A leitura de O Fim da História e o Último Homem, livro de Francis Fukuyama que se seguiu a seu polêmico ensaio de 1989 sobre o fim da história, me fez relembrar de dois fatos cabais que se casam bem com o tema da obra. O primeiro é o filme divulgado ano passado de uma menina de 4 anos que, atropelada numa rua comercial chinesa, morre diante um séquito de pessoas desatentas ou meramente indiferentes que passam por sobre seu corpo ensanguentado como se fosse um obstáculo inoportuno que os arrancam por segundos de seus celulares ou de seus i-pods. O outro fato é um incidente de compreensão que deveria ser irônico mas se restringe a seu devido lugar bestial no cotidiano da cidade onde eu moro: um radialista foi processado por difamação pelo prefeito municipal, e a justiça determinou que ele pagasse uma indenização de 1500 reais, e se submetesse compulsoriamente a uma retratação escrita pelo prefeito e publicado no blog pessoal do réu e no jornal de maior circulação local. A retratação, repito, escrita pelo próprio prefeito (ou por sua assessoria, mas devidamente autorizada por ele), diz: "o sr. H.M., radialista, deve pagar em 10 parcelas, o valor de 1500 reais, por ter divulgado publicamente atos de improbidade administrativa do sr. D.S., prefeito de I." Não mais do que isso.
Façamos um retorno a Fukuyama para a costura das ideias expostas no parágrafo acima. O livro de Fukuyama é espantosamente verdadeiro! Mesmo seus opositores ideológicos mais bem preparados, como Zizek e Perry Anderson, não poupam elogios à sua coesão filosófica e ao seu profundo conhecimento político, e à extrema perspicácia de seus argumentos. Eu mesmo nunca li em nenhum outro livro uma explicação tão límpida sobre Hegel como a que está neste livro. Perry Anderson salienta que, apesar do enorme talento de Fukuyama e do caráter idiossincraticamente imbatível de seu livro, Fukuyama é um agente do governo dos EUA, um dos intelectuais importados já na geração de seus pais para o universo acadêmico norte-americano, sendo, então, um defensor congênito do neoliberalismo. Fukuyama faz parte das fileiras do inimigo. E embora essa apologia contundente ao neoliberalismo (palavra nunca encontrada em Fukuyama, mas o termo assepsiado democracia liberal) seja latente nas primeiras 300 páginas da obra, nas últimas partes e sobretudo no capítulo intitulado O Último Homem, sua lucidez avaliativa dos prós e contras do capitalismo irrestrito sofre uma interessante auto-traição dialética, chegando ao nível prefigurado por Adorno do que vem além do esclarecimento, em que Fukuyama cai quase involuntariamente na armadilha em negativo de sua própria defesa. No começo, Fukuyama analisa a derrota espantosa dos regimes comunistas do século XX, o surpreendente evanescimento da União Soviética (o livro foi lançado em 1992), a força propulsora da história que recai não na necessidade econômica (desconsiderando firmemente as teses de Marx) mas na luta pelo reconhecimento, no desejo de liberdade e de respeito pessoal inerente ao homem, o que levou os povos sob a opressão das ditaduras de esquerda a martelarem em definitivo quaisquer novos experimentos políticos autoritários. Essas partes do livro são escritas com uma visão abrangente de todos os lados que beira a radioscopia mais clinicamente perfeita_ nada escapa à lucidez calibrada de Fukuyama. Fukuyama gasta páginas e páginas seguidas destrinchando calmamente as ideias contrárias ao capitalismo e à democracia liberal, com um calma e educação extraordinárias, como se fosse aceitar, depois dessa viagem pormenorizada ao campo exterior, que sua tese está errada; mas então, ele aplica em enfeixe artesanal de molde coeso e infalível que cessa toda passagem de fluxo para estancar de vez as alegações restantes de que exista outro sistema apropriado ao homem moderno que não a da liberdade de consumo e a do mercado global cuja única lei de controle é a da própria auto-concorrência.
