segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Dublinesca




Um dos álibis que se pode alegar contra os sinais anunciados da tão aclamada morte do romance é que mesmo seu definhamento consegue servir de tema para toda a obra de um dos mais relevantes romancistas da atualidade. Praticamente todos os livros do espanhol Enrique Vila-Matas tratam da morte do romance, utilizando-se para evidenciá-la de uma série de personagens cuja reação ao avanço de uma era de iletralidade é a da abstinência criativa ou a recusa pura e simples de escrever. Vila-Matas tece um jogo curioso de referências diretas aos mais importantes escritores da literatura, de forma a fazer produzir no leitor a “doença da literatura” que incapacita espiritualmente seus heróis, mas tem o cuidado mercadológico de não incorrer em modelos muito herméticos, abrindo as janelas de suas narrativas para que o ar de dias ensolarados tenha livre acesso. Vila-Matas, pois, se presta ao que grandes escritores que se recusaram a ser objeto de fetiche de uma minoria de apreciadores especialistas fizeram para alcançar o grande público: administraram suas caixinhas de truques e surpresas de forma a serem bastante permeáveis às vendas exponenciais, e com isso, mais uma vez, reforça a duração do romance. Recheia seus enredos de sombras, chuvas, sonhos, personagens misteriosos, equivalências que supõem a mágica, viagens para aprazíveis cidades históricas européias, micro-ensaios bem estruturados sobre livros, fofocas atuais ou muito antigas sobre escritores; além de servir-se da internet para propagar os personagens cuja face impressa jura que existem mas que as consultas pelo Google revelam inventados. A astúcia desse procedimento é que o leitor, na consulta, cai na rede de fãs que o autor arrebanha pelo mundo, à semelhança dos que se descabelam na escavação de códigos nas páginas de Thomas Pynchon.

Mas engana-se quem achar que Vila-Matas é apenas um leitor cuja leitura de todos os livros não deixou outra opção que fazer-se ele mesmo um funcionário de sua memorialística literária. Como na comprovação da excelência das costureiras, pode-se perceber o grande calo profissional que Vila-Matas tem na mão em seu recente romance, Dublinesca. Trata-se das aventuras de Samuel Riba, um editor aposentado que vive para ruminar os dias gloriosos do romance, dos quais participou ativamente, mesmo sem nunca ter encontrado o jovem gênio das letras que sempre procurara, e que, como ato ritual ao que ele vê como “o fim da Galáxia de Gutenberg” e a consagração decisiva da era digital, encena com um grupo de amigos o enterro do romance indo para Dublin no Bloomsday. Desde a primeira página vemos que só sobra a Riba o encerramento tortuoso no qual sucumbem os pacientes terminais; a cada passagem de seus dias na Espanha, à espera que chegue a data prevista para a viagem, intrudam-se elementos de pesadelos tomados da literatura que não lhe possibilita saber onde prossegue a realidade e onde se irrompe o sonho. Mesmo as visitas habituais a seus velhos pais, todas as quartas-feiras, que no mais não passam de tediosas obrigações cumpridas à risca, são contaminadas pelo onírico que escapa dessas frestas do cotidiano.

Mesmo Riba sendo o que ele vê como uma versão mais velha e culta de um hikikomori, nome que se dá aos jovens japoneses que já se alienaram do mundo trancando-se nos quartos das casas dos pais e não saindo de frente do computador, pois ele mesmo sucumbe às horas pesadas de exposição ao Google, não lhe escapa a verdade de que a cada dia vai se tornando mais e mais obsoleto. Sua esposa se converte ao budismo, e, numa determinada cena em que Riba a observa dormindo, está mais jovem e possuída de uma beleza plena. Sua viagem a Dublin, a qual era a última chance de integrá-lo a algum significado de pertença_ mesmo que fosse de pertencer a um grupo que se enterrava sob um réquiem de resignação à modernidade_ se mostra, apesar da beleza da paisagem em que Riba se identifica como pertencendo ao mar da Irlanda, um completo fracasso na comunicação com os amigos.

