segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Cosmópolis, de Don Delillo


O herói de Cosmópolis, Eric Packer, é o elo entre duas cadeias da evolução humana. A que ele vai deixando para trás é a que por si mesma já se formou sem os adendos desnecessários da moral e as obsoletas noções da filosofia clássica; a que ele vai se transformando é o passo além do super-homem, imune de piedade, amor, ódio e imortalidade, a ponto do anseio do lugar em que outras eras mais flácidas ficava a alma ser o permanecer como memória virtual, uma informação eterna condensada em fibra ótica. Eric Packer possui bilhões de dólares, tem 28 anos, aproximados 6% de gordura corporal, e encarna na amplidão de sua limusine de alto luxo o afagar de ego dos super-ricos no monitoramento através das telas LED das cotações das bolsas mundiais e tudo que as câmeras externas do veículo captam do mundo do lado de fora. Eric Packer, em sua aproximação limítrofe a um novo avatar gênico, é excessivamente inteligente; em suas noites cada vez mais tomadas de insônia ele se dedica a ler poemas (principalmente os muito curtos, com escalas dissílabas matemáticas) e grandes tratados de física; sua capacidade de transcender a realidade num nível de refinamento simbólico é profunda; e ele constantemente é tomado pelo desejo adâmico de re-nomear os objetos (por que os pés e braços das cadeiras continuam sendo chamados assim?). Em seu avançado estágio de mutação, ele não comporta mais ser alvo das defasadas teorias sobre a psicopatologia do poder e a egolatria da dominação do mundo. Ele é outro ser, incatalogável; o predador perfeito da geração técnico-virtual que prescinde das formas usuais da identificação da crueldade e dos assassinatos cruentos. Ele tem a promessa da gélida assepsia do bebê confinado no monolito de 2001, uma Odisseia no Espaço

Toda a trama do romance transcorre desde o amanhecer em que Eric sai de seu apartamento triplex  em Nova York, descendo pelo elevador especial que só toca Satie (o outro está programado a tocar um rapper sufista chamado Brutha Fez), entra em sua limusine e se dirige para cortar o cabelo em algum lugar da quinta avenida. Até o anoitecer, tantas coisas acontecerão com Eric, na conjunção da lógica dos desastres, que ele acabará privado de todo seu dinheiro e poder. É nesse intercurso que a prosa de Delillo alcança plena sublimidade. Delillo cria uma obra-prima inigualável, que atesta ser este volume pequeno de menos que 200 páginas o ápice de sua suficiência; um produto de mestre em que tudo parece perfeito, calibrado, sem excessos, ainda que diga excessivamente, que provoque excessivamente. É um romance vertido por um William Blake enlouquecido pelas visões de sua lucidez profética (embora o pesadelo narrado seja desconcertantemente contemporâneo), com a capacidade de enxugamento de um Flaubert. E Delillo mostra maturidade e independência como escritor ao não cair nos cacoetes óbvios que tal trama parece obrigar a cair: ele não bebe dos tons distorcidos da contra-cultura nem da literatura lisérgica. O imediatismo de sua mensagem, passada na mais elevada arte, não aceita camuflagens: com frases de sintaxes cortantes, carregadas de uma poesia límpida e escatológica, os diálogos às fartas que revelam uma vivência de quem conhece o sofrimento e o terror profundamente, Delillo tece uma contundente crítica ao sistema financeiro global e sua inevitável propensão ao suicídio. Acompanhando o pós-niilismo e o maquinismo deístico de Eric, fica um tanto difícil ao leitor suavizar as premonições com o pensamento: "isto é só ficção; não se deve levar o autor tão a sério".

7 comentários:

  1. E o filme, verás? O Milton certamente sim, porque tem a Binoche.

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    1. Não sinto muita curiosidade. Aliás, sinto uma temeridade, ver o quanto as sutilezas do livro podem ser transformadas em pistolagens, explosões, e nudez gratuita (com certeza eles devem aproveitar uma cena em que Eric se desnuda para mostrar esse ator do momento pelado).

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    2. Agora o milton e a Caminhante verão hauhauha

      (Pra suavizar um pouco: Caminhante, tu q é boa em séries, já viu How i met your mother? vi ontem - fui ver um capítulo e vi dez; achei engraçadíssimo!)

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    3. Pattinson pelado? Oba!
      Nunca vi, arbo. Vejo as propagandas e pelo nome fiquei com uma certa preguiça. Você ter achado engraçadíssimo agora me deixou com vontade. Tenho dificuldade em sentar pra acompanhar séries, gosto de ver tudo de uma vez quando acaba a temporada. A excessão do momento é Homeland. Resisti porque não gostei do tema, mas está sensacional!

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  2. Ahn... vi o filme; precisa msmo ler o livro? O filme não é comercial, não é apelativo, mas é um tanto enfadonho pois o que quer dizer poderia ter sido dito em poucos minutos, e a trama em si paraece algo redundante além das fixações crítica subtextuais, e isso me parece ser bem responsabilidade do livro, que deve conter os tais recheios redundantes para não se transformar em uma novela de poucas páginas com a básica missão de comprovar o que já se sabe, como eu poderia dizer?; que no mundo dos super-homens financeiros o desprezo pelo universo ao redor enquanto portador de valor e de sublimidade ética se dá na mesma medida da superrestimação daquele que capta nos circuitos globais a oportunidade de otimização exponencial dos lucros, sendo este último a expressão de grandeza do homem mesmo sendo este ciente que o capital em si mesmo vale tanto quanto a expressão de um estilo.

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    1. Para resumir a coisa para o Milton, conforme o arbo disse aí acima: o rapazola aparece peladão mesmo?

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    2. Não me lembro; se aparece, não notei. Mas a Juliette Binoche NÃO aparece nua, enquanto uma mulata da segurança com quem ele tem uma transa rápida e algo sadomasô aparece, e não é nada nada nada má. Ele faz bem o papel com aquele jeito de quem diz tudo e não diz nada, impassível como quem não quer se revelar de maneira alguma, mas uma vez ele declarou não ter gostado de posar junto com umas dez mulheres nuas por não gostar de vaginas.

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