Até aí, tudo bem. Vinte anos passados serviram para desequilibrar essa segurança lapidar de Fukuyama sobre as maravilhas do capitalismo, e a inserir uma série de rachaduras iridescentes à muralha inviolável de suas certezas. O livro, magnífico em todas as suas confecções acadêmicas e de seguimento meritório da tradição dos grandes livros políticos (uma obra recomendadíssima para quem quer se enriquecer do mais alto estilo e da mais lúcida visão da situação moderna), peca, contudo, pelo que tem de melhor: se lança tão fundo na filosofia que se perde dos marcos mais evidentes, hoje, das distorções apocalípticas do capitalismo. A evidência de sua velhice está na ausência total de referência de Fukuyama aos pecados mais pragmáticos do capitalismo: as bolhas econômicas já não mais toleráveis das especulações dos grandes bancos, e os índices prostituídos de crescimento econômico que não levam em conta nenhum medidor real das mazelas internas da enorme quantidade de miseráveis e famélicos que é escondida sob as radiosas cifras financeiras. Fukuyama, que condena Marx por sua visão unilateral da economia como mote da história, resvala feio na desumana computação de vidas perdidas como resto matemático necessário à saúde do sistema. Sua erudição cavalheiresca não se firma de forma tão plena ao transitar com uma leviandade soberba por sobre o abismo dos exilados e dos excluídos, relegando todos eles a um simples efeito colateral de uma realidade que não acontece num mundo de febres e injustiças violentas, mas na racional e burocrática realidade confeccionada por doutores de Harvard e Oxford. Em última instância, se o leitor prestar a dar ouvidos aos ecos instigantes que a escrita de Fukuyama desperta, verá que Fukuyama é uma contradição sofisticada, um pensador altamente capacitado que oferece todas as chaves para ser resgatado, ainda que jamais admita o que as entrelinhas metafísicas de seu discurso esbraveja. Partindo de Hegel e da interpretação de Hegel por Kojeve, Fukuyama conclui que o homem não se interessa por dinheiro ou por riquezas, não sendo estas as razões da batalha cruenta que começou a história; Fukuyama responde à eterna efigie lançada pelo Sombra de Orson Welles sobre o que se esconde no coração do homem, com essa solução: no coração do homem se esconde a necessidade vaidosa de reconhecimento social; de dignidade entre vizinhos; de ascensão ou igualitarismo, dependendo dos expoentes psicológicos de cada um. O homem é movido por três forças capitais: o desejo, a razão, e o thymos, ou seja, o espírito platônico de integridade individual para o qual não há dinheiro que compre. Esse thymos, na concepção de Fukuyma tomada de empréstimo da análise hegeliana, é determinante de toda vontade por conquista do homem, razão da qual grandes pensadores políticos, como Hobbes, Locke e Rosseau, diagnosticaram que o contrato social, sob as suas diferentes formas, obedece à necessidade de isothymia das sociedades, ou seja, da igualdade entre os homens. E só a democracia liberal, entre todos os sistemas de controle social, consegue com real eficácia manter a isothymia entre os homens, pois libera o homem da oposição entre senhor e escravos e cria um equilíbrio em que o mercado determina que todos são senhores de si mesmos, livres para a competição e submetidos à catarse de não desejarem a dominação de um sobre os outros pelo desejo escoado no consumo eterno. O homem deixa de ser bélico, para ser um animal consumista apaziguado e saciado. Só a democracia liberal acaba com a megalothymia dos ditadores e patriarcas, de esquerda e de direita, e dá a legítima liberdade ao homem, que, conformado com o conforto, se torna o último homem, aquele que não precisa mais criar grandes tragédias e cósmicas fúrias para fazer girar a já imobilizada e finada roda da história.
