quinta-feira, 12 de julho de 2012

A Felicidade Feérica de Cada Semana


Talvez seja uma impressão fundada apenas numa certa exaustão sensorial de quem não gosta de futebol e vive num país onde o futebol é uma marca genética poderosa; e não uma apreensão baseada em fatos. Mas me parece que espocam demais fogos de artifício todas as semanas nos últimos meses, para se comemorar no país inteiro um time estadual que alça à categoria de campeão seja lá de que nome pomposo. Dentro dessa poluição elegíaca à virilidade de um clube de futebol, entremeada a felicidades bélicas do mais primitivo patriotismo bairrista, me parece que a cada semana uma conglomeração de torcedores rivais tem motivos de gastar uma quantidade substantiva de dinheiro em fogos, e uma quantidade ainda maior de ferocidade feérica pela superioridade angariada com a sobreposição anual de sua camisa à camisa de seu inimigo_ ainda que essa superioridade seja marcada pela mais inconsciente ironia, já que dura um ano e no ano que vem uma outra estará cantando as graças olímpicas de seu lugar. Pela televisão vê-se o rosto em prantos de um rapaz agradecendo seu pai por ter-lhe feito amar o Corinthians; vê-se que dois ou três jovens_ os números diante a flâmula incontinente das massas se torna um expoente trivial_ foram mortos nas comemorações da vitória do Fluminense contra não sei quem; um motorista que se viu submetido a uma tentativa de linchamento ao entrar numa avenida urbana tomada pelo campo adversário, teve que sair atropelando meio mundo de pessoas enfiando seu carro e proporcionando cenas que lembram a caça ao mamute de filmes da década de 1920. E não é para menos que os intelectuais_ ou aqueles que mais se adequam ao pragmatismo dessa categoria_ da mídia nacional sejam, em sua retumbante maioria, jornalistas esportivos ou entusiastas fervorosos do futebol, a ponto de cumprirem os itinerários da via sacra de perseguidos e assassinados que em outros países menos direcionadamente passionais vemos ser o sina natural de dissidentes políticos. Não há em nenhum outro país um escritor que tenha parte de sua obra autenticada por um esporte como vemos aqui nas crônicas canônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol. Os que me veem à memória são a tauromaquia de Hemingway, que era usada como artifício filosófico da violência reacionário do homem que fez sua "paz em separado" da sociedade, e as caçadas siberianas de russos como Tolstói e Turgueniev, cada um deles como propósitos cênicos secundários.

Mas em nenhum país um escritor teceu frases tão carregadas de uma filosofia inédita a uma hermenêutica do futebol quanto Nelson Rodrigues, com seus aforismos poderosos de "pátria de chuteiras", etc. E em nenhum pais simples radialistas esportivos se tornam porta-vozes políticos involuntários ao recambiar suas críticas para o terreno da administração do estado, denunciando governadores, sofrendo em consequências perseguições que devastam sua vida pessoas, familiar, e lhe deterioram o espírito. O caso mais claro é o do Jorge Kajurú, que foi defenestrado para fora do estado e se converteu no primeiro exilado político interno que a história do país tem conhecimento. E na semana passada, outro jornalista esportivo foi executado ao sair da emissora de televisão onde trabalhava, em Goiás, por possível desafeto de opiniões esportivas. Se o futebol é tão poderosamente determinante da vida e da morte no Brasil, não seria para menos conjecturar em cima do fato óbvio que esses jornalistas tem uma premência única sobre a formação de opinião popular. O que eles falam é motivo para tremer o sossego de congressistas e políticos tradicionais; e motivar o homem comum que lhes assistem a pensar sobre determinados assuntos. Por isso o meu pasmo ao ver ontem, no jornal da tv cultura do estado, o pai desse jornalista assassinado, o senhor Mané de Oliveira_ ele também notório jornalista esportivo_ dizer numa entrevista, com o rosto encolerizado de indignação e dor: "A pessoa que mandou matar meu filho é muito perigosa; os que o executaram não são perigosos, esses não, pois eles são profissionais e receberam dinheiro por isso. Mas o mandante, esse sim é um criminoso perigoso." Diante isso, e do constante e infinito espocar de fogos de campeonatos, fica o questionamento: a senilidade dos dirigentes espirituais do povo vem de seu isolamento na intelectualidade brasileira, visto sua imensa solidão na batalha contra os poderes instituídos, ou vem de uma espécie de senilidade retroalimentar que emana desse próprio povo?

