terça-feira, 16 de outubro de 2012

32 Curtas Sobre Glenn Gould



Tantos carcinomas, obstruções severas de artérias cerebrais, infartes fulminantes, atropelamentos e encapotamentos finais nos rondam nessa nossa descolada vidinha moderna que é uma verdadeira inconsequência perder-se duas horas de tempo com o cinema. Mesmo Tarkovski exige a promessa do arrebatamento já na segunda sequência de cenas, senão é imprescindível que se desligue o aparelho (o de dvd, não o de hemodiálise ou as máquinas que promovam a respiração, já que estamos combinados em não levar certas formas de expressão artísticas tão a sério), e Hitchcock nessa altura de nossos desventurados 40 anos vale pelas ternas curiosidades preto-e-brancas cuja duração é de uma hora e meia e é sempre fascinante ver a formosura congelada no passado dos já bem acabados cadáveres, Cary Grant, o espécime masculino mais bonito do mundo com seu rosto cheio de detalhes inapreensíveis (que desagradável um encontro pessoal com ele e não se poder vencer o magnetismo de tentar apreender a impossível simetria daquele quadro complexo de furinho no queixo, olhos e bochechas, e cabelos de raízes tão bem fincadas que parecem cabos de aço negros misturados a uma lisura de seda; que constrangimento sermos pegos tão desprotegidos em nossa macheza desamparada!), e a surpresa em descobrirmos através de uma consulta pelo Google que Joan Fontaine ainda está viva; ou Kim Novak, que nos constrange ainda mais por termos que admitir ser belíssima, mas não tão com a mesma perfeição ortodoxa e insuperável de Cary Grant (o que nos resta festejarmos por um ultraje filosófico destes estar bem enterrado em Davenport, ainda que Groucho tenha antecipadamente duvidado disso).

Sendo assim, me vi neste feriado colocando para rolar um dos meus cem dvds nunca assistidos mas cuja curiosidade repentina sobre Glenn Gould me motivou a me sentar diante a tv e confrontar pelo menos 15 minutos de 32 Curtas sobre Glenn Gould. Glenn Gould não entra nem perifericamente na minha lista de músicos preferidos. Os cristais matemáticas intrincados, ou estrelas de gelo, que gravou, que levam nos catálogos a assinatura de composição de Johann Sebastian (esse sim o número 1 da minha lista), também nunca me impressionaram, ainda que eu perceba um benefício superior no progressivo hermetismo dessas peças e na necessidade quase angustiante de ter que jogar grãos de feijão pelos corredores do labirinto para se saber voltar quando encerrada a jornada; mas a leitura de O Náufrago, a novela maravilhosa de Thomas Bernhard que trata de Gould, me colocou de sobreaviso quanto a ele, pelo que ele me pareceu ter de insuportável esnobismo, de personalidade autista execrável em seu voluntarismo, de distanciamento e alienação em confeccionar uma verdade artificial sobre a existência e se prender maniacamente a ela. Glenn Gould, trocando em miúdos, sempre me pareceu o pior tipo de gênio (reconheci desde o princípio sua irritante natureza semi-divina), aquele que para nós, inconformados nativos de um paralelo geográfico tropical há dez mil quilômetros dessas regiões ancestrais da arte empostada que legitimam essas personalidades de todo alienígenas, não se configura como uma presença humana, mas como um clichê psicopatológico manniano. Coloquei para rodar o filme no propósito de ter um som ambiente pela casa enquanto realizava determinadas funções de feriado, seja catar cubos de lego debaixo do sofá, seja ajeitar certos livros de sobre a impressora de volta em seus cantos passageiramente inadmoestados, seja acabar aquela última palavra-cruzada do exemplar de 300 páginas que me pressiona a saber o nome do elemento decorativo no castiçal sem que eu cole nas respostas das páginas finais. E eis que sou levado a prestar atenção.

