Os escritores de língua espanhola atuais nos reservam o grato reconhecimento da mais alta tradição literária em suas obras. Lê-los não é só rememorar constantemente um caminho percorrido da leitura, com suas nostalgias da adolescência e a percepção segura de um aspecto valioso da verdade só conseguida com o que a maturidade nos antepõe de preparo diante a página aberta, mas também um elogioso afago ao nosso imodesto conhecimento livresco. Então que livros como Seu Rosto Amanhã, que não trata de forma tão explicita da metalinguagem literária como O Mal de Montano (e os demais de Vila-Matas), nos dão a impressão deleitosa de estarmos andando através da margem do Sena onde ficam as bancas de livros usados, ou de sempre estarmos atravessando as escadas que nos levam a um apartamento pequeno mas acolhedor de cuja janela observamos a dama obscura, detentora de alguma auto-revelação infeliz que a torna perigosamente isolada no apartamento de frente, ou vemos na janela mais distante, numa noite de chuva londrina, o bailarino que em altas horas executa seus passos de dança no silêncio junto a uma negra de beleza portentosa e uma loira de vestido vermelho elegante; alguns desses tantos sinais distribuídos generosamente entre as palavras acentuadas com um tom ligeiramente antiquado a propositadamente tangente ao obsoleto, maneira astuta infalível de restituir ao livro seu caráter mobiliário, de coisa que se pode habitar, de conforto físico de seda e veludo, de sapatos retirados ao lado da cadeira, de sonoridade imprecisa intermitente que se repete a um nível subsônico (uma abelha na vidraça do quarto dos fundos, a chuva sobre o telhado, as folhas das árvores revoando singelamente, ou mesmo uma surreal motorneira ou uma força indistinta que simula o som de impacto abrupto arrastado de uma motorneira a três quarteirões de distância na noite escura e vazia), que embala nossa atenção languidamente ao sabor da prosódia descansada e profunda do livro (descansada, tensa e magneticamente profunda quanto A Arte da Fuga que escuto agora pela undécima vez enquanto escrevo, e que é a trilha sonora magnífica para tais leituras). Seu Rosto Amanhã nos restitui, a nós, os leitores insubmissos a fórmulas pequenas de grande sucesso ou apenas às triviais trapaças de mercado que apontam novas modas do romance para ver se pega, o direito de desprovermos de qualquer necessidade de cor para nos declararmos despreocupadamente como velhos leitores, portadores de carteira do clube e com direito a admissão seleta a qualquer hora, com café ou chá à espera, com nossa poltrona pessoal de couro, com a caixa de som de madeira em forma auricular apontada para o lado das cortinas, em que a música se distribui na melhor e mais apropriada acústica. Conhecer Javier Marías ano passado foi equivalente em intensidade ao recolhimento da descoberta de Thomas Mann aos 16 anos, em que Doutor Fausto me abriu as portas do gabinete do clube mesmo eu estando em uma chácara mineira da minha avó, com ganços e fogos-fátuos surgindo no campo de madrugada. Há poucos livros que se permitem morar neles; mesmo Doutor Fausto não é apropriadamente um deles, mas Thomas Mann foi o que mais criou romances-moradias, romances-castelos medievais, romances-asilos europeus (há uma redesignação deles em romances-salões de baile, Tolstói sendo seu representante máximo); há de ver que Montanha Mágica é o maior desse gênero de romances (por vezes ao ano, geralmente no inverno suíço, eu deito sobre o meu divã e faço os três movimentos virtuoses que aderem plenamente o cobertor de couro de camelo por sobre meu corpo), mas também há a mansão em processo de falência dos Buddenbrooks, e todo o recanto oriental da aldeia de José e seus Irmãos. Javier Marías é o mais eficiente sucessor de Mann, considerando que seu conterrâneo, Vila-Matas, muitas vezes perde a maestria ao evidenciar demais os mobiliários e assoviar em volume impropriadamente alto, ou deixar o fogo da lareira descuidadamente um pouco acima do limite ideal, fazendo que fagulhas pulem para fora e queimem o feltro dos chinelos dos sócios. Só Javier tem a medida correta de acalanto, de rumorejo, de irresistibilidade, de pertencimento, de sossego despreocupado. só ele tem o volume valvar da voz que silencia tudo em torno e nos afunda no mundo. Bolaño conseguiu construir seu romance-moradia em 2666, mas o decorou com cores aberrantes demais (o que não é de se criticar, pois é um dos poderes do livro), que ofuscam as vistas para o enquadrar no cânone dos romances arquitetônicos. Junto a Marías, eu conheço, entre os escritores vivos, apenas um outro com a mesma genialidade estrutural, o italiano Claudio Magris. Mas Danúbio não é propriamente um romance, o que, apenas pelo valor conjuntural, coloca Marías na frente.
