Quem visse o pobre do Blaise Pascal saindo daquela casinha modesta de uma das vielas de Paris, na noite em que foi forçado por sua irmã a participar de uma demonstração de cura milagrosa, nos idos de lá de 1659, não perceberia que se tratava do mesmo matemático e físico que estivera por trás das inovações científicas da Geometria Projetiva e da Teoria das Probabilidades, entre outros achados de sua mente poderosíssima. A diferença é que estava transfigurado, provavelmente (até onde chega a minha imaginação de como fora aquela noite), com um olhar no qual cada milímetro a mais de arregalamento demonstrava que o que acabara de presenciar lhe custaria mais horas de raciocínio para compreender que as gastas na abstração do universo das fórmulas e calculos binomiais. O que acabara de ver, no quartinho apertado, foi o que havia condenado como superstição tola e ilusão farsesca a vida toda, mas que, contudo, realizara-se em completa plenitude diante seus olhos. A mulher que estava na cama, seca e envelhecida pela doença, à espera apenas que a misericórdia do acaso lhe viesse arrebatar de uma vez do sofrimento, à custa das orações dos fiéis impotentes que lhe rodeavam, restabeleceu-se a olhos vistos, a saúde lhe voltara como se dependesse apenas de um afluxo de ar soprado para o interior de seu corpo.
Muitos anos depois, um dos mais eminentes gênios multimídia da História, um senhor cujo talento infinito em revolucionar todas as ciências conhecidas e do porvir lhe havia concedido o cargo de consultor oficial de monarcas de diversos Estados europeus, passeava pelas ruas londrinas. Era o ano de 1744 e o sueco Emanuel Swedenborg já obtivera todas as glórias em seus 56 anos de vida: desenvolvera projetos de hidrostática, inventara sofisticadas máquinas de mineração, desenhara esquetes militares que possibilitaria o impactante uso do sol como arma, além de outros feitos importantes em anatomia, astronomia e geologia. Nessa noite, foi seguido por um homem desconhecido até sua casa provisória em Londres. Recebeu-o cordialmente, não de todo assustado senão até quando o estranho retira o chapéu e demonstra sem meios termos ser Jesus Cristo em pessoa. Jesus viera-lhe pedir que instaurasse uma nova igreja afim de propagar a real palavra da salvação, tão profanada e vilipendiada pelo abuso centenário de eclesiásticos egoístas de todas as vertentes religiosas. Pelos próximos anos de sua longa vida, Swedenborg abandona a ciência e se dedica a escrever uma série de livros inacreditavelmente ricos em detalhes precisos sobre os outros reinos que existem do lado de lá da comezinha realidade terrestre. Tem o salvo conduto de trafegar livremente pelo Céu e pelo Inferno, e como um jornalista acostumado com a fria cobertura das guerras de distantes lugares do globo, registra tudo que vê. Sua grande descoberta é revelar que para a salvação não bastam a piedade e as boas obras: é imprescindível a inteligência. Só através da inteligência e do esclarecimento que o homem poderá usufluir da presença de Deus e da percepção do propósito da criação. Em um de seus livros, relata que um homem abandonara a cidade, seus pertences e o contato com a humanidade, e fora se refugiar no deserto. Por décadas esse homem se dedicara piamente às orações a ao martírio. Quando morreu, dentro de sua caverna cavada na areia, os seres superiores que organizam os planos celestes não souberam o que fazer com a sua alma. Em sua ignorância do isolamento, não poderia participar dos diálogos elevados e dos debates sobre as análises da criação com os quais os anjos preenchem seus infinitos cotidianos. Resolvem então criar um ambiente semelhante ao deserto no qual o eremita viveu na Terra, para que ele possa passar todo o resto da eternidade.
