Não deixa de ser curioso que em 2500 páginas já de todo memoráveis, os capítulos em que o leitor tem a imediata consciência de estar presenciando um dos maiores momentos da literatura correspondam a cenas felizes de caçada na neve que se encerram num idílico jantar numa cabana camponesa. Tais capítulos do incriticável Guerra e Paz (quem seria louco o bastante, ou capacitado o bastante?) confirmam a sentença de Richard Tull, o autor falido de A Informação, de Martin Amis, que diz ser Tolstoi o único escritor que conseguiu registrar a felicidade por escrito. A leitura sensorial sobre Nicolai Rostóv e sua irmã, Natascha Rostóv, no último momento de interação amorosa tida por eles antes que o primeiro parta para a segunda etapa da guerra russa contra Napoleão, e antes que a segunda se case, corresponde ao processo eminentemente telepático da leitura, que Walter Benjamin descobre em seu ensaio sobre o surrealismo. Essas cenas são tão monumentais que a simplicidade com que são tratadas despertam a sensação tardia de que Tolstoi utilizou de um joguete mefistofélico correspondente à transposição no papel da crueldade investida em toda a efemeridade dos momentos felizes, o que o faz um dos escritores mais perigosos, indevidamente colocado como um sujeito mais espiritualmente são que o para sempre indissociável a ele Dostoiévski. Enquanto o autor de Os Demônios dá sua estocada sobre o destino incontornável do homem para a falência e o crime através de uma miríade de palavreado desconexo e selvagem, Tolstoi caminha pela linha direta de sua genialidade de narrador puro, sem barreiras, sem frenetismos, sem as intercambiações pela clinica psiquiátrica, o que, de um outro ponto de vista, soa mais pérfido que a perfidez atribuída há um século ao seu perturbado colega de letras. Sua telepatia dada na fluidez ligeira do texto proporciona a lucidez incômoda de uma ciência da vida nessa terra como condicionada unicamente a uma entidade histórica indiferente, para a qual a decisão humana não representa nada, que, se os estudiosos acadêmicos se propuserem a reavaliar o modernismo de Tolstoi, talvez percebessem ser essa visão mais factível da verdade do que a neuropatologia dostoiévskiana que inspirou toda a literatura do século XX. Os heróis de Dostoiévski mostram, em negativo, que a doença reina como comandante suprema das hordas da história, e por isso, numa sequência lógica distante, a cura progressiva dessa doença faria com que esses exércitos de sevícias, concupiscências, ambições de poder, egoísmos e egolatrias, barbáries e bestialidades, dispusessem das armas naturalmente num estágio de conserto evolutivo planejado; já Tolstoi, como alguém detentor de uma posição privilegiada de observador bem acima do ruído onipresente, sabe que a doença humana é incurável e, pior, não tem a minima participação fagulhar nos mecanismos históricos. Dois exemplo disso são o capítulo inicial do volume 2, e as elucubrações da segunda parte desse mesmo volume de Guerra e Paz. No primeiro, numa cena engraçadíssima, um grupo de soldados ulanos, na ânsia de cumprir uma mísera ordem de Napoleão para atravessar um rio de águas caudalosas, se afoga vaidosamente em honra do atarefado e indiferente imperador francês.
"Quando o ajudante de ordens voltou e, escolhendo um momento apropriado, dignou-se a chamar a atenção do imperador para a dedicação dos poloneses à sua pessoa, o homem pequeno de casaco cinza levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro, pela margem do rio, dando-lhe ordens e, de vez em quando, lançando olhares descontentes para os ulanos que se afogavam e distraíam a sua atenção."
No outro momento, Tolstoi faz uma análise do que levou russos e franceses à guerra de 1812, por todos tida como absurda e assassina, mas que, à revelia da razão e das decisões internas de paz de ambos os lados, motivou dois exércitos ao suicídio pelo único motivo da determinação histórica estar acima do controle humano. E Tolstoi entremeia um ensaio decantado sobre a vanidade das ações humanas como um observador posicionado 55 anos à frente dos eventos, numa dessas liberdades idiossincráticas típicas de Tolstoi de não estar nem aí para as técnicas do romance europeu, arrebanhando a estultície de historiadores franceses e russos apontando o quanto cada um puxar a sardinha da interpretação da vitória para sua pátria não desanuvia em nada a compreensão dos fatos.
A falta de uma perspectiva real da grandiosidade de Guerra e Paz para a literatura do século XX, seus elementos simbólicos no estudo da História, da sociologia das massas, do poder, sua força premonitória de mostrar a insurgência do massacre desafogador bolchevique, seu caráter chocantemente à frente das correntes modernistas e sua lucidez despercebida, revelam a suspeita de que trata-se de um romance não devidamente lido e inconsequentemene negligenciado.Tolstói não é nem um pouco panfletário, ao contrário dos impulsos didáticos de Dostoiévski que o levaram ao estudo pormenorizado da queda adâmica; o cristianismo de Tolstói é amplamente iconoclasta e investido da concepção de que Cristo é a derradeira figura diabólica (Zizek, A Visão em Paralaxe), enquanto o cristianismo de Dostoiévski bebe do mais profundo ufanismo de povo escolhido da velha Rússia piedosa e primitiva, com todo o seu ortodoxismo canhestro. Tolstói levou às últimas consequências sua concepção da história como um fardo inescapável, conduzindo-se para um isolamento ativo (na medida em que foi pedagogo e anarquista thoureano social amplamente participativo) em que a definição oca de místico demonstra desconhecimento do quanto suas teorias religiosas eram fincadas com os pés no chão, e o quanto obras como O Reino de Deus Está em Vós atribuem-se a um filósofo de peso com a mesma sanguinidade de um Nietzsche do que de um raso pregador evangélico. Tolstói foi menos esotérico na fé no expurgo do pecado através de sua descrição fatídica na escrita do que Dostoiévski, e vemos isso em dois momentos sublimes desses imensos escritores: nas cenas finais de Os Demônios, após a densa viagem do leitor pela atmosfera policialesca e pelas revelações do inferno que há por detrás das realizações políticas, o gênio diabólico da revolução Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski, após a crueldade extrema do assassinato de um inocente em nome da causa revolucionária, encerra o romance de límpida consciência assim como começou, conversando com novos adeptos ao movimento com a mesma paixão imolada pela culpa e incapaz de arrependimento. Dostoiévski aqui faz mais uma vez seu panfletarismo sobre a queda, mostrando didaticamente a lição da cozinha onde a política realmente é confeccionada, sem eufemismos, sem encantos, sem demagogias; assim como amplia o diagnóstico dos mecanismos do poder de submissão político e religioso no discurso do Grande Inquisidor nos Irmãos Karamazov.