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Não à toa esses escritores_ os dois espanhóis, o castelhano e o italiano_ devem muito a Borges, o construtor por natureza de clubes de recolhimento nos quais se entra pelo fisicamente reduzido portal de um conto. A diferença do conto-moradia de Borges é que mal se senta em sua poltrona e distrai-se a olhar para as luminárias a meia luz do teto, já se tem que pegar seu bilhete carimbado de volta do mordomo perfeitamente cavalheiresco da entrada, e se dirigir para um outro ambiente com outra luz e canção atmosférica subliminar, pois um conto pode ser infinito mas materialmente mais curto que a biologia determinada do leitor por feixes neuronais que só se aquietam com uma longa e mimada constância. Mas em Borges, esse excepcional arquiteto, esses autores não bebem apenas a sua riquíssima criação autoral, mas também os outros arquitetos milenares da escrita que a erudição gigantesca de Borges surrupia e os usurpa como sendo seus. Borges tem tanto para ensinar a esses erguidores de palácios, que mesmo um outro autor de romances-moradias (um tanto sombrias e rumorejantes, mas ainda assim, ou talvez em razão disso, insuportavelmente sedutoras), Franz Kafka, recebe um olhar carregado de ineditismo, aponta marquises e ângulos de canto que o simples pernoite na obra original não nos deixa ver. Borges tem as lentes certas e os candelabros raros de luzes mais sofisticadas para nos guiar pelos clubes de construtores como H. P. Lovecraft, Arthur Machen, Sheridan Le Fanu; e é tanto maior o charme do recolhimento ao vermos que são mansões e casarões espaçosos cujo interior aquecido em nada adverte contra as charnecas cercantes e a aparência externa geral de total esquecimento e abandono. Borges reforça com tanto brilho os tons de malta do interior dessas moradias que nos torna improvável acreditar que um dia elas poderiam estar esquecidas. Magris tem a mesma dívida que Vila-Matas tem a Borges: o imaginário literário que o argentino guarda na maçonaria de seus conhecimentos históricos sobre o universo dos livros. Borges dá a cada página a esses escritores os marcos na paisagem em que eles devem se deter e observar, e Magris deve-o mais por escrever com semelhante requinte borgeano de insinuar espaços e tramas maiores que o poderiam comportar o parágrafo de um autor menos capaz e de menor talento. Em Magris constantemente vemos o movimento da paleta de Borges, sua forma de apreender uma verdade inalcançável através de gestos estudados de enfado altaneiro, como quem diz que sabe muito mais que anuncia, que vê mais que a fisiologia dos olhos ou a cegueira capacita (por isso a mim parece que entre as maiores páginas de Borges estão suas resenhas e prólogos minimalistas que cobrem meia página ou tão somente uma página inteira: como o dilema resolvido de Borges partisse de que tudo o que escreveu repete o ponto concêntrico no porão de onde se vê todo o universo, no O Aleph).
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Em uma das partes mais magistrais de Seu Rosto Amanhã, o narrador conversa com um colecionador de livros, e ambos dividem o apreço que sentem por um dos autores borgeanos que nunca ouviu falar de Borges, o escritor galês de contos de terror Arthur Machen. O colecionador de livros, que é manco e sempre está na presença de seu cão com três patas, diz que a narrativa de terror surge pela união de elementos estranhos e incompatíveis, que de outro modo que não fosse o propósito de confeccionar o implausível aterrorizante jamais a providência dos fatos deixaria que se encontrassem. Assim, ele explica, apontando pela janela do apartamento londrino do narrador a bela vendedora de flores da esquina, se juntarmos o meu cão de três patas e aquela moça das flores, já temos ambiente mais que suficiente para o desdobramento de um passado escuro que transverte a singeleza da moça em crimes escondidos e monstruosidade. O colecionador diz que seu cão perdeu a perna ao serem ambos atacados por uma turma de delinquentes, que, ao verem-nos saírem de um pub, o espancou e prendeu seu cãozinho nos trilhos diante o trem que se aproximava. Isso aconteceu, conclui, por eu ter levado uma vida desregrada que me permitia frequentar lugares perigosos, em horários impróprios, de forma que levar pela vida toda a minha manqueira e meu cão se suster em três pernas em vez de quatro não é tão uma fatalidade quanto parece, mas uma consequência matematicamente plausível de que em algum momento o pior iria acontecer. Mas se víssemos aquela doce florista com um cão de três pernas, aí sim teríamos muito o que pensar e temer. A moça jamais deve frequentar ambientes reclusos e suspeitos, deve sair de sua barraca de flores e voltar cordatamente para a casa da mãe; sua vida é tão frugal e previsível, que a companhia de um cão de três patas revelaria a necessidade de que um desvio padrão acontecera em sua calma instância espiritual, um surto de loucura, em que ela teve por um momento em mãos uma faca, a chamada de intensa fúria reprimida pelo cãozinho que se esconde por debaixo da estante da cozinha...
Fantástico o seu texto, Charlles.
ResponderExcluirTeria como você projetar essa visão sobre a possibilidade do "romance-moradia" em Dostoievsky, Charlles? Se bem que Dostoiveky nos arranca de "nossas casas" e nos torna andarilhos e caminhantes de nós mesmos!
Obrigado, Carlinus.
ExcluirMas o romance-moradia (uma pequena brincadeira pretensiosa da minha parte em querer bancar um de catalogador, mas um conceito que eu tenho desde pequeno) é rico em vida e atribulações, instigante e provocador, apesar do imenso conforto e alegria que provoca.
Dostô, como não? Os Demônios, um de meus romances preferidos, é cheio de portas, janelas e sombras. Um romance-moradia, por certo.
Boa essa do romance-moradia.
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