domingo, 19 de setembro de 2010

Duas Versões de um Conto de Raymond Carver


                                            Raymond Carver e sua esposa Tess Gallagher

É impressionante confrontar as muitas diferenças entre duas versões de um mesmo conto do americano Raymond Carver. Trata-se dos contos "O Banho" e "Uma Coisinha Boa", ambos publicados no volume de contos lançado pela Companhia das Letras, "68 Contos de Raymond Carver". A história desses contos, a título de explicitar melhor suas dessemelhanças, é a seguinte: uma mãe encomenda com um padeiro um bolo de chocolate para a festa de aniversário de seu filho; quase na mesma hora, seu filho é atropelado por um carro. O acidente parece coisa de somenos importância, pois o menino volta para casa andando, mas ao relatar o fato para a mãe, ele tomba sobre o sofá e se lança num coma profundo. O enredo é, basicamente, este, de uma extrema simplicidade. Sabe-se que os contos de Raymond Carver sofreram uma severa interferência por parte de seu editor, Gordon Lish, que chegava a cortar mais da metade do que o autor escrevia, trocava os títulos e, o que pode-se deduzir dessas duas versões, inseria frases de emendas de seu próprio punho, criando um dos casos mais emblemáticos de dupla autoria da literatura. O conto "O Banho", é a versão de Lish, reduzida a apenas lacônicas oito páginas. "Uma Coisinha Boa" é a versão recuperada sem cortes de Carver, com vinte páginas.

É uma verdadeira aula de estética e interpretação textual a leitura dessas duas obras que, apesar de partirem do mesmo pressuposto temático, se revelam absolutamente desiguais. Chegam a ser duas peças independentes que, à força da omissão deliberada num sentido, e do emprego da torrente de informações e sentimentos que lhe fora negado, num outro, entram cada um num território sensorial e artístico diferente. O estudo delas também revela algo sobre as necessidades de subserviência de Carver ao mercado editorial, e de como Lish adequava-se à incumbência de tornar a obra de Carver inserida numa determinada modística literária para ganhar relevância, o minimalismo. Carver se submeteu a essa exigência, sem nenhuma relutância, mandando cartas a seu editor em que deixava claro que Lish poderia meter sua mão onde achasse melhor nos contos, coisa que Lish fazia com um compromisso ditatorial em cortar todas os matizes, tudo que lhe parecia excesso. Para comparar, o volume de contos "What we talk about, when we talk about love" tem 103 páginas, enquanto a edição póstuma feita pela esposa de Carver do mesmo livro, sem as interferências de Lish, possui 300 páginas (na tradução lançada pela Companhia das Letras, "Iniciantes").

Vamos ao que interessa, a análise desses dois contos. Em "O Banho", o conto se encerra com um terrível tom premonitório, fica tudo vago, a sequência esperada pelo leitor do que aconteceria com o menino no hospital é lhe retirada bruscamente, e o que é oferecido é o impacto de uma incerteza descomunal de que os personagens estão à mercê de um universo indiferente e implacável. As oito páginas refazem o tom de desilusão dos contos de Hemingway (com os quais se assemelha muito), podando qualquer aprofundamento com os personagens. Não há descrições de cena além do estritamente funcional, não há qualquer caráter humano ou simpático. É uma peça impecável, dura, afiada, um laboratório em que os personagens são meros veículos ao propósito de um retrato impiedoso de uma condição humana que nega o trivial potecializando-o ao máximo, mas lhe negando qualquer mitificação.

