terça-feira, 23 de julho de 2013

Esperando Godot, de Samuel Beckett



Esperando Godot exige da mesma forma de seu leitor que ele se aproxime tão paradoxalmente carregado da cultura ocidental no que ela tem de filosoficamente manuseável e reminiscente, desde a erudição das grandes peças shakespearianas e do pensamento místico niilista de Schopenhauer, quanto estipula a falta absoluta de necessidade de conhecer qualquer coisa. Essa obra tanto decreta o resumo terminal de toda a ciência e toda a criação mental do homem, revelando uma desconcertante falta de valor e uma gratuidade nesses frágeis esquemas de importância, quanto inaugura uma espécie de novo material nuclear, que constitua sem fim o mesmo esforço vão de justificativa e conteúdo. Para se entender a genialidade e a lucidez quase insuportável dessa obra, Beckett parece exigir apenas uma certa maturidade, um acréscimo de anos que ofereça a calibragem ideal de indignação e cansaço que torne possível ver a nudez de eufemismos que é a condição humana. O niilismo beckettiano é tão arbitrário e incondicional que mesmo o termo "condição humana" parece ostensivo, esnobe, prepotente, para descabidos seres cuja erraticidade não comporta uma sistemática verdadeira, para seres que inventam o tempo para poderem pôr nele o mobiliário que os engane sobre uma fantasiosa permanência, que os faça suportar a permanecerem na vida com a ilusão de um estranho calor imaginado das imaginadas cadeias da história e das imaginadas tradições familiares e dos diversos amores românticos imaginados. Ler Godot tendo lido Shakespeare e Schopenhauer só transparece uma aquisição vaidosa e efêmera do direito do leitor de perceber o que a peça desconsidera como sensaboria e estupidez e grandiosismo tolo; só serve para ver que Beckett resolve todos os longos monólogos de personagens intrincados como Macbeth sobre o som e a fúria com frases simplórias de seus rasos mendigos desmemoriados, que, contudo, dizem a mesma coisa com uma pobreza de recursos que se casa com uma impactante honestidade e coesão com a pobreza humana. A grande indecência da peça, que assustou e fez vários espectadores de suas primeiras apresentações londrinas abandonarem as salas de teatro durante a exibição, tomados pela fúria, é reduzir toda a atmosfera duramente cultivada por milênios de aventura do cérebro compositor de paisagens do homem a um minimalismo e uma pobreza difícil de se deparar sem uma enorme vergonha. Por isso, como atenuante, a generosidade de Beckett em ainda assim interpor um filtro entre nós e sua verdade sonoramente unívoca por ele vislumbrada, recorre ao artifício de colocar na peça algumas identificações suavizadoras, algumas graças urbanas reconhecíveis, alguns afagos, ainda que feitos por frias mãos indiferentes, que impregne suficiente leveza para vermos que ainda assim estamos no campo da arte, que não fomos deportados ao todo, que tudo não passa de uma elástica brincadeira, uma fronteiriça desqualificação passageira de nossos utensílios de proteção: por isso todos os cinco personagens da peça usam chapéu coco, por isso um pareça com Chaplin e outro com Buster Keaton, e os outros dois com Stan Laurel e Oliver Hardy. Talvez Beckett faça isso por saber que o puro visível é intolerável e não usar atenuantes seria fazer outra coisa que não seja arte, seria como disparar um tiro na cabeça do leitor, ou oferecer a pistola para que ele o faça; ou por uma profunda piedade, no final das contas, de apostar em um grau ínfimo de valor afirmador e que dê uma justificativa ao homem, ainda que muito efêmera; ou por medo de que as decorrências da peça lhe resultasse em algum tipo de processo criminalístico; ou porque a própria condição evanescente do homem é cômica e nada legitima mais o riso que o absurdo dessacralizante. 