32 curtas é a exata medida da minha paciência com o cinema, pois não oferece vínculo contínuo de atenção, sendo desviada para outros temas assim que o anterior é encerrado, e me pareceu sublime na forma em que trata de uma personalidade. 32 visões sobre Gould, o que deveria ser a fórmula para se analisar o mais prosaico e desinteressante dos humanos. Já esse esquema me aliviou bastante do preconceito que Bernhard me instalou: Gould multifacetado, simples, maravilhosamente sagaz, esplendidamente engraçado. Inegável que teria sido um grande escritor, se tivesse escolhido isso. Há um texto produzido por ele no filme, em uma das peças curtas, em que ele imagina uma entrevista entre um típico repórter de revista especializada e ele: é de um humor tão bem construído que meu desejo imediato foi o de passar pelo exercício martirizante de colocar em slow motion e copiar o texto. Há outro texto de Gould em que ele se descreve para uma hipotética nota de jornal atrás de um encontro amoroso: joyceano. Teria sido sim um grande escritor. Mas as primeiras cenas da casa do lago em que morava com seus pais, o ambiente musical diuturno e ilimitado promovido pelos pais, a felicidade que Gould teve na infância, o contato infinitamente vantajoso que isso garantiu entre ele o mistério, entre ele e o esoterismo da arte, é que são de calar fundo ao expectador. Tais cenas me ganharam o feriado, me preencheram do prenúncio acolhedor da chuva que bate contra o telhado e os vidros da janela e ensombrece benevolamente os rostos dos que amo aqui que nessa hora brincam nos campos do sonho. No filme há também uma animação em que fica impossível não se aproximar da compreensão da música de Sebastian/Gould como líricas fórmulas algébricas, esferas vibrantes. Gould é apresentado longe de sua doença, longe de sua excentricidade (o máximo que se tem dela é o anúncio feito por ele ao zelador que lhe pede um autógrafo antes de sua última apresentação pública, da sorte que tem por ser esse seu último autógrafo), como um artista puro que vive pela música mas que se mostra afável, apesar disso_ compreendendo que se existem aqueles que só vivem para executar longas travessias em uma bicicleta, ou por arremessar com os pés a bola em um gol, ou para mostrar seu rosto plasticiado numa tela, existe por direito e sem bullying o que vive para a chuva de dedos no piano [aqui fica evidente ao desmontador de imposturas que eu tomei tal termo de um crítico que o dirigiu à tríade de guitarristas, Al Di Meola, John Mclaughlin e Paco de Lucia, não a Gould]). Um filme terno, generoso e ligeiro, belíssimo e inteligente e bom o suficiente para se levar a lembrança dele para o reino dos mortos.

12 comentários:

  1. não conheço.
    mas esse do Al Di Meola, JN e PdL meu pai sempre teve em casa, é, realmente, uma tempestade.

    [vi o pessoal no google e discordo de ti: prefiro a Kim Novak ;) ]

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ela tá insuperável em Vertigo! Que mulher lindíssima!!

      Mas Cary Grant é o tipo que toda mulher se apaixona e todo homem tem medo.

      Excluir
  2. Pelo menos dois dos sintomas da genialidade eu sei que Gould tinha: loucura e depressão. Mas isso não é suficiente, decerto. Eu penso que a genialidade necessariamente cria, e não apenas interpreta, o que era o ofício dele.

    Quando você se refere à musicalidade de Gould e ao mesmo tempo menciona a matemática, parece-me que você faz uma impiedosa crítica a ele, já que a matemática é a área mais álgida do conhecimento e é nos matemáticos que se encontra, em maior grau, a insensibilidade artística. Eu o interpretei corretamente ou minha leitura rápida me desfavoreceu também agora?

    Eu não desejaria ser colega de Cary Grant! kkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ouça as Variações Goldberg executadas pelo Gould, João, que você verá o que para mim é uma arte matemática. Sempre que as escuto, não consigo deixar de imaginar universo de fórmulas matemáticas. Há apreciadores eruditos que amam essas variações, chegando a repetirem convictos que são as mais sublimes peças musicais da humanidade. A mim são frias, quase fascistas. Meu Bach é o das sonatas, das cantatas e dos concertos, não o destas variações. No filme, o ator que interpreta Gould se mostra abduzido para esses planos algébricos, o que retrata como Gould na verdade só se interessava para esse gênero de exercícios intrincados.

      Ser colega de Cary Grant era um convite à abstinência sexual forçada.

      Excluir
    2. Também prefiro as obras que parecem ter sido feitas por um homem apaixonado, e os concertos de Bach realmente expressam profundo amor, segundo o que sinto nelas. Em Vivaldi também não sinto outra coisa senão amor. Bach era um apaixonado, mas, assim como as Variações, a sublime A Arte da Fuga não lhe lembra também, inevitavelmente, relações matemáticas? Ouvi mais da Arte da Fuga que das Variações, mas as duas de forma insuficiente ainda. [A interpretação das Variações de Goldberg que tenho é de Pierre Hantï, e a da Arte da Fuga é do quarteto de cordas Emerson.]