A bela editoração da CosacNaify complementa a alusão de que Vila-Matas trata de temas profundos com uma leveza que não se corrompe por nenhuma das duas opções (deixar de ser leveza aniquilando-se na imanência das matérias tratadas, ou tornando-se superficialidade pura): a ilustração da capa, as letras grandes, a feição corporal de objeto perfeitamente comestível e um quê do requinte de ornamento de mesa de catálogos fotográficos. Mas Vila-Matas prescinde desses artifícios, ainda que eles complementem a sua arte. O livro vale por suas reflexões requintadas sobre a modernidade, sua ironia fina sobre a geração de cultores virtuais em que a maioria da humanidade está se tornando, sua prosa que não é permissiva e não faz concessões, seus resvalos gratificantes numa premonição de níveis mais profundos do discurso. Mesmo as partes que cairiam na ineficiência e no desgaste, Vila-Matas as convertem em agilidade perfeitamente convincente.

9 comentários:

  1. Só li aquele livro sobre os escritores -- Síndrome de Bartleby? -- e acehi divertido. Aliás, ele é muito divertido pessoalmente. Suas observações sobre Bolaño no YouTube são encantadoras.

    ResponderExcluir
  2. Suprema honra estar aqui em seu blog, CHarles.
    Prazer maior encontrar aqui o meu amado: Khayyam.

    Valeu por um longo tempo de existëncia.

    Muchas gracias...

    ResponderExcluir
  3. O Vila-Matas sofre do Mal de Montano, conforme ele mesmo se autodiagnosticou em um romance autorreferente, embora não autobiográfico: para ele, a vida é um sem fim de citações literárias ligadas umas às outras, e nossos corpos somente o suporte necessário para carregar essas citações e cuspi-las decentemente, sem catarro, a cada encontro sexual ou tertúlia entre quase-amigos (uma vez que isso de amizade humana é coisa de idealistas, conforme sabe o Vilinha, que não merece ser chamado de Vilão, sendo mais um entre tantos desses sofisticados autores espanhóis que fizeram o boom da literatura cerebral com o toque de pimenta catalã).

    Ah, desculpe-me o péssimo humor de hoje, rescaldo de ontem e, quem sabe, preservado em conserva alcoolica para amanhã.

    ResponderExcluir
  4. Carmen, uma das recompensas de ter esse blog é a de angariar a atenção, mesmo que esporádica, de apaixonados calorosos pela poesia e a literatura em geral, iguais a você.

    Obrigado pela visita.

    ResponderExcluir
  5. Milton, Bartleby e Companhia, estou com ele aqui para ler. O cara vale mesmo a pena.

    ResponderExcluir
  6. Marcos, Vila-Matas brinca com as referências sem tornar o texto entulhado. Na verdade gostei muito desse romance. É uma maneira astuciosa de fé.

    ResponderExcluir
  7. RAMIRO CONCEIÇÃO, ESTAIS AÍ? ESTÁIS ME OUVINDO? BALANÇE A MESA. ESSE ELOGIO É SEU:

    http://charllescampos.blogspot.com/2010/09/someones-knockin-at-door-somebodys_16.html

    ResponderExcluir
  8. Talvez o que o Marcos quisesse dizer é que o Villa-Matas se integra em um regime de "nova prosa" espanhola feita em laboratório, para atender desde as demandas mais "populares", com romances do gênero "A Sombra do Vento", onde não faltam, mesmo assim, citações "espertas" e eruditas, até os mais eruditos, com livros como "O Mal de Montano", onde não faltam episódios eróticos excitantes.

    Temos um desconfiômetro ligado nesse tipo de literatura que parece ser de qualidade mas é, na verdade, um subproduto do mercado editorial, atento às demandas, e que pousou uma marca sobre a "nova literatura espanhola".

    ResponderExcluir
  9. Charlles, li(agorinha) o elogio...
    Deixei um comentário lá, no blog da Carmen.

    ResponderExcluir