Não deixa de ser maravilhoso que Beckett, no alto do século XX, consiga produzir mais uma síntese sobre a existência do homem: o aterrador é que ele faça isso às custas da pulverização de todas as outras sínteses pregressas. Estragon, Vladimir; Pozzo, Lucky, estragam de maneira definitiva a apreciação de Hamlet, de Lear, ou das outras assim firmadas entidades representadoras das forças passionais e espirituais da nossa espécie, seja no romance ou em qualquer outra forma de expressão narrativa. Ser assimilado pelo laconismo de Estragon e Vladimir, ter o espanto das primeiras páginas onde "nada acontece" substituído por um atordoante fascínio (o fascínio de ver um espectro de outra dimensão ou descobrir uma lei física), torna as sábias páginas antológicas da tradição palavrosas. As tantas vezes em que Estragon se levanta e anuncia a Vladimir "vamos embora", e as tantas vezes que Vladimir responde "não podemos", "por quê?", "porque estamos esperando Godot", ou as tantas vezes que um e outro propõe o xingamento ou a discussão aleatória para assim o tempo passar e chegar à noite de mais um dia, esquecendo-se de que "não há nada o que fazer", tornam os longos palavreados shakespearianos, mesmo por quanto perdure o impacto da novidade, chatos e incômodos. Aliás Godot celebra a prescindibilidade completa da leitura; quando eu o li, uma das minhas vozes disse, com alívio, "poderei parar de ler agora". Como se a ilusão, revelada, tivesse a adstringência do livramento de um fardo. Mas o que surge então é: bom, mas o que farei agora? Se o esclarecimento é uma enganação, partir para o comércio e para a política, para o sexo ou para a briga corporal, também são artifícios da mesma forma inúteis. Há a mesma exploração decodificadora de Houellebecq para a desmistificação do sexo; e a mesma independência estoica no niilismo quando Cioran diz que o filósofo Diógenes se masturbava em praça pública à frente de todos e, quando questionado, dizia que era uma infelicidade não poder esfregar a barriga do mesmo jeito e assim aplacar a fome. Estragon e Vladimir parecem ser insuportavelmente livres, e o são ainda mais quando analisamos que não precisam de nenhuma legitimidade aquilatável de pensamento, posse ou constituinte biológico: são mendigos que usam chapéu-coco, sem casa e sem memória alguma de casa (a não ser fagulhas histriônicas de algumas reminiscências da França que parecem mais ondas de rádio cruzadas na mesma sintonia), sem lembranças precisas da passagem do tempo (livres do tempo), e que fazem parte de um cenário tão imaterial que se resume apenas a uma árvore desfolhada, o deserto e o céu imutável (livres da geografia). São o início de uma liberdade beckettiana que vai ficando cada vez mais incorpórea, com a trilogia de romances feitos de retalhos de pensamentos e das peças tardias em que as únicas presenças no palco são uma cabeça de mulher enterrada e seu marido estatuado.

Certa vez, antes de ler Beckett, li um estudo sobre sua obra escrito por algum professor convidado a prefaciar seu volume da coleção Nobel. Me ficou na lembrança uma definição que tal professor fizera sobre o niilismo de Beckett, algo assim: seu niilismo era tão devastadoramente absoluto, que buscava certa redenção em negativo, tinha certa fé reflexa inevitável. Na compilação de estudos sobre a peça, na edição da CosacNaify, há a seguinte bela passagem escrita pelo marido da Hannah Arendt, Günter Anders: "Assim, também o mundo da peça é uma "abstração": um palco vazio, vazio a não ser por um adereço indispensável ao significado da fábula, uma árvore no centro, que define o mundo como um instrumento permanente para o suicídio e a vida como o não cometer suicídio". O que eu sei é que há a sombra de um esfuziamento imoderado nessa obra, uma alegria indeterminada e inapreensível; coisa que vem com todas as grandes extenuações e o direito de se deitar para renovar as forças, mesmo que seja sempre para olhar para o mesmo dia e a mesma sucessão de eventos vazios. Meramente enzimático ou não, é um ganho.


