Sempre bom descobrir o quanto escritores canônicos podem ser extremamente engraçados. Quem teme ou repudia a literatura não consegue conceber, por exemplo, que autores como Kafka são grandes humoristas, que por detrás da imagem fácil de que o homem de letras vive enredado em sérios debates sobre a alma existe um observador descompromissado tão loquaz e divertido quanto alguém que se oferece para uma fofoca na fila do pão da padaria. Tenho essa realidade como uma das mutilações a que sofre, inconscientemente, aquele que julga como entretenimento genuíno a novela global, o videogame, ou algum dos escapes da internet, e considera sem sombra de dúvidas que a leitura é um tédio infinito.
Pois bem, não quero falar de Kafka, mas de um ensaio intitulado Sobre Shakespeare e o teatro (Um ensaio crítico), do qual ainda sinto o peito desobstruído a os olhos marejados das lágrimas das gargalhadas que estava tendo a pouco, quando o lia. Seu autor é, ninguém menos, que Liev Tolstói (ééé, os visitantes esporádicos do blog terão que ter paciência comigo), alguém do qual não me é surpreendente a sua veia cômica, já que sei de páginas em seus dois principais romances que não ficam devendo em nada a Thomas Pynchon ou Mark Twain (para citar apenas dois dos mais engraçados escritores). Esse ensaio consta da sensacional compilação de textos tardios de Tolstói, Os últimos dias, publicado pela Penguin Companhia (uma coleção cujo trabalho de editoração é sempre belo e um regalo para quem ama livros). Tal ensaio trata-se de 80 páginas em que o célebre russo analisa as principais peças de Shakespeare com uma parcimônia e dedicação total, narrando enredos, citando sentenças, descrevendo detalhes cênicos, apontando idiossincrasias dos personagens e do autor inglês no ato de composição das obras.
Como introdução, Tolstói declara que quando jovem, ouvia e lia muitas personalidades importantes falando do gênio absoluto, do inigualável conhecimento humano, e da poesia inalcançável de Shakespeare, mas que, ao começar a ler sua peças, não conseguiu de forma alguma perceber esses elogios e, indo mais longe, só via em tais trabalhos uma falta de talento, uma pobreza estética e um misto de arranjos sem lógica para costurar tramas de pontas soltas, que lhe provocava um peso de consciência e uma sensação de que lhe faltava os méritos devidos de leitor por ser cego a evidências tão nítidas à maioria quase unânime dos que glorificam o bardo inglês. Por essa impressão lhe causar bastante incômodo, Tolstói pôs-se a estudar a fundo a obra de Shakespeare. Leu-a em inglês, em alemão, em russo e em francês; leu todos os estudiosos de Shakespeare e todas as referências feitas a ele. Faz um pormenorizado arrebanhamento de citações da grandiosidade de Shakespeare na introdução para concluir que (aí entra a sua precisa noção do time-in do humor), agora, aos 75 anos, não consegue mais esconder as suas sólidas ideias sobre o que dá a entender ser o grande engodo da cultura ocidental em fundamentar a sua literatura num autor cheio de falhas gritantes.
Aí sim inicia-se uma deliciosa _ e gargalhante_ sequência de exames cuidadosos sobre as peças de Shakespeare. Tolstói não é o único a refutar a excelência de Shakespeare: Bernard Shaw o fez, mas de maneira paradoxalmente séria e ortodoxa para um comediante, utilizando o que para ele era a mais fraca das composições do autor, Hamlet_ Shaw utilizou, durante toda sua vida, a nomenclatura mutilada de "Shakespear", para demonstrar a noção de franca incompletude do criticado. Mas são nessas páginas do russo que o leitor se brinda do encontro de dois dos maiores escritores de todos os tempos, no exercício inédito de descanonização da parte de um deles, que, após uma vida de pesquisas e interação comprometida, se lança ao que, para qualquer outro, seria um desplante abominável.
Pode-se discordar das invectivas de Tolstói, mas acompanhar a sua implosão de Rei Lear, por exemplo, é um convite a reler a peça com esse novo olhar. Tolstói assinala inconsistência a cada página, aponta erros, imposturas, despropósitos, puras besteiras para agradar a platéia, e assim vai. Já na primeira cena da peça, se pergunta como um rei que amava de forma especial à filha mais nova, Cordélia, e que tinha plena certeza do amor e dedicação desta, a renega peremptoriamente só porque não soube bajulá-lo da mesma forma que suas outras duas filhas, Goneril e Regana (tidas notoriamente por todo o reino como víboras), o que disso faz surgir toda a desgraça e destruição de si e de tudo que o cerca. Toltói salienta como Shakespeare abortava qualquer força e convencimento das cenas por intercalar monólogos longuíssimos e sem sentido do velho Lear a todo momento. Descreve como todas as ações dos personagens não faz qualquer sentido e vão imediatamente de contra a qualquer lógica da convivência. O texto é recheado de análises como as que seguem abaixo:
"Nesse momento, por algum motivo, chega Lear, coberto de flores silvestres. Ele enlouqueceu e suas falas são ainda mais absurdas do que antes: discorre sobre cunhagem de dinheiro, sobre arco, entrega a alguém uma luva de ferro, depois grita que está vendo um rato, que quer atraí-lo com um pedaço de queijo, e em seguida, de repente, pergunta a senha para Edgar, e Edgar na mesma hora responde com as palavras 'manjerona doce'. Lear diz: Passe!_ o cego Gloucester, que não reconheceu nem o filho nem Kent, reconhece a voz do rei."
