Quinta-feira passada fui à casa de um conhecido para fins particulares e sua esposa me pôs sentado à espera no sofá ao lado dos dois filhos, de frente à tv. Era o horário da novela mais assistida da Globo, a assim chamada Avenida Brasil. Já havia visto algumas cenas esparsas dessa novela, nessas causalidades inevitáveis das quais seria de todo impossível da minha parte identificar onde, em qual aparelho de tv ou em qual casa vi tais cenas, já que na minha casa nós nunca ligamos a tv na rede Globo. Minha esposa e eu, a título de rendermos a vênia vestigial à mídia corporativa das tvs, às vezes deixávamos o aparelho ligado em qualquer dessas outras emissoras de canais abertos (não temos antena parabólica e nem tampouco tv a cabo), só para fins incompreensíveis de promover algum barulho idiota como fundo a conversas soltas ou cafunés, enquanto falamos sobre o dia. Mas a maior das vezes, ficamos todos em outras atividades, como ouvir música, brincar com as crianças, olhando o teto, folheando livros infantis ou fartamente ilustrados.
Mas nessa quinta-feira, deslumbrei-me diante as cenas da Avenida Brasil. Vou descrever o que vi: um homem e uma mulher deitados no chão, cada um deles comendo um sorvete no palito. Os dois falavam sobre algo que parecia, a um não iniciado como eu, ser uma conspiração contra alguma pessoa, visando lucro_ um roubo, um sequestro, a venda de fotos obscenas, algo assim_, mas o que interessava mesmo eram as caras e bocas que faziam para demonstrar o quanto o sorvete lhes deliciavam. O sorvete, como aparecia claramente na embalagem, era o Magnum, da Kibon, recheado com creme e coberto com chocolate. Eu ali assistindo, fascinado. Em certo momento, flagro um improviso da atriz (Adriana Esteves, se minha memória não falha); um pedaço da cobertura de chocolate do ator cai no chão, e ela o acompanha com os olhos, e fica com os olhos por um bom tempo ali, nas coxas do rapaz, enquanto sua inteligência de profissional tarimbada se põe a pensar o que fazer, voltar os olhos para o moço e fingir não ter visto o acidente era algo amador e irreal demais; pegar a casquinha exigiria um desvio no roteiro que se embrenhava cada vez mais na intensidade dos projetos nefastos do casal, o que seria um anti-clímax (e a cena era toda em uma só tomada, para não supra-numerar o paladar de ambos com repetidos sorvetes a serem degustados). Ela então, num ás de esperteza artística, decide atacar o sorvete do amante. Enquanto ele reclama não sei do quê (se a demora da conclusão do plano; se o atraso na captura do refém; se a arma certa para a consumação do roubo), ela morde o sorvete dele, faz uma cara depravada, e aí então, avalizada por essa ousadia quebradora da uniformidade congelante diante as armadilhas do acaso, ela finalmente pode ter de volta o domínio de cena e erguer os olhos e seguir adiante com o script.