Por que resolvi escrever essas coisas? Lembrar desses velhos loucos, esses cérebros que um dia sucumbem à contração de seus superatrofiamentos e deixam de ser coerentes e produtivos para serem apenas divertidamente esclerosados? É porque, eu vivo no limite da exaustão. Meus dias são dedicados a ouvir, ler, participar coniventemente, levar adiante, a flagorosa bandeira da razão e da opinião concreta, sempre preparado e esperando ansiosamente o momento em que eu possa tirar do bolso e dar uma carteirada com minha insígnia de conhecedor profícuo da percepção legalizada. Me cansam os livros na estante, apesar de não saber viver sem eles. Me cansa o enorme vácuo que me cerca ameaçadoramente sempre que eu pego um desses livros para confirmar uma velha verdade estabelecida. Me dá a Tristeza Maiúscula Não Negociável ao reler, como ontem, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" com todo aquele idioma impecável e fluido, toda aquela festa de frases assertivas e pensamento inesperado, e pensar: "para que isso tudo, se o homem desapareceu. Uns óculos postos sobre a mesa onde seus pulsos descansavam da labuta com os teclados, no futuro museu da lembrança de sua presença; e valeu alguma coisa? Um desconcertante fingimento de perenidade que nós fazemos por aqui, sua esposa e nós leitores, monumentos, bibliotecas, leituras coletivas, festas de homenagem em Paris e Parati, mas tudo uma merda de uma piedosa farsa para alimentar aquilo que os fatos desmentem de forma impiedosa, que tudo vai desaparecer sem controle, sem justificativa, sem álibe, e não serão novas edições luxuosamente encadernadas que mudará isso."
O fastio da voz imposta vinda da televisão onde está em seu horário muito bem pago o Doutor Phd com suas respostas oráculares prontas. Ou a simples exaustão de me olhar no espelho e não ver nada, não intuir nada, além do que pode dar a superfície refletora. Aprender a continuar interpretando as coisas pelo filtro patenteado com as marcas registradas tradicionais, o cartel da Ciência e co., o monopólio da Igreja Ltda. Como disse o Cortázar (meu Deus, e vai-se embora a impressão de meu Cortázar, esse que sumiu sem deixar nada que desfragmentados vestígios orgânicos no solo argentino), a vida toda não passa de um sistema de acondicionamento em que tem-se que aprender a aceitar a eterna ponta da bota acertando todos os dias os nossos pobres cus, a ponta entrando cada vez mais para dentro dos nossos cus desprotegidos e arredios. E a ânsia que não desaparece _ se pelo menos tivessem nos dado uma desesperança verdadeira e definitiva _ de que um dia encontraremos o Reino, seja por qual caminho desarroado e impróprio, mas é a percepção do Reino que nos move a construir parábolas de justiça (Kafka), a nos compadecermos de Odete tão-sem-sorte-porque-lhe-abandonou-o-marido-e-as-filhas-morreram-de-varíola, a enviarmos uma carta anônima onde se destila com uma sinceridade terrível o desabafo de que por detrás do ódio fiel e irremovível a que dedicamos a nosso inimigo esconde-se um amor de impossível reconciliação, Ou conquistarmos o Reino à marra, através do assassinato, do alcoolismo (todo bêbado é um místico), do homossexualismo, das drogas, da ascepcia radical, do suicídio sincronizado pela liberade de um país, pelo futebol ou pela dança cutuchama dos índios Anhãnhãnhãs.
Entrar em cada igreja dos territórios conquistados e fazer uma oração para cada deus desconhecido, como fazia Alexandre. Passear pelas charnecas inglesas, encostar a bicicleta nos muros de pedras, e se enternecer com a sacralidade do silêncio dos velhos templos milenares, como fazia Bernard Shawn. Oferecer um galo a Asclépio em benefício de sua alma, como solicitou que lhe fizessem o Sócrates com a cicuta passeando em suas veias. Abraçar o cavalo alquebrado e trêmulo do cocheiro desalmado, e se identificar com a alma legitimadora do animal, como o fez Nietzsche. Olhar para seu corpo ferido atirado no chão, do alto dos obuzes e do campo em chamas, como o fez a flamante consciência de Hemingway. Levantar a cabeça do travesseiro para ver, numa noite tristíssima de solidão inconformada de 1999, a aparição do filho abortado que poderia ter sido mas não foi, o espaço sem face de um adeus que perdoava.
Swedenborg e Pascal talvez tenham contribuído para trazer a intuição de que, se somos destinados ao nada ou ao Reino, o caminho que seguimos até agora tem sido um atroz acúmulo de erros que não faz justiça nem à maravilha da própria fugacidade. Como disse Salvatore Quasimodo:
Todo homem está só no coração da Terra, trespassado por um raio de luz; e de improviso, é noite.
Sou leitora ávida de Swedenborg.
ResponderExcluirMaravilhoso o seu texto. Obrigada por compartilhá-lo.
Obrigado a você pelo comentário, Elis.
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