortalidade nas paredes das universidades. Sua magreza, sua baixa estatura, seus cabelos brancos e o erradio ar distraído que se salienta ainda mais pelo indelével afundamento das bochechas_ revelando a falha arcádica dos molares, um indicativo a mais de sua origem advinda do mais fundo e imolável sertão sulista_, não o torna diferente da imagem do homem mais prosaico e invisível de um povoado do interior. O que ao mesmo tempo refirma essa característica e a contradiz é seu olhar reservado, dirigido para dentro, distraído, alheio, intenso no centro das rugas da pele das órbitas, mediativo sem ostentação, como se voltado para assuntos de armazéns e medida de gebras, a imagem perfeita de avô que atravessa anos de juventude deformada pela ausência de cicatrizes e só encontra sua constituição verdadeira quando o corpo envelhece, quando a pele perde o frescor e se entremeia de sulcos da experiência. Como a velhice se assenta bem com seus livros, o leitor visitante pensa, como a sua juventude que o enfraquecia na falta de simpatia e incompatibilidade com seu conteúdo deve estar por detrás de seu fracasso inicial, da falta total de crença dos editores naquela púbis que desperta apenas significados rasos de garoto leviano e evasivo. Aos 50 anos, como se reconhecendo o valor necessário da degradação para efeitos mercadológicos, ele aparenta ter 60 ou mais, ele finalmente alcançou o aspecto que o torna eloquente nas fotos, que o torna compatível a toda a densidade de seus escritos.

Se bem que ele não chegou a ser velho. A velhice cronológica era um luxo pouco alcançado para os da sua geração. Morreu, como se sabe, em cima de um cavalo, passeando, como fazia todos os dias, pelos campos de sua propriedade. Enfarto cardíaco fulminante. Bebia compulsoriamente e como por força de uma religião desesperançada dos que acreditam num mundo impossível de altos padrões humanos, de altos sacrifícios e absurdos silêncios como arma falível à intolerância; bebia como todos de sua geração, não pelo sabor ou pela adstringência da loucura, mas pelo costume vernacular  de ter de fazer os gestos necessários da ortodoxia em determinadas horas do dia. Os heróis dos livros que inventou são todos de diferentes matizes coloridos, mas todos subtraídos a um espectro próprio do negro, como se suas cores houvessem sido decantadas por centenas de anos e o rosa, o azul, o verde, tivessem se degradado para um filtro univoco de sépia que sela seus personagens com uma suprema exaustão. (Como se fossem eles combalidos por um traço divinatório incômodo que tudo o que fazem parece ser determinado por um mecanicismo e automatismo alheio às suas vontades, se tivessem vontade; como se estivessem se observando além do corpo, calmamente e já sem crítica, a seus assassinatos, a suas compulsões pelo sustento, às suas submissões aos efeitos terríveis do calor do dia.) Por um bom tempo foi considerado pelos existencialistas o mais corajosamente e independente dos existencialistas, pelos hispano-americanos o mais colombiano e indígena dos autênticos romancistas no exílio, pelos sociólogos combativos o mais defensor do direito das minorias, e por quase a totalidade desses como o escritor que subliminarmente mostrava o quanto somos falíveis e sem redenção. Daí lhe deram o prêmio Nobel e ele consertou a coisa lendo, do alto de seu balcão hierárquico em Estocolmo, do lado do  espadaúdo Bertrand Russel (que o apequenava ainda mais em sua estatura física), e demonstrando para o espanto da platéia que havia recuperado a segurança que todos haviam julgado perdida ao verem-no mal se sustendo de bêbado, o seu discurso sobre a perseverança e persistência do homem, a sua crença no homem.

Existem tantas lendas a seu respeito que elas já passam a ser suspeitas de fatos. Era egresso da Universidade do Mississipi, em Oxford, mas não aguentou um ano e desistiu, indo trabalhar em uma livraria de Nova York. Era visto imóvel na mesma posição durante uma hora, em profunda contemplação interior. Passou por vários empregos: quando era carteiro, cartas não chegavam a seu destinatário; quando era mineiro, escreveu todo um livro, intitulado Enquanto Agonizo, com o caderno e o lápis por cima de uma debulhadora, nas horas de descanso. Nas poucas vezes que saiu de suas terras e do horizonte reduzido de sua infância_ quando já mundialmente conhecido_, diz-se que em Paris entrou num bar para ver James Joyce, olhou de longe e saiu. No Japão do pós-guerra, foi um dos únicos, senão o único, escritor americano que foi ouvido completamente por japoneses inteirados em diversas palestras sobre a natureza humana. Coetzee escreveu um ensaio em que realça o substrato de seu alcoolismo, as tantas vezes em que sua esposa fugiu dele, o quanto sua filha não guarda boas lembranças do pai que esmurrava as portas da casa. Talvez tivesse sido um homem cujos demônios afloravam com frequência, como ocorre com todos os homens. Talvez não tivesse sido um bom pai, talvez tivesse sido apenas um patrão estagnado em sua postura vestigial de patriarca satisfeito com suas posses de cabeças humanas, talvez sua irresponsabilidade e sua completa ineficiência social revele, em última instância, a preguiça dos que não se importam com nada mas que tem que fazer o teatro da consideração de alguma forma (a dele sendo pelas letras). Mas o Faulkner que vem à cabeça e no coração do leitor que o viu em vários perfis é o que escreveu de forma inigualavelmente profunda, verdadeira e humana, as razões por Thomas Sutpen ter se tornado tão inumano_ sua rejeição e sua solidão na infância_ naquelas páginas de reminiscências acidentais que equivalem a uma abdução violenta do leitor para uma dimensão de ternura quase insuportável. Vem do mesmo diagnóstico reafirmado em Joe Christmas, em Luz em Agosto

13 comentários:

  1. (ainda não li, charlles, mas depois, para rir: http://sul21.com.br/jornal/2012/07/o-mensalao-como-operacao-de-marketing-e-como-golpe-branco-fracassado/ )

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    1. Entrei no link, arbo. Como alguém falou lá, é incrível o poder da negação.