12 comentários:

  1. Acho que para quem não torce pra nada - me incluo nessa - é difícil não ver o futebol como o que há de mais irracional na cultura brasileira. Sempre me surpreendo quando encontro intelectuais torcedores. Ao mesmo tempo, acredito que seria possível fazer essa mesma análise com outros esportes e outras culturas. Essa irracionalidade não é privilégio nosso.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim. Mas algo me diz que essa "discriminação" que eu sinto por ser uma espécie bizarra rara que não gosta de futebol tem uma característica toda sui-generis por aqui.

      Excluir
  2. Eu curto implicar com torcedores fervorosos, mais ainda se eles ficam irados. Eu declaro ter um time, o Flamengo, mas não sei o nome de nenhum jogador. O futebol não me diz nada. Não sei jogar. Nunca soube, de modo que na infância me mandavam sempre para o gol. Acho chato pacas quem declina a escalação de jogadores da copa de 82, ou da de 58, no meio da minha cerveja.

    Mas há um aspecto do jogo, futebol ou outro, que você não observa no post. É uma competição, existem regras e há um juiz a fiscalizá-las. Entre torcedores, talvez sejam inexpressiva minoria os que sinceramente não ligam se a arbtiragem é ruim ou leviana. Preferem o fair play. O jogo é um espetáculo, um fenômeno catártico (olha eu intelectualizando, risos), que obedece a ritos peculiares. Logo, não deve ser apenas uma imensa bobagem.

    No mais, você não é o único brasileiro com déficit verde e amarelo no DNA. Eu, além de não gostar de futebol, não sei sambar e detesto carnaval, outra coisa que a intelectualidade brasileira gasta laudas e laudas para traduzir relevos, importâncias e significados. Como espetáculo de festa, por outro lado, acho curioso.

    Fábio Carvalho

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pelejo para pensar com esse relativismo, e até penso conseguir 99% do tempo, mas às vezes minha indiferença precisa de desabafos.

      Mas o fato principal do post é o comentário perigosamente leviano do Mané de Oliveira.

      Excluir
  3. Amo futebol, mas não penso q ele está num pedestal e livre de misturas nada perniciosas. não ia nem dizer nada sobre o post, q parece errar (de errático), só fica a ideia de q existem mtos "futebóis" possíveis

    http://globoesporte.globo.com/futebol/times/figueirense/noticia/2012/07/loco-diz-nao-prometer-nada-torcida-do-figueirense-futebol-nao-e-guerra.html

    Arbo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ainda acho que o futebol é muito mais do que simples costume no Brasil, arbo. Tenho um vizinho que tem a tatuagem do brasão do Goiás preenchendo toda a coxa, o cara tem um metro e setenta, deve pesar uns sessenta quilos, e é famoso por participar de espancamentos junto à torcida alviverde. Como o narrador de Laranja Mecânica, se regenerou ao entrar para uma tropa de choque da polícia militar. Hoje mesmo uma colega de trabalho me olhou nos olhos com pasmo e disse: "Você é o único HOMEM que conheço que não gosta de futebol. Não tem medo de ser mau interpretado não?" No alto das minhas quatro décadas de vida, me expor a esse bullying...

      Excluir
  4. Assim fica muito fácil e polido. Pessoas que não gostam de futebol ou gostam desapegadamente falando sobre o assunto. Queria ver o que torcedores do naipe do Milton e do Farinatti diriam.

    ResponderExcluir
  5. Independentemente de gostar ou não (este é o caso) de futebol, não o vejo como cataalisador e expressão de uma cultura "nacional". Em tudo encontramos a herança de um processo histórico fundado na invasão, no autoritarismo, mandonismo, coronelismo.

