quarta-feira, 11 de julho de 2012

Asterios Polyp, de David Mazzucchelli


Apesar do que falam das suas maravilhas de inovação estética (tanto que a Companhia das Letras teve que passar por uma sabatina rigorosa para ter os direitos de publicação da obra no Brasil, para ver se os critérios do original seriam mantidos), o deslumbramento real de Asterios Polyp está menos nos inúmeros detalhes do estilo do lápis de seu autor, David Mazzucchelli, do que em sua indissociável  fidelidade aos mesmíssimos velhos temas humanos, que um dia William Faulkner disse ser, entre outros, a honra, o amor, a morte, a amizade, a abnegação, a memória das pequenas coisas importantes tornadas sensíveis pelo sofrimento. Asterios Polyp também refaz a tradicional trajetória de busca interior que, por estranho que seja vivermos à sombra cada vez mais eloquente do individualismo de confinamento moderno à técnica e ao consumo, move os últimos grandes romances produzidos no país de seu autor. Presos a nossos computadores nas horas vagas que sobram da consagração religiosa a nossos bezerros de ouro cotidianos; vinculados cada vez mais à manutenção de nossos casamentos insípidos e na serialização contínua de treinarmos o melhor possível nossos filhos para os mandarmos na calibração da máquina, sem determos a razão precisa que deve estar na origem de todas essas devoções; ainda assim, nossas angústias profundas continuam sendo as mesmas do homem de trezentos, duzentos, cem anos atrás_ à época em que Nietzsche dizia que os conflitos individuais que engrandecem a espécie seriam tratados como simples inconveniências ressobradas da infância nas salas de psicanálise. Por isso, ao leitor que pensa irá ler algo suficientemente novo e original, ou consistentemente revolucionário, em Asterios Polyp, não terá em mãos nada mais que a matéria repetida ad eternum na liturgia das grandes narrativas (só para citarmos dois importantes romances americanos contemporâneos que perfilam o mesmo tema de Asterios: o magnífico Independência, de Richard Ford, e o elogiado Liberdade, de Jonathan Franzen). E é justo nessa inevitável persistência que está a grandeza dessa obra de Mazzucchelli.

Mazzucchelli é conhecido no universo dos aficcionados em histórias em quadrinhos por suas parcerias com Frank Miller nas reformulações adultas de antigos personagens infantis da DC Comics e da Marvel Group. Graças a essa dupla, heróis como Demolidor, e, sobretudo, Batman, deixaram de ser simples atletas de malhas colantes que deslumbravam leitores adolescentes, para se tornarem representantes de uma nova mitologia de heróis em que esses se tornaram personagens falíveis, perturbados por uma série de diagnósticos psicológicos freudianos, passíveis de se tornarem traidores à pátria e à moral, e se tornarem velhos com demência progressiva. Mazzucchelli está na linha de frente, junto a Miller (que é realmente o fundador da HQ moderna), da espantosa recuperação de interesse do cinema pelos quadrinhos, graças à imensa sofisticação que eles deram a esse tipo de narrativa. Essa repercussão dos novos potenciais dos quadrinhos para a arte trouxe uma reconceituação do gênero que quer aproximá-lo ao romance, de forma que alguns críticos já não veem diferença entre Luz de Agosto, de Faulkner, e Herzog, de Saul Bellow, de Maus, de Art Spiegelman, ou Retalhos, de Craig Thompson. Outros ainda defendem que os quadrinhos estão se tornando a substituição inevitável a um gênero cada vez mais obsoleto em reproduzir o homem moderno, como o romance.