Já Tolstoi, na cena acima mencionada da caçada em Otrádnoie, impressiona por sua pureza narrativa, a sua absoluta ausência como autor das cenas, de forma que toda a carga subliminar aflora da ação, das expressões faciais, da tensão do encontro, da fúria da descrição dos cães atacando o lobo, da forma carregada de reprimido ódio como o servo exímio caçador se dirige com asco latente ao principe que fracassa no cerco à presa. Nessa cena há toda uma pulsão profética sutilmente aterrorizante da virada dos ciclos de dominação em que o dominado pega as rédeas da história e massacra seu senhor que se pressupunha eterno. Há de se descrever minimamente a cena para que se saiba o que estou querendo dizer: saem para a caçada na neve, nas propriedades do príncipe Rostóv, o velho príncipe, seu filho Nicolai, sua filha Natascha, e sua afilhada Sônia, na companhia dos servos caçadores cuja única obrigação que devem pelo generoso direito de sobrevivência lhes dado nas terras do fidalgo é exercerem suas ciências da caça. Os príncipes são seres que trazem a notória distinção de classe nas roupas elegantes, na postura senhorial, na educação primorosa nas melhores escolas européias, no direito de lutarem pela pátria em cargos de comando distantes do perigo dos campos de batalha; as moças são aristocratas belíssimas, rescendendo à doce curiosidade pela vida. Já os caçadores são homens broncos, quase maltrapilhos, misto de selvagens proficientes nas artes do combate contra a natureza, uma espécie de forças cósmicas controladas pela constituição limítrofe em corpos humanos regidos pela intuição perene do chicote e da deportação para a Sibéria, caso queiram burlar a sólida e tranquilamente inamovível paisagem social. Um dos caçadores, de nome Danilo, que demonstra um ódio profundo para com seus patrões e por tudo que lhe cheire a pompa palaciana, depois que o velho príncipe deixa que o lobo fure o cerco, contorna a falha do seu senhor atirando-se junto com os cães por sobre a presa reconduzida. Quando Danilo se aproxima do velho príncipe_ o conde Rostóv_, o conde, por um brevíssimo instante, pressente o perigo atemporal a que os da sua classe estariam sujeitos no desnodoamento cíclico da história dali a cem anos, na fúria de confronto abortada que vê em Danilo. Mais tarde, à noite, quando todos se sentam em volta de uma fogueira e o lobo, ainda vivo, é exposto para a apreciação amarrado a uma tala de madeira por sobre uma manta de couro, a amenidade do controle habitual se reconstitui tanto na atitude servil de Danilo, quanto do perdão bonachão do conde.
"O conde lembrou-se do lobo que ele deixara escapar e do seu atrito com Danilo.
_ Puxa, irmão, quando você se zanga, se zanga mesmo_ disse o conde. Danilo nada respondeu e apenas sorriu, um sorriso infantil, tímido e simpatico."
Aqui o leitor prevê o massacre da família Romanóv e tudo que viria a ser a União Soviética e as nações prototípicas do socialismo do século XX. E Tolstói antevê, com sua pureza diabólica, o aprisionamento a que estamos fadados à perene repetição dos reconfiguramentos da História, que nenhum esclarecimento didático sobre sua relojoaria interna fará que pare o seu devir infinito. Na mesma época que Marx, Tolstói descobre por si mesmo que os eventos históricos acontecem primeiro como tragédia, e depois como farsa, numa sucessão inevitável e sob um moto perpétuo. Nisso está todo o seu abandono às suas obras, na velhice, e toda a sua desabnegação a tudo que faça parte aos mesquinhos esquemas de dominação humanos, desde a política à religião. Nisso está sua excomunhão e sua negação ao dinheiro e às pobrezas simbólicas de amor à pátria, que desde sempre se lhe revelara ser sinônimo de amor à guerra. E nisso está a força incomensurável da dor da felicidade tolstoiana nas cenas sublimes dos Rostóv descansando-se da caça na aldeia camponesa de Otrádnoie. A dor de que a pairagem de esplêndida alegria infantil naquele contínum de tempo aparentemente desvinculado e refugiado da história está vinculada à consumação da infelicidade futura daquela família já na iminência da falência, em que Natascha sucumbiria à desonra social, Sônia às decepções da solidão da maturidade, o conde ao desaparecimento natural, e Nicolai à volta aos campos da guerra.
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