No conto sem edição, vindo direto das intenções de Carver, "Uma Coisinha Boa", nada se aproxima do conto de Lish. Sob todos os aspectos, a versão original de Carver é muito superior. Por mais que "O Banho" seja exemplar do que pode ser uma narrativa sucintamente grandiosa, a impregnação de toda a força e ternura de Carver torna "Uma Coisinha Boa" algo acima do talentosamente terrestre, elevando-a a um nível onde apenas a sublime genialidade alcança. Joseph Brodski, analisando "O Pavilhão dos Cancerosos", romance de Solzenistkin, diz que o autor vez ou outra demonstra que está para transpor a normalidade eficiente da narrativa para ascender-se a um plano que o aproximaria dos grandes autores russos pré-revolução, mas que nunca consegue dar o passo que falta. Carver, nesse conto, não só caminha com desenvoltura com suas próprias pernas, como rebaixa Lish a um censor que mais cedo ou mais tarde terá que ser reavaliado como uma curiosidade de mercado, e ultrapassa o limite imposto pelos grandes criadores do conto. Enquanto Hemingway é o modelo perseguido por Lish, Carver dialoga com o "coração generoso" que Tchécov dizia ser uma qualidade imprescindível para uma narrativa.

Em "Uma Coisinha Boa", Carver nos dá o calor dos personagens, nos afunda em seus medos, em suas ambiguidades, em suas humanidades. Não o interessa o efeito bombástico, a técnica do assombro que Lish empreende em "O Banho". Lish só podia ir até ali, no terror puro, na falta de esperança. Carver atravessa a linha e nos dá algo excessivamente genuíno: o impacto do que está além da incompreensão das relações humanas. Quando o casal, após a morte do menino (narrada com uma grandeza tolstoiana, o que por si já revela o pecado dos cortes de Lish), se encontra com o ameaçador padeiro, que lhes telefonava repetidas vezes para que estes viessem-lhe buscar o bolo encomendado, acontece algo só possível na grande arte. De madrugada, os pais do menino, frente a frente com o grosseiro e lacônico padeiro, levam o leitor a atingir aquele estágio de envolvimento com a palavra que é capaz de mudanças definitivas: as lágrimas, o desfiguramento que a derradeira compreensão causa, aquela leveza que ao virar a página nos dá a certeza rara de ter sido tocado por uma percepção alienígena.

Ler as versões dilapidadas dos contos de Carver por Lish, é como se contentar em ver um retrato focal do cavalo ferido em detrimento a todos os detalhes suntuosos e fundamentais da Guernica por inteiro.

3 comentários:

  1. O computador facilitou de maneira gigantesca o trabalho de qualquer um que escreve, nem que seja apenas bilhetes (nunca me esqueci que o Milton disse que não usa papel e caneta nem para isso). Mas essa facilidade tirou dos analistas o material riquíssimo que eram os rascunhos dos autores. Tudo bem, a gente acaba imprimindo algumas cópias antes da versão definitiva, porque pela tela é cansativo ler e difícil ter uma idéia do conjunto. Mas estão economizados muitos cortes, versões, sinônimos, troca de frases, enfim, várias idiossincrasias do escritor. Forneceremos, todos, menos material sobre nosso processo de trabalho.

    (Eu achei que você tinha sumido por já estar ocupado com as fraldas... ainda não?)

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  2. Se a senhora pudesse ler Carver, tenho certeza que gostaria muito. Procure em alguma livraria. Seus belos post são sempre sobre a trivialidade (no mais alto significado que isso tenha), e Carver trata disso de uma maneira que eu nunca tinha visto antes. Comprei o volume de contos na sexta, um livro belíssimo também do ponto de vista editorial, e foi, ahaan, 54 reais.

    Tava escrevendo nesse comentário como me faz falta às vezes os cadernos onde a única vantagem era o caráter do texto de ser uma coisa mutável, íntima, rascunhal, mas aí meti o dedo numa tecla e sumiu tudo, como a palavra final do computador.

    A chegada da Julinha tá para o final da semana que vem. É só falar isso que a sapeca dá um chutão, como se entendesse que é a deixa pro show. Na sexta ela chutou a mão do médico, quando ele perguntou comé que vai a menininha. Vou parar por aqui para não ficar chato.

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  3. Essa "mutilação" a que vc se referiu, feita pelo Lish, dexou-me triste, à época em que li sobre o assunto. Mas é típico da indústria norte-americana, por mis restrito e eleitista que seja um autor. É prática deles. Barthelme rachou com a Penguin por isso (depois voltou, mas aí é outra história).

    Este é ainda um dos motivos pelos quais venho a seu blogue. Clareza.
    Valeu, Charlles.

    Gtijó

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