    Nelson Rodrigues a vida inteira se propôs a construir o futebol como a épica brasileira, na ausência de Aquiles e Odisseus, das armas dos barões assinalados de Camões, dos deuses nórdicos. Daí suas repetições e hipérboles, seus príncipes etíopes, seu Garrincha soberano diante das fúteis paixões humanas, quando o centro de tudo é a bola.

    Meu marido gosta de futebol, mas em uma dimensão diferente, embora mesmo assim me surpreenda. Não torce por clube nenhum em especial, mas por muitos. Ele vê partidas de obscuros campeonatos à noite; eu deito no colo dele e durmo.

    Nisso tudo não sei (e acho que ninguém sabe, além do Marcos) o que o futebol é na vida das pessoas e dos países (segundo o Marcos, o país do futebol não é o Brasil, mas a Inglaterra), mas sinto que é algo aquém das dimensões rodrigueanas, e também algo que sofre com as maneiras pelas quais se arranjam e expressam os poderes discricionários no mundo inteiro, com ditadores sustentando seleções e reis europeus apertando mãos dos eleitos melhores do mundo.

    Futebol se insere então no conceito de "cultura de massas", e partilha, assim, métodos e costumes com outras expressões dessa cultura, como os programas de televisão, os shows de música popular (qualquer gênero), o espetáculo das disputas eleitorais, o universo das celebridades.

    Mas não sei o que tirar disso. Sei apenas que vendo uma partida de futebol não consigo tirar quase nada (ou nada) dali.

    ResponderExcluir
  6. Vira homem, Charlles! (fácil você seria vítima do meu bullying, no alto dos meus 1,60m)
    Você não entende nada sobre a mecânica do futebol se usa o paradigma televisivo como ponto de partida. O futebol televisivo é um natimorto da sociedade de espetáculo. Nada contra o espetáculo em si. Mas a agonística do futebol não se faz viva entre o sibilado do Galvão Bueno e o patrocínio da Pepsi.
    A dramaticidade do futebol. O drama Thermopyleano da zaga, compacta, heróica. A mítica (não mística) do camisa dez, o arquiteto, o strategon da batalha campal, tudo isso está sumariamente abstraído daquilo que se chama pelo nome futebol, na sua acepção televisiva.
    Sei lá. São muitas coisas. Não te convidaria a experimentá-lo no rádio. É um pouco como a linguagem do religioso.
    Ela se dissolve toda no receptor, ele, o incrédulo.
    Provavelmente, mesmo nos seus 1,90, te convidaria a virar homem.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahahaha. Pô, meu irmão, mas nem a conhecida civilidade canadense não me poupa de ser seu alvo. Eu, sinceramente, jamais imaginava que você fosse um adepto do futebol. Mas, como disse no início do post, muito provavelmente seja uma impressão apenas e tão somente sensorial, não baseada em fatos.

      (Cara, você vai ter que tirar essa minha dúvida. Já faz um bom tempo que ninguém responde a meus emails, nem a Caminhante, que tem uma educação oriental. O que me leva a acreditar que, talvez, haja algo de errado no sistema. Assim, recebestes aí meu email de agradecimento a seu inestimável presente?

      Excluir
  7. Do alto dos meus 1,60m... "Recebi não."

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não recebeu? Pois já faz duas semanas que estou aqui com o Kobo Abe que me mandastes. No email, agradeci e disse que confundi por um bom tempo a sua estampa com a estampa de um tal de Ron Wood, que me apareceu acima de seu nome no site da universidade de Toronto, um sujeito loiro e saudavelmente atlético do porte de um jogador de futebol americano, e que fiquei mais tranquilo ao ver que você, na verdade, era um rapaz de casaco, com cabelos um tanto além do convencional, e com cavanhaque; um tanto mais distinto e espiritualmente mais promissor que um representante solar positivista da nação em ponta (ainda que no final dela) do poder financeiro mundial.

      Mas vai aqui, então, meus agradecimentos.

      Excluir