Dos livros que li do inglês Ian McEwan, o melhor é essa curta novela premiada chamada Amsterdam, que serviu a fundamentar a mestria do autor na grande tradição anglo-saxônica de misturar suspense popularesco com literatura cerebral sofisticada. Eu leio tudo de McEwan desde que recebi esse cartão de visitas de seu incontestável talento, mas McEwan nunca afigurou nem como presença secundária em meu cânone particular de autores modernos. Leio-o com o mesmo prazer que há 15 anos eu lia Stephen King: sem compromissos mas com deleite, e sem a mínima sensibilidade de me indignar se o produto oferecido não corresponde ao esperado. (O anticlímax febril é destinado às decepções provocadas pelos escritores que amo; daí eu ser tão descontente com Uma fábula, e Henderson, o Rei da Chuva.) Desde que vi o esquematismo por detrás da legitimidade de obras como Amsterdam e Reparação, já situei sem mágoas McEwan como um Graham Greene mais pobre, cujas armas de ofício são suficientemente visíveis para o leitor adulto que assistiu demais a filmes de espionagem para apontar os cacoetes de estilo e os maneirismos da narrativa. McEwan, que foi autor de roteiros televisivos, talvez tenha abandonado tarde demais essa antiga profissão, antes que pudesse imunizar-se dela pelo abraço mais perfuntório à arte romanesca. Daí ser fácil visualizar o real McEwan, escritor talentoso e válido, que consegue imprimir prazer suficiente em sua escrita para se continuar todos os anos comprando seu mais novo lançamento, do McEwan hipertrofiado das críticas festivas ou dos informes publicitários disfarçados de revistas especializadas, que querem vê-lo com o mesmo peso de Philip Roth ou Henry James. E por isso Amsterdam é seu melhor e mais bem escrito livro, já que permite distinguir o mobiliário padrão e os recursos cênicos de praxe em bem menos páginas que se leva a ver a mesma coisa, exaustivamente, em obras mais caudalosas como Reparação.
Amsterdam é rápido, digestivo, muito bem escrito, londrino, noturno e discretamente ensolarado na medida certa, e tem um final que com um pouco de boa fé agradecida aceita-se como exemplo de humor metalinguístico e não como fragilidade formal. Basta ler seu primeiro parágrafo para perceber que McEwan o escreveu com o prazer outorgado pela, enfim, mestria manifesta. Para se chegar a tal nível de proficiência, McEwan cometeu uma série de histórias competentes mas que ecoam inevitavelmente a impressão de coisa muito vista antes não se sabe onde, como a novela manniana Ao Deus Dará, ou à releitura involuntária de Fim de Caso, de Greene, em Cães Negros, que são, repito, boas e muito legíveis, mas que nada acrescentam. Então sobreveio aos ombros persistentes de McEwan a inspiração de Amsterdam, que mesmo tendo a estrutura de uma novela de William Golding, Homens de Papel (com sua paisagem de fundo sendo a morte de uma mulher; ter a cena semelhante de má interpretação por parte de um dos personagens em um passeio bucólico pelo campo; e o final teatral muito, mas muito parecido) ainda assim é deliciosamente original por ser deliciosamente mcewaniana, com o tempero de ser a mais despretensiosa de tudo que se seguiu dele depois disso.
O clima de loucura progressiva dos dois personagens principais tem a adstringência de não requerer nenhuma linha de condução psicanalítica ou operística_ não fica tão perene a armadilha em que McEwan cai frequentemente de se mostrar consciente de estar escrevendo um grande romance_, mas ocorre num nível tão cotidiano que mesmo sendo a coisa mais esperada, ainda assim não poupa o leitor de uma dose de assombro. Um traço distintivo de McEwan é que em cada um de seus livros há uma descrição didática exaustivamente pormenorizada de um evento que, não raramente, está no núcleo do tema. Em Reparação encontramos uma série delas, desde o exame da funcionalidade biológica das mãos pela garotinha do início da trama, as arrumações dos cenários da peça infantil que é encenada, as localidades de guerra documentadas com pedantismo, os sinais do Alzheimer; em Sábado há um longuíssima cirurgia cerebral; em Solar, uma palestra feita pelo herói da trama, que não difere em nada dos libretos soporíferos de entidades ecológicas. Mas em Amsterdam, o detalhismo de McEwan recai em páginas fascinantes sobre a intuição musical de um dos personagens ao vislumbrar paulatinamente a linha principal da sinfonia que pretende compor. Essas páginas já valem o investimento, talvez sejam o tesouro da narrativa anglo-saxônica dos últimos 15 anos. E as tramas paralelas que recheiam um programa tão curto formam outra parte do mérito, com a chantagem a um político; os bastidores corruptos da grande imprensa de mercado e suas caças aos furos de reportagem; a degeneração cerebral. Li Amsterdam três vezes, e me aguardam novas leituras.
Ainda acho que o Ian e outros mais escrevem de acordo com as demandas dos editores que ficam a pesquisar temas da moda ou lacunas a cobrir no mercado editorial; esses editores mandam o resultado de suas pesquisas aos seus escribas e eles produzem de acordo com certos ditames, como uma personagem escritora feito pela Romy Schneider (não me lembro do título) em que ela era secundária, pois escrevia para satisfazer os preceitos de um computador que lhe ia indicando os caminhos a seguir na narrativa, de acordo com uma programação estética rígida.
ResponderExcluir