Mas Asterios Polyp segue em frente e se vale por si mesmo, independente da hermenêutica que os teóricos entusiasmados tecem em torno dele. Claro que ele está longe de ter a substância e proporcionar a mesma entrega e refúgio de um bom romance. Em uma semana, eu li 1500 páginas de três importantes obras de quadrinhos, com os pés postos na beira da estante de livros e uma jarra de suco de melancia à mão do lado da cadeira. Mas para ler Guerra e Paz, que oferece a mesma quantidade de páginas, ocupei três meses em que nada me tirava da imersão no universo físico e espiritual criado por Tolstói, nem as noites frias em que eu varava insone sentindo que a temperatura cambiava um distinto fluxo siberiano vindo das frestas do grosso volume. Asterios Polyp ocupou uma hora e meia do meu tempo, na tarde de ontem, em que eu estava esperando em casa o telefonema de minha esposa para que eu fosse buscá-la, a às crianças, no clube. Talvez essa desocupação temporal, essa nesga de recolhimento à concentração, possa mesmo ser o futuro da leitura, conforme nos vaticina alguns autores pesarosos. Mas, como eu disse, esse é um dos trunfos de Asterios. Seus desenhos são propositadamente feios e infantis_ Mazzucchelli é um grande desenhista, por isso deve-se se atentar para os símbolos da ironia trabalhada de pintar Batman com esmero rembrantiano, e pintar um personagem autobiográfico como Asterios com os ângulos embolados simplórios de gibis antigos como Luluzinha.

Essa modéstia em se ver pelo outro lado da luneta é o que potencializa a verdade contida na obra. Asterios é um arquiteto mundialmente reconhecido, professor de universidade e autor de importantes livros sobre sua disciplina.Tem um gosto requintado por linhas retas e um apego à lógica que o faz uma presença temida na sociedade, um temor que vai se decantando com a idade a uma circunferência isolada em que todos, inclusive sua esposa, passam a vê-lo como um ser frio e egocêntrico cujo destino concomitante é a solidão. A obra é dividida em capítulos curtos, cada um com o tom variado de cores baças, azuis e vermelhos inofensivos e desgastados (o leitor chega a cogitar se não foi um erro na impressão). Como na foto autocrítica de Bob Dylan na capa de Blonde on Blonde, o desfoque é o prevalecente. Por vezes, Asterios é desenhado como um protótipo de homem incompleto, um rascunho de cones e retângulos, principalmente nas cenas em que discute com a esposa ou leciona para seus alunos bocejantes. E a esposa, a doce Hana, é uma personagem de traços resumidamente infantis, sem profundidade, como uma japonesa em um mangá_ a forma como Asterios a vê. Sendo que Hana é o único personagem com legítima profundidade, o que rende momentos tocantes em que Mazzucchelli, com invejável domínio de espaços significativos súbitos para outros níveis de compreensão esotérica, a faz dizer interioridades reprimidas que retiram o leitor do horizonte de conforto. Na extraordinária cena final, em que Asterios e Hana se reencontram_ uma cena gêmea à do reencontro final do casal protagonista de Liberdade, só que com os papéis invertidos_, Hana aparece com algo impreciso mas distinto que configura uma expressão mais sofrida a seu rosto, um ar adulto nas olheiras e na postura cansada, como agora pode vê-la um Asterios que perdeu um olho e que atravessou a pé campos gelados pela nevasca. E cada personagem tem sua grafia própria nas letras dos diálogos, que expressa de forma única um tanto mais de suas personalidades. Asterios Polyp foge de ser um romance. É desenhado com o desencanto e a despretensão de um mangá: há várias cenas que ocupam páginas sem um único diálogo. Há uma profusão de pessoas que beiram o esteriótipo, como a mulher mística intuitiva que vê a áurea e conhece suas encarnações passadas, a do roqueiro com ideias superficiais sobre a revolução socialista, a do diretor de teatro performático baixinho e insuportavelmente senhor de si, do compositor erudito que compõe segundo a estética impressa das partituras; mas em cada um deles Mazzucchelli imprime uma candura e uma urgência de reconhecimento que os legitimam. Asterios Polyp, pois, é um enlarguecimento da expressão confessional de um artista maduro sobre a degradação e resignação, ao nível dostoievskiano (com um enfeixe sarcástico indispensável), e uma fiel manutenção das origens de interesse dos tradicionais dramas humanos.


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