Na biografia de Hitler escrita por Joachim Fest há um fato contundente: pelas 855 páginas de texto, dificilmente se acha alguma revelação pessoal sobre a persona in foco. O que se tem é uma minuciosa análise cronológica e histórica dos 56 anos de Hitler, desde seu nascimento em Branau, até seu suicídio no Bunker da Chancelaria do Reich, em Berlim. O máximo que um jornalista com o empenho de Fest pôde fazer, numa pesquisa que se iniciou menos de duas décadas após a rendição incondicional da Alemanha e o desaparecimento de seu herói derrotado, foi compilar as demonstrações raras mas já conhecidas em público do enternecimento de Hitler pelas músicas de Wagner e sua afeição aos cães. Mais do que isso, apenas no final dos anos 1990 apareceriam algumas fotos ultra-secretas de um pré-ditador entregue a poses florais, numa tarde de sol primaveril que impossibilitaria prever que seu simpático modelo seria responsável pelo maior processo de auto-desencanto da humanidade. O Hitler de Fest é um homem que já nasceu com um propósito, moldou toda sua vida para a efetivação desse propósito, cortou o frívolo e o subjetivo até se resumir por completo a uma máquina obsessiva que não se importava com a dor, o sofrimento, a alegria ou a vida, sua ou a alheia: o propósito de elevar a Alemanha à condição mitológica de supremacia espiritual dominante sobre todos os outros povos. A vaidade pragmática de Hitler, firmemente reduzida a uma estampa de assepcia funcional para ser mostrada às massas, leva a crer que ter sido ele o escolhido pela História para encabeçar esse propósito era apenas um acaso para o qual ele se preparara para o momento previsível do seu sacrifício absoluto. E não é difícil ao leitor concordar que o Hitler de Fest está um milímetro próximo de quem Hitler foi realmente.
Fest não esconde sua admiração por Hitler. Há um tom sempre descomedidamente êxtático quando apresenta a disciplina espiritual de seu retratado, uma cadência aliterativa ao descrever seus anos de penúria em que rondava por uma Berlim indiferente a seus ralos dotes estéticos de pintor, a sua solidão passional transfigurante no quartinho miserável em que compunha suas idéias políticas que iriam preencher o Mein Kampf, a sua imponência estóica de manter um silêncio concentradamente avaliativo quando das primeiras derrotas militares na invasão da União Soviética. Fest acompanha passo a passo a trajetória de uma entidade soturna e profundamente solitária até a sua ascenção ao topo, e demonstra a justiça determinante que vigora por sobre os super-homens. Mas, uma vez ou outra, lembrando que escrevia isso tudo em um período em que a memória recente matizara Hitler como um demônio intocavelmente não relativizável, Fest desconversa, faz uma pausa para satisfazer as exigências do vulgo, faz vênias burocráticas à opinião estabilizada ; para citar uma expressão popular: doura a pílula. Em uma parte em que compara Hitler a Stalin, Lênin, Trotski e Napoleão, não esquece de salientar logo a seguir o apesar de Hitler ser menor que todos esses nomes. Qualquer estudante secundarista saberia que retirar Hitler para um degrau abaixo de Stalin, ou Trotski (o parricida inconfiável, na visão de Churchill), só se presta a maquiar uma opinião resguardada que se mantêm no foro pessoal do biógrafo. No prefácio (já por si mesmo fundamental) da obra, Fest salienta a grandeza histórica de Hitler, pegando de referências de Jacob Burckhardt para ressaltar que tal grandeza nada tem a ver com a estatura moral.
Joachim Fest, morto em 2006, faz um trabalho notável, profundo, com uma erudição elegante com marcado acento alemão (às vezes é necessário uma atenção acirrada do leitor para aproveitar as nuances filosóficas da obra). A mais completa biografia de Hitler. A própria história de vida de Fest é substancial: foi opositor expresso ao nazismo, mas, soldado da Wehrmacht, foi capturado e mantido preso na França até o final da guerra. Sua intimidade com Hitler nos anos de pesquisa e composição desse livro não poderia não ter deixado de gerar uma simpatia para com o promulgador do nazismo, ainda mais pelo escopo altissonante da obra em ser um trabalho intelectual independente a concepções formadas e pré-julgamentos. Na descrição dos últimos momentos de Hitler, contudo, Fest mostra que o longo olhar lançado ao abismo (no aforismo de Nietzsche) não o fez perder o senso humanitário e a percepção da derrocada espiritual do século XX. Mostra para um leitor recompensadoramente cansado ao final das quase 900 páginas de texto que o paranóico que foi Hitler sucumbiu ao enorme peso de sua sobre-humanidade e solidão, momentos depois de ter testado em sua cadela Brondi a eficiência do veneno que iria matá-lo.