3 comentários:

  1. “Esperando Godot”…, Cacilda Becker morreu no palco…, nos braços de Walmor Chagas, seu marido, e de Flávio Rangel, seu diretor. Diante disso, Carlos Drummond de Andrade a imortalizou:
    .
    .
    A morte emendou a gramática.
    Morreram Cacilda Becker.
    Não era uma só. Era tantas.
    Professorinha pobre de Piraçununga
    Cleópatra e Antígona
    Maria Stuart
    Mary Tyrone
    Marta de Albee
    Margarida Gauthier e Alma Winemiller
    Hannah Jelkes a solteirona
    a velha senhora Clara Zahanassian
    adorável Júlia
    outras muitas, modernas e futuras
    irreveladas.
    Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
    e um mendigo esperando infinitamente Godot.
    Era principalmente a voz de martelo sensível
    martelando e doendo e descascando
    a casca podre da vida
    para mostrar o miolo de sombra
    a verdade de cada um nos mitos cênicos.
    Era uma pessoa e era um teatro.
    Morrem mil Cacildas em Cacilda.


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  2. Preferi roubar uns textos da Rachel sobre um livro e uma outra peça do autor (acho que a peça é baseada, na verdade, num livro, , mas vá lá) a comentar eu mesmo. Ficará meio extenso, mas tudo bem; o texto acima também não é pequenino.

    "O romance (?) O Inominável, de Samuel Beckett, é prefaciado por João Adolfo Hansen, que se pergunta se faria sentido, à Beckett, escrever um romance com heróis, anti-heróis, buscas de sentido, etc., em um “mundo em que a morte industrial de milhões foi a continuação do que já se fazia na paz: a transformação de todas as relações humanas em cifras que tornam irrelevante a autonomia da experiência subjetiva”. A morte industrial, é claro, refere-se aos campos de concentração nazista, e a morte em tempos de paz também se dá através de um processo industrial, de subtração do sujeito, reconhecido pelo valor que lhe é atribuído em razão de sua capacidade produtiva. Por acaso e motivação outra, meu marido teceu comentários semelhantes. Ei-los: “A vida precisa da justificativa da produtividade: o dado subjetivo não se completa sem o laço do interesse econômico. De que nos importam os sentimentos de uma senhora moribunda, seus olhares sob a névoa da demência, sua pele enrugada e seus odores desagradáveis, ainda mais se a higiene não é mais observada como antes? Há vida ali, mas a vida que está ali nos é incômoda. Voltados para nós mesmos, não há naquela familiaridade nenhuma vantagem a obter. Isso seria doloroso, mas é tão genericamente aplicado que tornou-se legítimo. Mesmo os mais amorosos sentem alívio diante da morte daquela pessoa cuja resistência teimosa em viver passa a constituir um peso, com suas demandas afetivas, e também por medicina e cuidados profissionais cada diz mais caros. Não sei se algum dia soubemos o que fazer da vida humana, se realmente cuidávamos dos mais velhos com carinho, compreensão e despreendimento. Se temos amor uns pelos outros ou se nossos amores não passam de muletas, balanços ou âncoras. Se realmente cultivávamos algum valor não medido em moedas, como ele poderia nos ter sido roubado?” No já citado O Tempo dos Desenraizados, de Elie Wiesel, um trecho que parece descrever o romance de Beckett: “Um dia (...) será preciso escrever a história de um homem sem história. Ela não tem começo nem fim; não é bela nem feia, nem triste nem alegre; é simplesmente vazia. Vazia de vida? Inconcebível. Vazia de acontecimentos? Impossível. Como este homem existe, a Morte o persegue, logo, ele tem uma história, mesmo que sem importância. Que ele se lembre ou não, pouco importa. Ainda que tenha esquecido tudo, ele terá vivido sua vida. Mas então, se sua história era a história de uma vida esquecida, perdida em algum lugar pelos caminhos dos sonhadores desesperados? Bah, talvez um dia venhamos a saber. Mas um dia, uma dia é quando? Esta pergunta já é por si uma história. Não é velha nem nova. Não passa de uma história”

    O que ainda nos justifica, concluo, são as perguntas que fazemos. Mesmo que elas caiam no vazio, ou nunca tenham saído de lá."