      Não ouvi muitas interpretações de Gould, mas confesso que as ouvidas por mim não me encantaram, à exceção de algumas. O Capriccio da Partita número 2 de Bach é uma composição que me encanta profundamente, o que me fez ouvir várias interpretações dela. A minha predileta é a de Martha Argerich; a de Gould me pareceu, como você disse, mais matemática que emocional. Não gosto dele na mesma proporção em que ele é consagrado.

      Excluir
    3. O Arte da Fuga do Emerson Quartet (com certeza você adquiriu lá no PQPBach, que direto te vejo por lá) é magnífico. Mas o melhor Bach, o mais terno e lindo, que já ouvi, são essas sonatas do grande Aurèle Nicolet:

      http://www.greatsong.net/ALBUM-AURELE-NICOLET,BACH-J-S-FLUTE-SONATAS-BWV-1020-1030-1032-PARTITA-BWV-1013,101733991.html

      Excluir
    4. Talvez mais de 90% de tudo que tenho de música erudita provêm do PQPBach.

      Tenho confiado muito no seu gosto, então estou bastante curioso sobre essas sonatas. Ouvi-las-ei o quanto antes.

      Muito obrigado pela sugestão. =)

      Excluir
    5. Comprei esse cd do Nicolet baratíssimo há mais de 15 anos. Equivaleria hoje a oito reais na loja de cds novos. Por muitos anos procurava uma sonata maravilhosa que ouvira em uma madrugada pela rádio universitária, e descobri ser a sonata g-moll BWV 1020 em G minor (faixa 11 do cd), a música mais linda que eu já ouvi. Agora mesmo a coloquei e estou a ouvi-la: Bach é deus! E o pieguismo que se foda!

      Excluir
    6. Bach é deus! Beethoven é deus! Nietzsche é deus! Eu não me canso de repetir isso.

      Excluir
    7. Nunca consegui dizer que tal ou qual música é minha predileta. O que faço é dizer qual me causa, em mais alto grau, uma sensação. Por exemplo, não há música que mais profundamente me faz sentir o sentimento de lamentação do que a Sonata Luar, de Beethoven. Outras me lembram a frustração amorosa, outras a infantilidade, assim por diante.

      Excluir
  3. É, eu vi este filme uma vez, uns dez ou vinte anos atrás, sei lá. O cara é excêntrico, cheio de manias e divertido mas, como todo músico, seja ele bom ou ruim, tem uma fixação tal com a linguagem musical que às vezes parece confundir palavras com sons ou com o silêncio, que é mais importante na música do que na comunicação verbal (onde também, é claro, tem suma importância), e fica a vagar num deserto repleto de cores que só ele vê. Um ser humano só com a desvantagem de ser também só e músico, o que potencializa sua solidão ao cubo (imagina só um cara sentado sozinho de 4 a 8 horas por dia em um piano, experimentando acordes, solos, velocidade e intensidade das frases e andamentios, eca!).

    Talvez em "Gleen Gould - Uma Vida e Variações", Editora record, você encontre a transcrição da autoentrevista.

    Tem um cara escroto que uma vez falou um troço bem basicão acerca de nosso encontro com o mundo (isto é, com o mundo estrangeiro, especificamente países europeus, ou mais especificamente ainda, a França): "Eu tava lá em minha cidade natal, Ribeirão Preto e, devido às minhas leituras, olhava para a rua escaldante e verdejante e via neve, só neve...". Quer dizer: a gente tem uma puta dificuldade de conjugar os hermetismos dos abomináveis homens das neves com as pernas morenas e roliças das morenas que passeiam por nossas ruas inundadas de sol.

    Sobre cinema mesmo, a necessidade de contemplá-lo como arte autônoma, em sendo arte, como o Trakovski citado, e não essa lixaria hollywoodiana que entope os cinemas. Há pouca arte cinematográfica, mas há. Mas Hollywood é hegemônica a tal ponto que minha primeira paixão cinematográfica infantil nasceu após ver Rita Hayworth em "Sangue e Areia". Que era filha de espanhóis, nascida em Nova Iorque e cujo nome real era Margarita Carmen Cansino, o que diz alguma coisa sobre as inversões fanáticas das condições nacionais e territoriais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Já havia pensado nesta biografia antes.

      Não sei se você leu o A Beleza salvará o mundo, do Todorov. Ele analisa cavalheirescamente essa utilidade limitada apenas ao pobre reino da estética de alguns artistas em criarem para si mundos isolados de perfeição. Gênios excessivamente mutilados em todos os outros aspectos que não o de sua arte.

      Minha eterna paixão cinematográfica é essa carioca quase desconhecida que participou de um dos mais lindos filmes de todos os tempos (Verão de 42): Jennifer O´Neill.

      Excluir