sábado, 14 de julho de 2012

Três Dedos de Prosa sobre Isolamento Doméstico e Fetiches da Escrita



Minha paz foi refeita ao comprar há dois meses duas estantes de madeira para colocar os livros sobressalentes espalhados pela casa. Adquiri-as por 450 reais cada, e são da melhor madeira disponível no mercado_ deveria saber o nome da madeira, mas nem minha esposa, que tem uma prodigiosa memória catalográfica soube me responder. Tem cinco andares espaçosos e largos, de forma que cabem livros de todos os tamanhos em duas fileiras, com conforto e sem perigo de causar estragos aos volumes. Coloquei-as na sala dos fundos da minha casa, um cômodo pequeno mas muito acolhedor, que tem uma janelinha bem em cima, pequena e quadriculada e que jamais abre, por não ter sido feita para abrir, e uma janela grande mas que dá para o muro da casa do vizinho, que por ser um prédio de três andares forma uma eterna sombra crepuscular que refresca e me lembra_ a mim, cuja vida é intimamente dependente da memória dos livros_ os muros das histórias de Kafka, o muro de Bartleby, o muro do hotel onde Fante escreveu Pergunte ao Pó, o muro do sanatório em que Walser viveu seus últimos anos, o muro da cela de Edmond Dantès, o muro da cela de Dostoiévski e Soljenitsin; enfim, me lembra coisas que para a maioria dos mortais seriam impressões opressivas, mas que para mim são ternas e recolhidas.

Neste pequeno cômodo coube quatro estantes com tudo que tenho em matéria de livros. Acho que dão uns dois mil livros. E é engraçado pois nunca pensei nos termos de ser um dono de uma biblioteca. Acho que o Milton Ribeiro disse ter 6000 livros, mas não é o tipo de informação que me cause inveja. Desde que comprei as estantes, porém, uma compulsão por comprar mais livros me tomou conta. Qualquer ganho a mais que eu tenho em atendimentos particulares como veterinário, invisto-os em livros_ até então, os depositava em uma poupança; mas imagino ser uma graça irresponsável passageira. Como ficou um andar em uma das estantes por preencher, venho inventando todo tipo de subterfúgios para tornar à minha consciência de pai progressista econômico crente nas teorias de prosperidade financeira weberianas baseadas na vida frugal susceptível a abrir uma exceção a um livro indispensável, proverbial, que dará ótimos resultados ao crescimento espiritual das crianças e à harmonia interna da casa. Como, por exemplo, ficar sem os desenhos de árvores retorcidas e vilas medievais de Três Sombras, nessa altura do frio caudaloso que faz por aqui, em que tais visões devam dar uma ampliação na sensibilidade das crianças para compreenderem melhor, compreenderem emocionalmente, o esoterismo do inverno?; ou como não reler Além do Bem e do Mal, na tradução premiada lançada pela Companhia das Letras, depois de ser confrontado em uma conversa de escritório com um colega que defendeu torpemente e com certezas fundamentalistas a maravilha humana do neoliberalismo?; pois só Nietzsche me armaria da munição certa para contra-atacar um desafeto tão ofensivamente moral (e tome em cima do maldito o homem sem peito, e a flacidez e a morte da arte e da filosofia surgida com o consumo sem freios). Ou como não atender à urgência inexorável de ler o recém lançado romance de Vila-Matas, para ver outra coisa da Espanha que não seja sua derrocada vergonhosamente mostrada nos telejornais? Um país inteiro dependendo de mim e eu não vou dar ouvidos a um clamor desses? (E o pior é que quase fiz o passo que determina a condição de vício adquirido, o de alugar uma caixa postal nos correios, para que as chegadas contínuas das caixas da Livraria Cultura todas as semanas não comece a despertar a sanha investigativa da minha esposa_ ou evite que o Júlio, o carteiro que perdeu 30 quilos desde que assumiu o cargo conquistado em concurso público ano passado, estacione sua bicicleta diante o portão e me diga que parte de seu salário está sendo pago por mim, que se dependesse de pessoas como eu os correios brasileiros jamais correriam perigo.)

Pois bem. Jamais imaginaria que duas simples estantes me proporcionariam uma reviravolta determinante em  minha vida. Há alguns meses a Dani identificava certos comportamentos impacientes, certas mudezas, certas evasivas da minha parte. Ninguém melhor que a Dani me compreende. Afinal ela foi a única que passou por todos os testes da minha personalidade, e ainda continua comigo. E a única que não se assombra e tem uma inteligência inigualável para estar sempre dez passos à frente das minhas manhas e pirraças, em posição segura e altaneira, em absoluto controle da situação. Por isso foi ela que veio com a ideia: por que você não compra uma estante para desatolar essa quantidade de livros pela casa?; e por que você não coloca essas estantes no cômodo dos fundos e passa a chamá-lo, oficialmente, de biblioteca? Pois as comprei, meio com o ressaibo de culpa por gastar com isso, que provavelmente era weberianamente supérfluo e contraproducente à poupança para a universidade das crianças, e a Dani ajeitou os livros em uma tarde em que estive fora, e a Dani ajeitou o cômodo retangular de forma a que ele ficou o dobro do tamanho e o tipo do lugar em que eu pude abrir os braços e repetir a frase imortal de Richard Pryor em Chuva de Milhões: eu gostaria de morrer aqui! E a Dani pôde confirmar suas predigas de cura ao ver que meu humor melhorou poderosamente e minha paz de espírito se refez, pois como ela iria falar abertamente a um pai paranoico que ficar sem responder aos filhos para ficar recolhido em si mesmo não é um ato de violência psicológica, mas de respeito à sua própria incontornável idiossincrasia? Pois nesse quarto, quero dizer, nessa biblioteca, na qual escrevo agora, voltei a retomar projetos inteiramente sérios e despropositados, projetos que são motivos de silêncio e abandono, as únicas áreas de mim mesmo com as quais sou perfeitamente resolvido nas insuficiências, embustes e pretensões. E as maozinhas que vinham bater à porta e me chamar, que tanto me cortavam o coração, mostraram sua independência e compreensão ao não insistirem mais diante a ausência de respostas, passando a se ocuparem com outras grandes alegrias.