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  3. ...mas nem coube num só. Vai po resto aí.

    "De Samuel Beckett, romancista, poeta e teatrólogo, podemos esperar muita coisa, mas, no geral, muita coisa com economia de linguagem, meios, objetos e origens: basicamente tudo que ele escreve provém de suas duas características pessoais, que são a misantropia e a misoginia, tendo eu a desconfiança que a primeira é alimentada pela segunda.

    Não foi nada diverso que vimos na peça (baseada em uma novela do autor) Primeiro Amor, monólogo que trata de um personagem cujos primeiros intentos são o de se afastar o máximo possível da humanidade e da realidade, dada a situação de rejeição inicial dele mesmo pela sua própria família que, depois da morte de seu pai, entrega-lhe uma determinada quantia e o expulsa da casa onde ele residia, em que agia com distanciamento e mutismo, para não dizer desprezo, embora melancólico por ser, inclusive, autorreferente.

    Não é uma história de amor.

    Dormindo em um banco de praça, o personagem enumera poucas coisas na paisagem, no vestuário, nos hábitos que mantém. Uma vida ascética, como a de um monge mendicante, que só não é por não ter qualquer referência de algum deus em que realmente creia.

    Paulatinamente se aproxima dele uma mulher. Um olhar aqui e ali, assustando-o. Ele não sabe o que quer, embora saiba que não a quer e vê nela uma interferência indevida em seus hábitos, principalmente ao ocupar um lugar no banco onde dorme.

    Eis que ela propõe uma visita à sua casa, e depois que ele lá more. Ele cede quando seu impulso é avesso; faz sexo com ela sem nada mais do que um impulso físico primário; acostuma-se à ideia de partilhar a vida com uma mulher que, logo vem a descobrir, é uma prostituta, que utiliza um cômodo ao lado de onde moram para seus encontros com os clientes.

    O desapego sistemático das ideias e significações que o personagem levava a cabo é destruído pela teia de relações ordinárias que mantém com a mulher por compulsão e em razão do que parece ser um desvio de caráter seminal e comum à humanidade: o apego à ordem, ao hábito, ao sentido, embora esse apego não oculte o caráter teatral, de máscara, nessas relações humanas, sociais e sexuais.

    A mulher engravida. Há responsabilidade, culpa, ética, na questão? Faltam ferramentas para encarar o problema, mas a solução à vista é o casamento, logo consumado no turbilhão de convenções que terminal por tolher no personagem qualquer desvario de liberdade, que perseguia como um sonho não destituído de imagens padronizadas.

    Todos os elementos da vida se destacam como uma cadeia de correções à liberdade essencial do espírito humano que, em sendo humano, tem o espírito revirado pelo avesso e, assim, não lhe cabe liberdade alguma; talvez, sequer, nem espírito...

    Primeiro Amor, a peça, é isso: a primeira submissão aos fatos que não são ontológicos, que violam o espírito e fazem nascer o homem no bebê que um dia foi despido de linguagem mas, por impulso intrínseco, buscou a compreensão do mundo e das coisas não na liberdade interior, mas na ligação com os sinais exteriores que, para Beckett, expressam o desenvolvimento de uma linguagem de opressão.

    Uma visão bem amarga da vida, da realidade, das possibilidades humanas. O personagem que, a princípio resiste da disposição fanática do universo esquadrinhado das relações humanas, por fim se submete, embora sob protesto íntimo, revolta impotente. Um homem não vence os laços pressupostos - ele os mantém, e assim abdica da liberdade e de qualquer alegria que não seja uma máscara de riso distorcido.

    É, repito, uma visão amarga da vida. Uma visão."

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