Passado esse momento de tensão, o rapaz (um antigo ator que não sei o nome, cuja idade já deve estar beirando os 50), vestido apenas com um short, se levanta e vai até o banheiro, levanta a tampa do vaso, arreia o short para baixo, e, enquanto vai mantendo o diálogo febrilmente coloquial com a Adriana, se põe a soltar um aguaceiro vertiginoso. Adriana pára ao lado das panelas que estão por sobre o fogão, pega uma, olha com aquela cara toda cheia de esteriótipos muito Globais e muito esteverianos que fazem os/as espectadores/as do outro lado da tela dizerem em uníssono nacional algo do tipo nossa, como ela é esperta: descobriu tudo, ou hahahaha, ela é muito má, nada passa batido para ela (enfim, alguma frase muito bem engendrada pelos psicólogos conhecedores do espírito brasileiro que escrevem as tramas, e que criam os esteverianismos para exercer a devida catarse na mulher padrão, dona de casa e emaranhada numa rede insípida de repetições cotidianas, afim dessas se sentirem vingadas pela cafajestagem ácida e simpática, o espalhafamento e a falta de decoro da Adriana), e então, Adriana leva a panela para a porta do banheiro e olha fixamente o seu macho. Este, como foi deixado momentos atrás, ainda está concentrado nos prazeres da micção cavalar (os publicitários deveriam prestar atenção nesses mínimos detalhes, vai que um sujeito mais sensitivo começa a associar ao picolé da Kibon propriedades altamente diuréticas), de maneira que demora a baixar a cabeça e abrir os olhos deleitosos para ouvir, com cara de tô ferrado (que meio Brasil repete em coro, em meio à mordida na coxinha do frango, ou na troca da fralda do bebê, ou na sombra da cortina puxada por sobre a janela para mandar a mensagem ao vizinho enxerido do apartamento ao lado se ele se manca e para de ficar espiando as pernas apijamadas). Adriana inquere violentamento ao ator quem lhe fez a janta, já que ele estava sozinho e sem grana para comprar comida de restaurante. Isso demora uns bons 3 minutos, em que Adriana monta no rapaz, já se deixando (claro que ela tá fingindo; ah...ela vai dar o troco!) ludibriar por suas desculpas, e o morde e o ameaça com a franqueza séria de uma viúva negra, de que se descobrir que ele a está traindo, o mata.
Nisso meu colega chega, me cumprimenta, e, olhando a tela, pergunta se poderíamos acabar de assistir à novela antes de irmos conversar na sala. Eu, verdadeiramente agradecido, digo que sim. Prossigamos: a Adriana sai do chalé em que deixa o amante (curioso, os personagens podem estar no fundo do poço e no mais bestial martírio social, mas seus redutos sempre são aprazíveis chalés, apartamentos ou casas de uma espécia de classe média de realidade alternativa, onde a miséria poupa atingir o sagrado mobiliário humano, daí as tantas lâmpadas acesas nas paredes, nos suspensórios da copa, nos interstícios finamente arquitetônicos das salas, como se as potestades que determinam a amargura vilã desses enredos desconsiderasse com benemerência o alto custo das tarifas elétricas), e, na cena seguinte, está beijando com carinho matriarcal o marido. Daí entra esse ator cujo nome já é por si mesmo um estudo sociológico sobre os efeitos da indústria cultural no país, Cauã Reynolds. Das cenas que vejo, ele sempre está num choro peripatético motivado por alguma angústia existencialista que eu nunca entendi bem qual é. Sempre ele está chorando, o que julgo ser uma artimanha de promover sua estética que preenche o zoom das câmeras e enternece o coração das expectadoras. Chora, chora, chora. Não pude mais entender nada, afora que há um núcleo à lá Oliver Twist centrado no lixão de São Paulo, um lugar dantesco e horrível em que um personagem constrangedoramente estereotipado de capitão Gancho procura não sei quais tesouros escondidos.
