segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Gabriel Garcia Márquez _ O Velho Rei Cagando na Latrina


(Texto sem revisão)
Quem passou a ler Garcia Marquez nos anos 80 e era um adolescente, como eu, sabe do enorme assombro que tal descoberta envolvia. Me lembro bem que a leitura que nos chegava aqui nesse canto de mundo, a leitura requintada e importante que tínhamos que ter para nos tornarmos cultos, era a que estava construída dentro dos moldes tradicionais dos escritores europeus e norte-americanos. Nos anos 80 eram poucos os livros de autores contemporâneos que o restrito mercado editorial nacional oferecia_ afora os best-sellers fúteis que reafirmavam o quanto eram quentes as aventuras sexuais e de vinganças que transitavam no mundo financeiro lá de fora_ , e nosso atraso quanto às novas produções intelectuais era suavizado pela impressão de que a leitura da tradução da tradução de Dostoiévski era um instrumento efetivo para alargarmos nossos horizontes de compreensão. Jovens colegiais, como eu era na época, se embeveciam com Kafka, embora para nossas mentes incipientes A Metamorfose era apenas uma história de suspense tresloucada sem nenhuma sub-liminariedade. Um conto que fez furor entre a rapaziada de 17 anos, Erostrato, de Sartre, por exemplo, nos cativava pela figura cinematográfica do assassino serial que quase escapole da polícia. Assim, ler Cem Anos de Solidão era algo comparável a um desvirginamento, uma experiência real mais forte e substancial que as experiências de certa forma mastigadas que outras pessoas já mortas e que viveram a quilômetros haviam nos passado. Ler Cem Anos de Solidão foi, para minha geração, o primeiro contato sério e inescapável com o que poderíamos definir como nossa política, nossa história, nosso povo.

E o interessante é que, apesar de minha iniciação política ter vindo de García Márquez, eu já defendi acirradamente diante uma banca de acadêmicos a ideia de que o colombiano é o menos político dos autores hispano-americanos. Mas isso é uma outra história e não importa aqui. O que quero reafirmar agora é o quanto minha juventude foi assolada pelas possibilidades inéditas que fluiam do grande romance de GGM. Uma vez, conversando com um amigo também devorador de livros, invoquei o assunto de como cada um de nós chegara ao universo da leitura. Esse meu amigo lembrou que passou a consumir dois livros por semana graças às leituras iniciadas nos volumes sobre questão social e de movimentos de esquerda que editoras como a Expressão e Cultura publicavam. Da história dos movimentos campesinos, ele passara de Che para Jared Diamond, Bauman, Todorov, Saramago, etc. Eu, pelo meu lado, confessei que minha entrada foi feita por caminhos nada políticos. Como eu sempre fui apaixonado pelo frio, ou pela ambientação geográfica de povos tradicionais como os judeus poloneses, eu comecei a ler sobre o fog londrino, as tramas pitorescas que ocorriam entre prosaicos casais de vilas siberianas perdidas, ou sobre fantasmas que resolvem aparecer em pleno inverno. Iniciei-me lendo Conan Doyle, Checov, Stephen King, Sheridan Le Fanu, etc.

Eu procurava romances habitáveis, com mobiliários que permitissem um aconchego de frente à lareira. Digo tudo isso apenas para chegar ao ponto capital: GGM tornou consumível para meu gosto atmosférico as ruas empoeiradas batidas por um sol inclemente, e as casas modorrentas em que lá dentro os habitantes descansavam as sestas da tarde, com os corpos cobertos de suor. As vilas esquecidas do interior da Colômbia, que ele traduzia em seu universo pessoal centrado na mítica Macondo, passaram a ser tão convidativas quanto as vielas londrinas, e as paisagens de neve pelas quais passavam trenós carregados de nobres festivos das histórias de Tolstoi. Pode parecer pouca coisa, mas eu, assim como a maioria quase absoluta de jovens da minha idade, éramos infestados da cultura televisiva, por mais que ela nos soasse desde já deletéria, propagada pelos filmes hollywoodianos dos pacotes de atração anuais da Globo. Vivíamos nos resquicios disfuncionais de uma ditadura que, culturalmente, tornava o Brasil tão fechado para o mundo externo quanto eram quaisquer outros países latino-americanos. Assim, as primeiras palavras de Cem Anos foram como aprender a ler de novo; os Buendias e os Arcadios e tudo que infestava suas vidas de indios subdesenvolvidos formaram uma aquisição de lucidez violenta que atirava janela afora, sem delicadezas, todo o substrato de uma visão de mundo pequena, mesquinha e agrilhoada aos padrões de consumo ditadas pelas mídias corporativas de um Brasil muito feudal e estacionado no tempo. Cem Anos veio com a adstringência salvadora de mostrar que o olhar voltado para nós mesmos não precisava ter o pedantismo auto-condescendente e já imbuído de pedido de desculpas que havia em novelas televisivas como O Bem-Amado, e nos filmes em que o catolicismo aparecia flagrantemente nas frestas de um suposto reacionarismo político, como O Pagador de Promessas.

