quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Abstinência


Então ele queria que tudo fosse para as cucuias, emprego, vida familiar, intenções adultas para o futuro, prevenção do câncer, admissão segura do amor. Com uma lassidão de um guerreiro submetido a experiências limítrofes, cuja racionalidade condicionada pelo tédio havia sido pulverizada, ficava deitado no sofá nas tardes de folga, com uma Heineken na mão esquentando-se enquanto mal admitia para si que seu olhar indolente, perdido no torpor das ondas de calor e barulho que solapavam o ar e entravam pela janela, continuava por procurar um sentido superior para o desencanto, ansiava como uma criança submetida a um pós-operatório de dois meses prostrada na cama por uma tarde de sol no campo.  A tarde de sol feliz no campo que justificaria o propósito da vida. Ela retornava para seu emprego numa creche municipal, dirigia-lhe um beijo rápido da porta, sem meios tons ou sentidos ocultos para não agravar mais a sua hipersensibilidade por sinais subliminares, e deixava-o sob seu rastro de perfume estival, cherry blossom and peach fruit, que transformava a casa no mais perto da certeza da perca do Sonho a que suas antenas excitadas poderiam apreender. Às vezes se levantava, erguendo a perna por sobre a mesinha de centro numa altura que acentuava a pouca acomodação de seu corpo à nova realidade pulsante da meia idade, o nervo ilíaco querendo tomar as manhas para si, e ficava em pé diante a janela acompanhando-a sumir na próxima esquina, os cabelos perolados num tufo grosso saindo da cabeça e afinando-se numa ponta eqüina que batia-lhe no cóccix, os passos decididos e coloquiais arremetendo sua presença segura no teatro das ruas; inegável que atraía um monte de olhares de sentimentos multifacetados, o ardor da recusa obrigada nos tantos homens civilizados que lhe olhavam na distância estabelecida pela reconhecida falta de méritos, aqueles que tinham fé que poderiam ter a estatura certa, os milimétricos requisitos financeiros para abatê-la, olhos que vinham de vidros fechados de carros com ar condicionados ligados, os suspiros jocosos, que escondiam de forma fácil e já condicionalmente pronta uma nostalgia sabe-se lá do que partindo dos trabalhadores do prédio em construção ali em frente, do silêncio constrito das mulheres que lhe passavam em sentido contrário pela rua. Todos eles sofriam por um segundo a mesma ilusão de que ela lhes pertencia, pela simples e paradoxal abstinência do olhar, assim como ele, cuja respiração embaçava o vidro para que suavizasse o momento em que ela seria engolida de uma vez pela próxima esquina.

4 comentários:

  1. Gostei muito! As palavras vem como uma ventania (una "hojarasca"!). E nos deixam com uma sensação... Nos deixam junto com o personagem. Quase nos olhamos, cúmplices, ao final.

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  2. Nenhuma generosidade, Charlles. Apenas a sensação que ficou comigo depois de ler.

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  3. Aliás, a imagem que conseguiste é perfeita. Teu conto desenha algo assim.

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