segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Fear of Music




De tempos em tempos eu me desfazia completamente de tudo que tinha de música. Já fiz isso, que me lembre, três vezes, pegar caixas de papelão e enchê-las com meus CD's, ou, em épocas mais antigas, de meus bolachões de vinil, e dar um sumiço neles, vendendo-os em sebos no centro da cidade a preços módicos, ou doando-os a conhecidos. Era um stress musical que só se resolvia com esse sacrifício radical. E havia tantas peculiaridades envolvidas nessa abdicação, que já pensei se não haveria algo equivalente naqueles estudos detalhados de Freud sobre os frenesismos da mente. Se não havia passado pelo divã do célebre psiquiatra austríaco algum jovem da classe média de Viena que se comprazia de tempos em tempos a abrir mão de seu gramofone e das partituras das obras completas de Haynd. Pois eu me sentia uma espécie de Caso Schreber, naquele relato clássico de Freud sobre o juiz que se interna pelo resto da vida num manicômio privado porque intui que não pode estar de todo certo achar-se noiva de Deus e centro magnético do universo. Eu me achava numa situação que, para alguém incapaz de viver sem música, era quase proporcionalmente tão preocupante não sentir mais nada diante o solo de cinco minutos de Duane Allman em "Blue Sky" que ter certeza que raios emitidos diretamente de Deus se encontravam em meu corpo. Não sabia o que acontecia comigo, mas era tomado por um impulso verdadeiro e irresistível.

Das últimas duas vezes em que fui tomado por essa afasia musical, contudo, resisti a abrir mão apenas de dois CD's. Dos quase quatrocentos álbuns que tinha, (quantidade não verdadeiramente substancial diante a dos colecionadores profissionais), entre jazz, erudito, rock e derivados, só conservei dois discos do mesmo compositor: Astral Weeks e Moondance, de Van Morrison. Isso me parece mais emblemático e estranho por Van Morrison estar longe de ter a representatividade íntima que outros artistas tiveram na minha vida, artistas que não relutei em condená-los à caixa. Não dei o nome de Van Morrison a meu cachorro, como fiz com que meu Rotweiller fosse agraciado com o nome de Miles Davis, e não foi esse velho irlandês o responsável por minha esposa ter me olhado com uma cara de piedade estarrecida como se eu fosse o louco tradicional da cidade quando sugeri que nosso filho se chamasse Jethro. E, a guitarra imaginária que toco no chuveiro não é a do ex-componente do Them, mas a de Clapton (tãrãrãrãrãrãrããããã- tããrãrãrãrãããã...). Freud na certa iria querer saber porquê, diante a magnanimidade de "Kind of Blue" e da Nona Sinfonia, só a voz rasgada do Morrison acalmava minha musicofobia.

Nesse final de semana, precisamente na noite de sábado, me veio claramente a resposta que faria o charuto de Freud parar em meditada atenção no meio da boca. Ouvindo o álbum "Moondance", depois de vários meses distante dessa obra ímpar, eu soube a razão de me cansar de tudo que me passara pelos ouvidos sem que o branco mais negro da Irlanda me afetasse um tiquinho sequer. "Moondance" é cheio de leveza, brilho real, atmosfera primaveril, calor humano, anti-intelectualismo; "Moondance" é uma das alegrias de viver, um esconjuro da alma, um delicioso sol amistoso por toda parte. Quando ouço a primeira frase cantada do disco,               

         Half a mile from the county fair
        And the rain keep pourin' down


eu me sinto molhado pela chuva ao lado do rio, com as varas de pescaria na mão. Todo "Moondance" tem algo que raramente se vê na música pop: uma iluminação genuína, uma simpatia expansiva por toda a humanidade, uma amizade whittmaniana. Morrison e sua trupe orquestral de músicos se interagem com uma franqueza desarmante. Em "Caravan", uma das músicas mais lindas de todos os tempos, a visão dos ciganos traz uma sensualidade irresistível,

       And the caravan is on it's way
       I can hear the merry gypsies play
       Mama mama look at Emma Rose
       She's a-playin with the radio
       La, la, la, la... 


E "Astral Weeks" é a antítese de "Moondance". Fala do lirismo da solidão interior, da busca espiritual, da meditação e das lembranças. "Astral Weeks" merecidamente aparece entre os dez maiores discos do século XX, por sua candura, sua tensão e seu repouso, o mundo de plenitude incomum e original do dessa vez introspectivo Van Morrison entoando o mantra,


       If I ventured in the slipstream
       Between the viaducts of your dream
       Where immobile steel rims crack
       And the ditch in the back roads stop
       Could you find me?
       Would you kiss-a my eyes?
       To lay me down
       In silence easy
       To be born again
       To be born again


Nesse sábado à noite, bebendo um vinho no direito a meu momento de solidão inviolável  trancado nos quartos do fundo da casa, eu tive mais uma vez esse antídoto contra a mesmice e a pretensão que existe por grande parte da música grandiosa e desgastante, de câmara, polifônica ou de três acordes, improvisada ou de partitura. Só faltou a percepção premeditada de trocar o vinho por um bom uísque de sabugo irlandês.

2 comentários:

  1. Eu só consegui me imaginar de madrugada vasculhando o teu lixo...

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  2. Hoje já não há mais compensação nem nas perdas voluntárias. Tudo pode ser baixado _ o que é bom, claro, mas retira alguns elementos essenciais da busca. O estravasamento me venceu. Não adianta tentar me limpar, por um tempo, do excesso de música, porque ela tá em todo lugar.

    Mas baixe "Moondance" e "Astral Weeks". Não sei se é tua praia. Mas lhe garanto que se você não tiver um arrepio de satisfação em nenhuma das músicas, vai ser chocante pra mim.

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