P.S.:O propósito deste texto foi testar o delicioso programa que o Cassionei Petry apresentou em seu blog, que faz com que as teclas do computador ressoem o mesmo barulho das saudosas Olivettis. Que delícia! Que vício! Estou esperando a noite cair para ver como esse som se apresentará na solidão da biblioteca. 

6 comentários:

  1. Belo texto. Me vejo, de certa forma, nele. No meu caso, a garagem virou biblioteca, mas as estantes, como tu já viste em foto no meu blog, são, por enquanto, aquelas horríveis de ferro.
    Quanto ao som da máquina de escrever, uso fone de ouvido, sou egoísta.

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  2. Baita texto, Charlles! Puta merda! Como escreves bem! E a inveja se agiganta quando sou sabedor de um negócio desses - ter uma biblioteca. Vem-me à memória um epíteto utilizado pelo Érico Veríssimo: "o porão da liberdade". No meu caso, tenho um espaço limitadíssimo. Casei há pouco mais de um ano. Quando ainda morava na casa da minha mãe, possuía muitos livros - quase mil e quinhentos. Trouxe grande parte deles para a minha nova casa. Mas, para a minha tristeza, tive que doar tantos para uma biblioteca pública; e dei tantos outros e aquilo foi embora, como um pedaço. Talvez eu tenha me desfeito de 400 livros.

    Atualmente, moro em um apartamento de 1 quarto. Eu e a minha esposa fizemos uma estante enorme. Custou caro. Quase 4 mil reais. Tenho investido na compra de novos títulos. Esta semana devo ter comprado uns três livros pela internet. Quinta-feira, fui a um shopping aqui de Brasília e acabei comprando dos pockets. Esse negócio é viciante. Todas as vezes que compro um novo título, minha esposa me olha com aquela feição investigava. Murcho. Fico cheio de ressaibos. Ela é dada a mania de organização e não gosta de ver livros fora do lugar.

    Comprei uma caixa da Folha de São Paulo há alguns dias atrás e tive que fazer uma ciranda física para acomodar os novos moradores. A caixa com os 25 livros ficou mais de um mês num canto da sala. E eu a receber aquelas invectivas do olhar de minha esposa.

    Planejamos comprar um apartamento maior daqui a alguns anos. O primeiro ato será a construção do "espaço da minha liberdade", como esse que o você e o Cassionei possuem.

    P.S. E a propósito: o barulho da máquina de escrever é uma delícia. Faz-nos ter a leda ilusão de que somos Drummonds; ou de que estamos numa repartição pública antiga; ou ainda numa delegacia, escrevendo um inquérito policial.

    Abraços!

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  3. Grato, Cassionei e Carlinus.

    Na verdade sou um comprador de livros compulsório, mas regro bem minhas despesas. Já disse aqui, no passado, que uma das minhas razões por ter optado por uma vida no interior é o tempo livre. Outra é que o custo de vida é beeeeeem menor que o de uma metrópole_ Brasília, então, nem se fala.

    Por muitos anos eu fui incrivelmente despojado. Digo incrivelmente pois só três anos para cada pude ver isso, que foi quando deixei de morar sozinho e constituí família. Eu morei em tantas casas estranhas e arabescas que daria um bom tema para um post. Minha esposa, assim que a levei numa noite para uma dessas casas, ela foi ao banheiro e voltou trêmula, pois eu havia esquecido de adverti-la de que o interruptor do banheiro estava aberto e os fios desencapados à mostra. Em nossa primeira noite, e eu quase a mato eletrocutada. Em outra casa, o sistema de condução de água do chuveiro parou de funcionar, e eu tive, por meses, que tomar banho na pia da área, de onde, certa vez, eu escorreguei e levei uma queda quase fatal_ observado, como pude ver depois, por duas enfermeiras voyers da janela da maternidade que ficava de frente. Em outra ainda, descobri que havia sido um puteiro histórico da cidade, onde haviam sido assassinadas violentamente cinco pessoas, e na noite que tive que passar ali, antes de me mudar e após tomar conhecimento disso, dormi sentado numa cadeira de fio na área de fora, pois não conseguia tirar da cabeça que alguma mão de uma das vítimas iria cobrar de mim uma tardia justiça me puxando a perna. E assim vai.

    Foi a Dani que me orientou para um minimo critério de posses e orgulho material. Vai parecer gozação minha, mas um amigo que me visitou, numa dessas casas de abandono onde morei, saiu espalhando a mítica de que eu guardava livros na geladeira. Eu era tão alienado quanto à minha auto-concepção, que foi com assombro que realmente pude ver que, junto ao leite talhado e alguns tomates que já estavam por virar a esquina de uma nova espécie biológica, dois romances do Auster e Tremor e Temor estavam congelando mansamente na grade da geladeira, afim talvez de manterem no prazo de validade o teor de suas ideias. Por isso, essa estranha, inédita, mas sossegadamente maravilhosa ideia de posse.

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  4. Não sei onde eu li que um personagem guardava livros no banheiro.

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  5. Os meus livros estão na casa dos meus pais... ai...

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