GGM foi o primeiro dos escritores latino-americanos que nos mostrou como realmente somos, sem a mínima maquiagem, sem o mínimo eufemismo. E sua revolução conceitual foi a de dizer que não precisávamos de maquiagem e nem eufemismos, que assim como éramos estávamos no mesmo patamar distintivo de qualquer europeu ou norte-americano, e nossos bêbados de esquina e nossos barbudos apedrejadores de prefeituras eram tão carregados de um misticismo nobre quanto o Rei Arthur e Thomas Pain. Por detrás dos escatologismos aparentemente idiotizados de seus personagens; por detrás das caras estupidificadas dos donos de botequins e das meretrizes de axilas rescendendo a cebolas, havia a entidade legitimamente representativa de nossa latinoamericanidade em que estuporavam a inteligência e a graça, algo que não podíamos nos envergonhar e que não abaixava a cabeça diante a velhice postural dos outros continentes. Na melhor novela curta de GGM, Ninguém Escreve ao Coronel, por exemplo, o velho coronel de guerra que passeia com seu galo pelas rinhas do povoado enquanto espera por um cheque de aposentadoria que nunca vem, inicia a história acocorado sobre um pinico, esforçando-se por botar seus excrementos para fora. E a força inigualável da escrita de GGM se encaixava nessas exposições isenta de regionalismos ou traços da escrita provinciana que até então serviam para atolar as literaturas nos limites das efemérides dos intelectuais de prefeituras. Como diz Hobsbawn sobre GGM e Cem Anos, em A Era dos Extremos, o maior acontecimento literário do período final do século passado não aconteceu nos centros acadêmicos de Paris ou veio de alguma região urbana dos EUA, mas nasceu de um pequeno país latino-americano cujas notícias são sempre relacionadas ao narcotráfico, e promovido por alguém que tentava, como GGM disse várias vezes, apenas reproduzir o tom que sua avó Tranquilina empregava nas histórias que lhe contava em criança.

Cem Anos de Solidão ainda perdurará por bons anos como a maior realização do romance latino-americano. Na certa temos escritores melhores que GGM, que conseguiram estender sua qualidade por mais que os três livros realmente imortais do colombiano, mas nenhum deles conseguiu realizar um romance cujas proezas são tão imediatamente identificáveis como a saga dos Buendía. Cem Anos de Solidão oferece um universo tão completo da história, das características étnicas e das mentalidades latino-americanas_ com todos os seus humores e tragédias_, que esse livro exemplar extrapola a terrenicidade do seu autor. Sou um dos que julgam que GGM morreu após escrever O Amor nos Tempos do Cólera, e também me soam fúteis e totalmente dispensáveis a obra de não ficção em que ele ensaia seus posicionamentos políticos_ de uma forma em que o comentário de Bolaño de que GGM se encanta demasiadamente com generais e papas transforma em interpretação diagnóstica seu obliterado retrato de um ditador, O Outono do Patriarca. Mas Cem Anos de Solidão superou seu autor e adquiriu uma vida própria que o isola como um expoente estético e ideológico que pouco tem a ver com a figura dissipada que o escreveu.

11 comentários:

  1. Charlles,

    Para ler e guardar. De quebra, você gosta do frio. Temos algumas coisas em comum, hein?

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  2. E ambos vivemos em locais de calor, Milton. (Mas eu adoro onde moro.)

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  3. Era jovem nos anos 80; nunca achei Cem Anos de Solidão retratava bem nossa política, nossa história, nosso povo, mas era bastante genérico para englobar algumas características do subdesenvolvimento daqui com aqueles de lé e uns traços de gente pitoresca e fatos assombrosos, quer dizer, Márquez nunca foi dos mais admiráveis, mas bem pior que isso: uma influência para dezenas de jovens escritores que, depois de Macondo, se esforçaram em criar mitologias próprias com suas "profundas" visões do que é viver em uma terra-cornucópia. Já vai tarde, quando for (quer dizer, ir mesmo ele já foi, mas para melhor parecer com um personagem dele - e com os insepultos de Incidente em Antares - o cadáver dele ainda vaga por aí, dá entrevistas...)

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  4. Mas se formos resumir os livros nesses arquétipos rápidos que vc propõe, o que escapa? Márquez virou uma paródia de si mesmo, mas deixou três livros fundamentais: Cem Anos, O Amor nos tEmpos do Cólera e Ninguém Escreve ao Coronel.

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  5. Charlles
    Excelente texto. GGM envelheceu mal. Mas sua maturidade foi retumbante. Maravilhosa análise. Apesar da grosseria desnecessária do título.

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  6. Hahahaha, Farinatti. Permita-me uma referência truncada de garciamarquiano; a grosseria foi deliberada: não sei se tu sabes, mas só à custa de muita peleja_ e intermediação até de um padre_ o segundo romance de Márquez não saiu com o título que ele queria: "Esse Povo de Merda" (refiro-me ao Veneno da Madrugada).

    Obrigado e um grande abraço.

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  7. Mais uma vez defenderei o maridinho: os "arquétipos rápidos", primeiramente, são necessários ao comentário quase que necessariamente rápido que tem que se fazer em um blog, mas esses "arquétipos rápidos" são os mesmos a que GGM recorre para montar sua mitologia latino-americana, com um olhar bastante acurado aos interesses europeus, sobretudo, carente de algum exotismo paisagístico e turístico, além do que a Europa, mergulhada na Guerra Fria, queria também retratos de opressão imperialista que fossem além dos velhos reclamos realistas e oferecesse uma distintividade própria a um território ainda misterioso, embora 1492 já estivesse muito longe.

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  8. Charlles, de novo me sinto próximo ao GGM. Tenho vontade de dizer exatamente isso de muita gente sobre a qual escrevo. Ainda que não todos.

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  9. Gente... vocês discutindo arquétipos simplificadores, superficialidades na psicologia dos personagens, metáforas fáceis e outros quetais...

    Quando leio GGM eu fico enfeitiçado pela música, pelo ritmo da narrativa. Eu quase nem presto atenção na letra.

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  10. Idem!

    (e RIP, já que sempre coloco a última pá de terra nos posts)

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  11. 4yehgthtjht4nrgeghrnrfgegrrgvedd2xdbf@gfbnvgng

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