Em completa contraposição conceitual e temática ao livro de Fest, tem-se o monumental "Massa e Poder", de Elias Canetti. Pouco se referindo ao nome de Hitler, que aparece somente no sombriamente alvissareiro pósfacio, Canetti produz um estudo abrangente sobre o outro lado que promoveu a grandeza histórica de Hitler: a alienação inata das massas, sua fácil condução pela orquestrada imagem imperiosa, e a infinita necessidade do homem pela veneração. Iniciando por uma investigação do psiquismo mítico da personalidade das nações européias, relacionando cada qual a uma força da natureza (a da Alemanha sendo representada pela floresta: a disposição militar das árvores em estar em enfileiramento régio), Canetti faz um manual imprescindível sobre a inexorável rendição das massas ao Mal. O que ele diz, através de uma inteligência para a qual não escapa a mais efêmera e indistinta propensão humana, é que, enquanto o homem permanecer avesso ao esclarecimento, refugiando-se na comodidade falsa e letal das massas, novos representantes dessas massas, medíocres e perturbados como Hitler e Mussoline, continuarão aparecendo em curtos períodos sincronizados de tempo para comandar mais uma vez o ensaio da destruição absoluta. Olhando diretamente para o Abismo, confrontando-o sem medo, Canetti vê a pequenez real de Hitler e a grandeza da ignorância humana que o espelha e o elege como o Eleito.
Da próxima vez coloca o link do livro, pra eu fazer idéia da capa e do preço...
ResponderExcluirMeu marido é um grande estudioso da 2 GM, por puro hobbie. Já leu todos os livros possíveis e coleciona DVDs dos melhores filme. Isso sem falar do plastimodelismo, o que me faz cutucá-lo cada vez que aparece um tanque ou um avião, em qualquer lugar, para ele me dizer o nome e a biografia completa do modelo.
Por causa disso, o presenteei com tanto material (sim, para ele eu compro livros) que hoje em dia ele nem quer mais nada. Depois do excelente Soldados Cidadãos principalmente. Será que ele se interessará por essa biografia?
Caminhante, desculpe pelas enormes ineficiências gráficas e funcionais desse blog. Como estou com relativamente pouco tempo nessas semanas, ainda não me prestei a aprender detalhes substanciais como pôr imagens nos post, links e etc. Para continuar escrevendo aqui, me imponho uma disciplina de me sentar de frente ao computador e produzir a coisa da forma mais concentrada e espontânea possível, seguindo o conselho do Bellow de que, se não vem fácil, não vem. Não sei se me dei bem com o Analitycs. Explorei-o de alto a baixo mas algo me diz que não estou entendendo bem a coisa: segundo entendi, esse blog está se tornando famoso nos EUA e na China, com 11 acessos vindos do primeiro, e 7 do segundo.
ResponderExcluirO livro, pode comprar para o marido que é fantástico, mas só se ele gostar realmente de leitura substancial. Meu presente preferido é livro, e adorei quando ganhei dois volumes da coleção de Obras Completas de Borges da minha esposa, quando eramos namorados.
Também fui adepto de plastimodelismo. Não continuei por não achar mais facilmente os exemplares da Kit Revel (háaa, saudades!)
Ah! O livro é da Nova Fronteira, em 2 volumes. Comprei-os, há dois anos, por 105 reais. Não deve ter variado muito o preço.
ResponderExcluirNão é do Fest outro livro sobre Hitler que deu origem ao filme OS ULTIMOS DIAS DE HITLER?
ResponderExcluirDe tanto ouvir sobre o Canneti, vou acabar lendo. Mas o livro dele não tá esgotado?
Não conhecia esse outro livro de Fest, Rivair. Obrigado pela dica.
ResponderExcluirSobre Massa e Poder estar esgotado, talvez vc tenha incorrido no mesmo engano que eu, achando que só teria a edição lançada pela Editora Perspectiva _ que realmente se esgotou. Mas a Cia das Letras fez o favor de relançá-lo.
Abraço.
Você já foi plastimodelista? Meu deus, vocês são piores do que ácaros!
ResponderExcluirCaminhante e Charlles, vocês conhecem a piada do platimodelista?
ResponderExcluirA mulher do platimodelista:
"Pô, cara, tô de saco cheio de tropicar em tanta caranguejola pela casa; você não passa de um platimodelista de merda!!!
O platimodelista:
UAU, é isso: merda como aglomerante!
Certamente vocês não conhecem, pois acabei de inventá-la...
ResponderExcluirPiada de CDF, Ramiro!
ResponderExcluirÉ uma piada relâmpago: ri-se depois,
ResponderExcluirdo clarão do entendimento, feito trovão!
Hahaha! Acaba de me convencer que esse doutorado em engenharia te elevou mesmo à qualidade de poeta e gênio maluco. Sem curtição _ ou COM curtição, conforme o ângulo de vista _, fiquei pensando nessa piadinha enquanto dirigia hoje, e ri à beça. Tu tens esse efeito retardatário, para o riso ou para o choro (a incrível história de seu pai que NUNCA me sairá da cabeça).
ResponderExcluirA propósito, vistes no blog da Rachel que o Marcos lançou um livro de poesias? O próprio título já é um poema: Poesia é uma prosa que se quebra.
Agora chega, se não o Milton vai ficar enciumado e vai brigar contigo por e-mail.
Não sabia. Vou lá, dar uma espiada.Ele poderia nos ter avisado... Sempre pensei que o livro fosse prosa.
ResponderExcluirRealmente, "Poesia é uma prosa que se quebra" é bonito pra carajo!