Pois bem. Essas são as primeiras 300 páginas do livro. Já no capítulo sobre o Último Homem, Fukuyama se embrenha na filosofia existencialista, trocando Hegel pela tese do homem sem peito de Nietzsche. O filósofo, em Além do Bem e do Mal, tece uma série de magistrais aforismos em que condena a igualdade entre os homens, e Fukuyama segue a trilha considerando que, apesar de Nietzsche não ter produzido nenhum esquema lógico político ou minimamente praticável, está certo em suas predições de que a democracia liberal porá fim não só à história, mas à filosofia, às artes, à ciência, e a toda produção thymótica humana. O homem apascentado e confinado em um consumo irrefreável será um ser frouxo, sem substância, sem inteligência; o homo sapiens dará lugar ao animal-homem, e o espírito desaparecerá. Esse capítulo, como eu disse, revela um Fukuyama compenetrado demais com as inconstâncias de sua defesa ao neoliberalismo, o que, para o leitor mais atento, o retira da mera digladiação partidária para o posicionar num campo esotérico que transcende a polêmica bastante circunscrita dos confinamentos políticos. E aqui, o estado e a função de Fukuyama, seu status de funcionário muito bem pago a uma causa fundamentada, o destrói no que poderia oferecer de um pensamento realmente gradioso. Fukuyama será lembrado como importante pensador político, mas as páginas mais febris de seu livro se chocam e se calam diante seu bom-mocismo ultrarrealista, diante sua plácida posição de peão de um xadrez burocrático.
Estava lendo hoje uma reportagem na Veja-online sobre as declarações da romancista Jennifer Egan sobre o que a tecnologia faz à inteligência. O livro, ela diz, torna os homens mais inteligentes, e a morte progressiva do livro está a criar um ser robotizado incapaz de perceber os mais singelos matizes do pensamento. No exemplo que dei no primeiro parágrafo isso se revela. Qual meu espanto ao ver que ninguém com quem eu falava percebeu que o radialista, no fim das contas, saiu vitorioso, tanto sobre o prefeito corrupto, ao fazê-lo, involuntariamente, confessar suas improbidades administrativas, tanto sobre a justiça que impôs sua retratação e a multa. Ninguém percebeu, nem mesmo o radialista, nem mesmo o prefeito. Seria uma ironia genial o inimigo ter sido pego por sua própria burrice, mas essa ironia se perdeu num ambiente de alienação assustadora quanto aos matizes da palavra. Sobre a garotinha chinesa teria muito mais a dizer. Mas a simples lembrança de seu martírio num mundo ultra-indiferente e desumano fica como reativo a todas as novas notícias de terror que diariamente vem sobrepujar o espanto, customizar a crueldade.
Voltamos a 1987 e ninguém me avisou?
ResponderExcluirPara o mundo medieval onde moro, é um avanço no tempo. Para ser mais preciso, 1989-92.
Excluir"Ao vencedor, as batatas!" - tem tudo a ver com a história da menina atropelada. A sensibilidade do progresso cuja única conexão é a vantagem, o lucro; o obstáculo? A carreta passa por cima!
ResponderExcluirAinda somos frutos do positivismo do século XIX, que o Machado já prefigurava como um equívoco cujo resultado seria o condicionar a vida humana ao progresso, extirpando qualquer preocupação humanista, a exceção da hipócrita que não reconhece humanismo senão no progresso, como o capitalismo não reconhece alternativa a seus métodos senão o totalitarismo, como se ele não fosse um tipo de totalitarismo hipócrita.
...e leio neste momento no Zizek a piada repetida de Churchill de que a democracia é o pior de todos os sistemas políticos, com exceção de todos os outros; e a paráfrase usada pelos neoliberalistas de que o homem é um animal egoísta e invejoso, e por isso nenhuma utopia que apele para a bondade e o altruísmo daria certo. Que o homem MERECE o neoliberalismo...
ExcluirEsses argumentos baseados na natureza humana não se consagram porque o ser humano é vário e sua disposição áação só se consagra com os pactos que mantém com a sociedade em que se insere; mesmo assim, a ganância e o gozo pelo poder não fazem parte do dicionário de pelo menos 90% das pessoas, que preferem tudo aquilo que os que matam e se matam pelos poderes julgam só ser possível com a conquista desses poderes: um trabalho não estafante, um dolce far niente, noites de brisa, tardes de praia, etc. Conheço gente às centenas que vivem com pouco e alegria muita, ao contrário desses poucos que vivem com muito e alegria quase nenhuma.
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