Acabada a novela, meu colega se vira para mim e diz: puta que pariu, como eles trabalham bem! E a coisa está justamente aí: a novela global é, por excelência, o mais bem acabado e excelente produto cultural brasileiro. Não há nada tão primoroso e rico como as novelas da rede Globo em nosso país, e não há nada tão poderoso quanto elas. Elas são tão fundamentais ao gosto e à personalidade do brasileiro, que basta prestar atenção e concluir: a Globo se sustenta apenas com as novelas. Tudo o mais na Globo é coadjuvante e infinitamente menor. E os gerentes da Globo sabem lucidamente disso já há anos. O jornalismo da Globo é péssimo; seus programas de auditório são estúpidos; suas manhãs são desimportâncias consentidas apresentadas por senhoras protegidas por regimentos contratuais; suas tardes são filmes mortos e auto-promoção das novelas e dos atores dessas novelas. Mas nada há que se compare, no mundo, com as novelas globais. Fazia tanto tempo que eu não as assistia, que muito foi meu espanto ao ver o quanto evoluíram e atingiram um nível sublime e inalcançável. Os atores são excepcionais. Cauã Reynolds não fica a dever nada aos mais promissores atores hollywoodianos. A câmera, agora, é a mesma usada em cinema, com definição limpa, ressaltando com uma beleza clássica os rostos e ambientes. E os diálogos! Assistam aos diálogos das novelas da Record, e depois assistam aos diálogos da Globo. É como comparar o mais esquecido dramaturgo português do século passado com James Joyce. Isso não é exagero, dentro dos parâmetros normativos do gênero desses espetáculos de entretenimento. Nas novelas da Record, um ator fala, depois cede a vez para o outro ator responder, como um jogo de crianças respeitosas; já na Globo os diálogos dispendem de um enorme talento de concentração, desembaraço e improviso, pois um fala por cima da fala do outro, expele saliva, continua falando ao caminhar para a saída de cena. Anthony Burgues, o grande romancista inglês, numa entrevista a uma revista brasileira, ressaltou a genialidade de Chico Buarque, mas quando perguntado festivamente sobre as novelas, respondeu secamente que eram estúpidas, sem o mínimo conteúdo artístico, sem a menor relevância. Não ouso contrariar a um escritor que foi capaz de escrever um romance tão extraordinário quanto Poderes Terrenos, mesmo porquê, longe da influência hipnótica de Avenida Brasil, posso ver com a devida distância o quanto de artifícios plásticos ultra-sofisticados encobre o silêncio das musas. Os romancistas latino-americanos como Vargas Llosa e Garcia Márquez, que apreciam muito as novelas e, inclusive, já escreveram sobre elas (Llosa em Tia Júlia e o Escrevinhador, sobre as novela de rádio; Márquez, escreveu toda uma temporada de O Direito de Nascer, como confessa em sua auto-biografia), talvez não imaginassem o quanto elas se tornariam destemidamente imbatíveis em suas eficiências sociais. O que sei é que não me aventuro mais à sugestão provocada pela sua longa exposição.
Postinho: eu poderia ter colocado o mais que bem treinado Eric, de 3 anos, para capitanear esse momento histórico, mas nada seria mais bombástico que, no lugar de um menino já bastante articulado na fala e nas ideias, a protagonista fosse uma mocinha inofensiva de menos de dois anos, de vestidinho rosa e fitinha no cabelo, que pronuncia suas palavras com o acento de distorção terno das crianças dessa idade. Por isso, ao fim de incansáveis três meses de treino, eis que a Júlia, minha filha de 1 ano e 9 meses, realiza o prodígio. Um grupo de senhoras de 60 e 70 anos passa diariamente de frente aqui de casa e, com o didatismo manso e sem surpresa de acirradas empreiteiras evangélicas, põe-se a falar de Jesus para a Júlia. Você já aceitou Jesus, mocinha?; papai e mamãe já te levou para ver Jesus? essa última frase acompanhada de um olhar enviesado e admoestador para o pai sentado na cadeira, com sua barba não muito promissora nas hostes ecumênicas, e o livro em mãos não sendo o Sagrado. Fala pra mamãe levar o bebê para a igreja no domingo para ver o culto e receber a unção de Israel, fala. Nisso, sinto o ar se carregar de tensão na sala, e a Dani, minha esposa, fugindo pela tangente para a cozinha ao ver que a Júlia, enfim, se prepara para realizar o ensinamento. A Dani pediu peloamordavirgem que eu não ensinasse isso, com aquele sorriso traquinas de quem adoraria que eu fosse dissoluto o suficiente para continuar a ensinando. E quando se desenha no cérebro da Júlia o momento propício para o feito, quando ela levanta a mãozinha e olha atentamente para controlar os dedos no gesto aprendido, a Dani diz avemariavaiseragora, e sai pela tangente não controlando o riso. Uma das senhoras retira os óculos para ver melhor o que a pequeninha está fazendo, olha só, ela vai mandar beijo para vovó, que coisa linda; a outra das sete velhas diz, não, ela está estendendo o bracinho para pedir a benção. Mas não. Para meu orgulho, a Júlia desce os dedinhos do meio, ergue os indicadores e os mindinhos das duas mãos e mostra o símbolo cornal, dizendo, em seu proto-português bastante distinto: Vovó, vovó, o diabo é o pai do rock.