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  2. Belíssimo retrato. Claramente de fã.

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    1. Obrigado, Caminhante.

      Me alegra ainda mais ao saber que Faulkner obteve o maior de seus prêmios: ser admirada por uma leitora tão inusitadamente exigente como você (Proust e Joyce foram descartados).

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  3. "Enquanto agonizo" é ótimo. Li duas vezes. Não gosto de ler vários livros, mas de reler vários.

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    1. Adorei este, Doni. Mas os meus títulos eternos do faulkner são Desça, Moisés, O Povoado, Luz em Agosto, e Absalão, Absalão.

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  4. eu tenho medo de o charlles ver uma foto minha
    huahauha

    bom post, outro dia fui ao sul21, pegar um livro com o milton, e comprei o som e a fúria num dos sebos da frente. só por tua propaganda.

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    1. "eu tenho medo de o charlles ver uma foto minha" - hahahaha, também pensei isso!

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    2. arbo, talvez não seja uma boa ideia conhecer Faulkner através de Som e a Fúria. Muita gente o fez, e parte dela passou a odiar o autor.

      Aconselharia, sem erro, Luz em Agosto (pela inigualável edição da Cosac).

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    3. Cartomante de rostos? Será que funciona com a borra de café?

      (Não por acaso o romanção do Marías que estou lendo, Seu rosto amanhã, trata dessa intuição cultivada e institucionalizada da leitura de pelo rosto e aspectos mais insignificantes da pessoa.)

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  5. Meu amigo, seu blog é a minha principal esperança de que se é possível fazer alguma coisa mais ambiciosa na internet em português. Talvez a minha maior admiração pelos seus textos, e isso está marcado nesse texto também do Faulkner, é o seu escárnio em relação à convenção de que o blog não é coisa de ser levada a sério. Você dá de ombros a esses tantos blogueiros medrosinhos que se escondem atrás da mediocridade própria de sua escrita e que escrevem ora textos engraçadinhos, ora coisinhas cute, ora notinhas espertinhas, no afã de, simultaneamente dar sobrevida à inconfessa crença de que ele ou ela, blogueiro(a), é assim um talento das letras ainda não garimpado, sem comprometer-se em tornar o seu blog, veículo inconfesso do seu talento, em algo sério, que se possa ser julgado, acariado, criticado e sentenciado como boa literatura ou não.
    Você pelo contrário tenta fazer boa literatura. Tenta e sucede bem, meu amigo. E não me interessa muito o que outros leitores seus possam vir a pensar ou mesmo quantos leitores lêem os seus textos e quantos mais lerão. Eu não guardo dúvida nenhuma de que o seu ensaio sobre a fotografia de Faulkner é digno de estar ilustrando qualquer (qualquer!) períodico consagrado ou metido a besta que versa sobre literatura. Da Harpers Magazine ao New Yorker.
    Isso aqui por exemplo é estupendo:
    [Os heróis dos livros que inventou são todos de diferentes matizes coloridos, mas todos subtraídos a um espectro próprio do negro, como se suas cores houvessem sido decantadas por centenas de anos e o rosa, o azul, o verde, tivessem se degradado para um filtro univoco de sépia que sela seus personagens com uma suprema exaustão.]
    Poderia dizer mais mil coisas sobre o seu ensaio, sobre a passagem aí em cima, sobre a resenha que escrevi sobre Faulkner quando fiz o segundo ano numa escola conservadora no Sul dos Estados Unidos...
    Engraçado que seu texto me fez pensar nos bustos de mármore e granito do múseo Pio-Clementino. No formidável busto de Cícero (ou um dos vários bustos de Cícero no Vaticano). Na conflagração com Marco Antônio, no luto de enterrar a própria filha e escrever um livro de filosofia afim de extrair-se da própria dor, na Res Publica usurpada, todas essas coisas marcadas nas sendas do rosto.

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  6. Em tempo, Juan Carlos Onetti é soberbo em descrever a metafísica e a vida própria dos rostos de personagens.

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    1. Fico sinceramente muito agradecido a esse seu comentário, Luiz. Bom que pense assim desse blog e de meus textos, pois corresponde às minhas intenções ao montar esse blog, que é apenas escrever, dando vazão às minhas ideias e sentimentos, de forma séria e concentrada_ por mais que pareça deboche (para cita uma expressão empregada por uma amiga em recente conversa por email).

      Estou um tanto sem tempo hoje, e, por isso, não posso largar minha veia excessivamente faladora. Fiquei realmente agradecido a essas suas palavras. De certo modo, isso aqui é um anti-blog, digamos assim, pois espontaneamente colaboro para que ele permaneça com seu tamanho provinciano : não aceito propagandas, não o propagandeio via nenhuma rede social, nenhum ser vivo que eu conheça em pessoa sabe de sua existência. É bom escrever, ver a coisa exposta, e ver alguma ou outra reação ao texto. E nesse ensejo, levo o blog a sério, mas dentro desses limites formados. Não raramente alguém aprecia algum texto postado aqui e o anuncia no Facebook, como está acontecendo em referência a meu texto sobre o Safatle (Patagônia), que desde uma semana vem "atingindo inéditos picos de audiência". E o amigo Milton Ribeiro, quando posta isso aqui no Sul 21, a coisa quase assume níveis surpreendente (tem suas vantagens, mas desde que eu não me sinta tendente a limitar às piadinhas mencionadas por você para ficar de olho nos acessos).

      Mas, de novo, obrigado.

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