"Em seguida, Lear pronuncia um monólogo sobre injustiça nos tribunais que é de todo incoerente na boca de alguém enlouquecido. Depois disso, chega um cavalheiro com soldados, enviado por Cordélia para buscar Lear. O rei continua agindo como louco e sai correndo. O cavalheiro enviado à procura de Lear não corre atrás dele, mas por um longo tempo fala a Edgar sobre a disposição dos exércitos franceses e britânicos."
"Em seguida, entra Lear com Cordélia morta nos braços, apesar de ter mais de oitenta anos e estar doente. De novo começa um terrível delírio de Lear, que provoca vergonha com suas brincadeiras sem graça. Lear exige que todos uivem e ora pensa que Cordélia morreu, ora que está viva. 'Com vossa língua e olhos eu faria/ Ruir os céus.' Ele conta que matou o escravo que enforcou Cordélia, em seguida diz que os olhos dele enxergam mal e nesse instante reconhece Kent, que lhe passara despercebido o tempo todo."
"Em seguida, entra Lear com Cordélia morta nos braços, apesar de ter mais de oitenta anos e estar doente. De novo começa um terrível delírio de Lear, que provoca vergonha com suas brincadeiras sem graça. Lear exige que todos uivem e ora pensa que Cordélia morreu, ora que está viva. 'Com vossa língua e olhos eu faria/ Ruir os céus.' Ele conta que matou o escravo que enforcou Cordélia, em seguida diz que os olhos dele enxergam mal e nesse instante reconhece Kent, que lhe passara despercebido o tempo todo."
As análises seguintes no ensaio são da mesma forma desconstrutivistas e altamente cômicas, o que faz dessa pequena obra de Tolstói uma das mais engraçadas da literatura.
Fiquei com muita vontade de ler. Sempre achei que os séculos me separavam de Shakespeare, que as imitações e diferenças históricas me impediam de gostar das suas peças. Que bom que isso não acontece só comigo!
ResponderExcluirEu havia me proposto a ler Shakespeare na adolescência. Tenho aqui em casa a coleção completa das obras dele, em capa dura, de mil novecentos e bolinha. Tenho um certo apreço por elas, apesar da cruzada que empreendo pra me livrar dos livros velhos (descobri uns escondidos numa caixa. Os malditos estão se reproduzindo!) Comecei a ler na ordem - começa com A Tempestade, depois passa para comédias, dramas, sonetos e biografia. Li todas as comédias e perdi o saco. O que é o perdão repentino dos Dois Cavaleiros de Verona? Nunca me conformei com aquilo. Das outras nem lembro o suficiente pra comentar. Só sei que achei um saco.
Hamlet deve ter sido a única que eu gostei, apesar de ser totalmente incoerente. Pode ser também que estava contaminada pela ótima série (quem sabe deva dizer "ótimo início de série")Som & Fúria que passou na globo e começava com a montagem desse espetáculo.
Caminhante, em off: adorei ainda mais o ensaio de Tolstói por compartilhar com tudo que ele diz. Li muito de Shakespeare, gostei imensamente de Júlio Cesar (o dvd com o Brando eu o vejo pelo menos uma vez por ano), e percebi a poesia sofisticada de A Tempestade (era a obra que Bellow mais gostava, e talvez isso seja derivado do meu amor por Bellow), mas tudo o mais achei "alienígena" demais para mim. Nunca assisti a uma peça de Shakespeare_ os maiores estudiosos da obra diz que ela vale realmente no palco_ e talvez o segredo esteja aí. Rei Lear mesmo, que li duas vezes, por motivos acadêmicos, nunca me desceu_ há sim sentenças antológicas por toda parte, mas aforismas esparsos pareceu-me pouco como fundação.
ResponderExcluirGosto muito de textos desconstrutivistas e conflitos entre autores_ se bem que esse, obviamente, foi por mão única. Nabokov falando que Dostoiévski não tinha uma página que pudesse ser reproduzida numa antologia de estética literária russa e que Quixote era vulgar e medíocre.