HAHAHAHAHAHAHAHA! Melhor resumo de capítulo de novela que eu já li! A Júlia deve ter ficado muito fofa fazendo \m/
ResponderExcluirFicou muito fofa, sim. Inesquecível!
ExcluirLMFAO!! Nunca ri tanto com um texto seu, Charlles. Antológico! Ri muito quando li "Cauã Reynolds" (seria o galã o nosso Burt Reynolds ou a versão abrasileirada do Ryan Reynolds?). Faz muito tenho tentado reunir alguma desculpa para o estranho de Avenida Brasil vir pedindo tanto de mim. Não perco um capítulo. Um. Assinamos Globo Internacional aqui e, em vez do futebol, é a Avenida Brasil que demanda a nossa mais apiedada atenção. Tenho elencado aqui na minha apologia estética pessoal tudo desde a cinematografia mais madura do diretor aí da novela, até a repetição do tema Homérico do herói (anti-herói) que, de forma abscondita, vive o alter-ego de doméstica/mendigo enquanto observa de sua posição privilegiada o drama cotidiano da casa do herói, como se a Nina (Rita) fosse assim um Odysseus Redivivus. Não tem remédio... Fui invariavelmente fisgado pelo poder midiático Global.
ResponderExcluirRapaz, a cada dia tu me surpreende mais...
ExcluirE eu achando que a tua filha tinha aprendido a exibir o dedo médio para a vovó. Fiquei aliviado por ela só ter, hum, citado Raul. Sobre novos galãs, nome do fulano Cauã Reymond (mas Reynolds é muito mais divertido). Fábio Carvalho
ResponderExcluirCauã REYMOND!!! Juro que não sabia. Isso reforça minha teoria de que deveriam fazer uma monografia de ciências sociais sobre esse prodígio.
Excluirmuito bom.
ResponderExcluirpega uma partida (ou MEIA) do atlético goianiense e relata pra gente hauhauha. se for contra o Grêmio, melhor.
Como gago, arbo, teria que repetir, na hipotética narração futebolística, um sketch da antiga TV Pirata: lá vai, lá vai, la vêm lá vêm, e é gol.
Excluirahuhauhauhauahau
ResponderExcluiro Grêmio tem um jogador chamado (apelidado) de Léo Gago. Taí uma camisa pra tu vestir.
Charlles, publiquei um conto por uma revista. Não encontrei seu e-mail para te mandar o link. Se te interessar em ler, cá está o link.
ResponderExcluirhttp://revistapesquisa.fapesp.br/2012/07/16/bartolomeu-louren%C3%A7o-inventor/
Paulo, Meu email é --charllesfaulkner@bol.com.br--.
ExcluirVou ler seu conto com atenção.
Forte abraço.
charlles, tu sabe bem mais do q eu, isso aqui tem chance de ser tudo verdade?
ResponderExcluirhttp://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/07/americano-contrai-versao-de-peste-que-dizimou-europa-na-idade-media.html
Coisa impressionante, arbo! Penso que seja verdade, sim. Numa pesquisa rápida pelo Google, pode-se ver que, apesar de raros, novos casos de peste bubônica ainda aparecem no mundo atual. As doenças, de modo geral, tem uma validade cíclica, e não seria uma simples ficção achar que doenças antigas retornem e estejam geneticamente à frente da obsoleta imunidade humana a elas. A influenza, que não é outra coisa que a simples gripe, não matou várias pessoas?
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