Aos eventuais visitantes deste blog, peço desculpas pela ausência desses últimos dias. É que acompanho minha esposa nos exames de rotina no obstetra, e presumo que isto ainda ocupará meu tempo por toda essa semana. Tentei desenvolver algumas ideias por escrito, ao correr da espontaneidade vigiada, como me é de praxe, mas estou exausto. O trânsito, os elevadores, os franelistas, o calor, os aviões passando, as novas alterações do sentido das ruas de uma velha capital por muito tempo não visitada, tudo isso me esgota ao final do dia como se na verdade eu fosse aquele estivador das putas do cais do porto, da canção. Mas para mostrar que não esmoreci, levanto a cara do colchão, e com os costumeiros dois dedos cheios do vício da digitação nunca aprendida, escrevo esse prólogo a mais um comentário postado por mim, no blog do Milton Ribeiro. Procês verem: não tive ânimo nem de folhear as duas maravilhas adquiridas hoje, do Júlio Cortázar (Último Round, e Volta ao Dia em Oitenta Mundos), que, contudo, me deixaram com a comichão de desenvolver um texto provando que o genial argentino foi, sem o saber, o primeiro blogueiro. Segue a reprodução do comentário.
Também acho que a música é a mais superiora das artes; mas, solitária, sem as outras que dependem dela, tornaria-se vazia e perigosa. Se a ânsia humana por indagação tivesse parado nas sonatas para flauta e cravo de Bach (que eu as amo apaixonadamente), esses exercícios de floreamento matemático ultra-rápido e densamente compressivo de insinuações espirituais teria se reduzido ao que um cantor sertanejo do naipe do Eduardo Costa a entenderia: uma dura provação de estranha música natalina funesta, desgraçadamente chata (que minha esposa, uma curtidora iconoclasta cujo passatempo preferido é tentar torrar minha inexpugnável paciência, diz ser tema para enterro do papai noel_ ela também adora gritar lá da cozinha, quando ponho pra tocar o solo de trumpete rasgado do Pat Mepheny na canção com o BB King, “Guess Who”: “Sooolta o gato!!!”) . Mas, quando adolescente ainda, tive contato pela primeira vez com uma dessas sonatas, de madrugada, após ter chegado de uma festa emocionalmente frustrante, ouvindo-a como uma premonição pela rádio universitária, como se um flautista realmente tivesse decidido cumprir a antiguissima imagem mais poética do mundo e subiu para o telhado para tocar para a cidade adormecida.
Daí percebi que não podia mais viver sem aquilo, que aquilo me definia, pela extrema angústia que senti, e pela extrema alegria de saber que zonas extraterrenas assim podiam ser alcançadas, e que tudo pairava abaixo daquele telhado na devida forma irretocável da passagereidade de todas as coisas_ todas as coisas que não fossem aquela intuição espiritual inadmissível e ainda assim (nesse lastro de oxímoros e contradições a absurdos plausíveis que a música consegue provocar) perfeitamente reconfortante. Pois quando ouço Bach, Beethoven, as conflagradoras e impossíveis partes finais de “Pictures at an Exhibition” e “Firebird” (que minha esposa, tocada, me encheu de amor um dia ao, em estado de trégua, ter dito que ambas pareciam a festa de celebração por uma cidade resgatada) tenho uma certeza divina (que é outro assunto e não quero atiçar tendências).
Há músicas que me fazem fechar os punhos e pensar, absolutamente surpreso e tomado da mais virulenta das vinganças: “Mas nada pode com nós, porra!”. Lembro de Alex Ross escrever que após as complicadas pautas de criação do que estava se tornando a música minimalista norte-americana, gente como Steve Reich e Arvo Part, saíam do academicismo extremado das universidades para aprender com os solos de meia hora de John Coltrane, no Note Blue e outros bares de jam. E meu disco preferido de Coltrane é um gremlin que eu me iludo só eu ter, por tê-lo encontrado no fundo de um sebo escuro, que tem uma versão exorcista ao vivo de 17 minutos de “My Favorite Things” que meu filho de quase um ano adora ouvir quando a coloco no último volume; e que para mim é um mantra que resume uma luta primordial, tanto da humanidade afundada em crônico desespero nas tentativas de se superar, quanto de Coltrane para angariar de deus a evaporação do grande tumor que lhe comia o fígado. (Uma versão que minha esposa disse_desta vez por eu ter-lhe perguntado o que parecia_ ser o lamento apaixonado de um jegue; que eu, veterinário, adorei!)
E daí que a literatura se coliga à música. Os maiores livros são distúrbios calibrados de música, apanhados organizados de música. Não diria isso que mencionas no post sobre Faulkner, que ele pode ser uma escala determinante de excelência na escrita. E tampouco acho que Bernhard tenha algo a ver com Kafka (se o tal austríaco a que você se refere trata-se do autor de Extinção). Ambos possuem uma qualidade raríssima entre escritores: criaram um universo particular, para poucos, o qual ascende-se bem acima da superfície mundana. São similares em esoterismo alienígena a Bach, porque compactuo de Bellow a crença de que os grandes livros são esotéricos.
Nas últimas páginas de “Origem”, Bernhard, após narrar todas as angustiosas tentativas de se curar da doença fatal dos pulmões que lhe acometia, recebe a informação de que nada pelo qual passou havia surtido efeito; que teria que trafegar novamente por todos os centros cirúrgicos para corrigir seu pneumotórax, e se internar em todos os asilos nos quais já havia se internado, por longos períodos. Daí ele sai pela porta do hospital em direção ao mundo, para sempre_ ele ressalta: para sempre! Não iria se importar mais…
No romance “Dezembro Fatal”, de Saul Bellow, o personagem principal, um deão de universidade isolado na Romênia, à espera de que as autoridades revolucionárias liberem o corpo de sua sogra, relembra o que certa vez ouvira num metrô de Londres: “Nada existe por nada ser realmente absurdo para existir”. Era um velho cavalheiro inglês que havia sido ateu a vida toda que o dissera, e que concluía: “Talvez, então, Deus exista!”
Grandes escritores, não grandes livros_ talvez! Faulkner disse que se vivessemos quatrocentos anos, Dostoiévski, Cervantes, já teria dito tudo que ele dissera, o tornando obsoleto. Tenho a íntima convicção de que os grandes músicos e escritores sejam perseguidores, que margeiam o limite impossível, sem nunca o adentrarem. A entrada só seria possível num outro grau de evolução, num outro coeficiente perceptivo, num outro merecimento espiritual.
TREM VOADOR
ResponderExcluirby Ramiro Conceição
Nosso trem não tem trilhos
porque vem de lá, d’aurora;
e o único lugar onde pára
é na democracia do agora.
Entram seres estranhos.
Saem... seres humanos!
O trem apitou!...
Quem entrou, parte.
O destino? É a arte!
Amado Charlles,
ResponderExcluir"O TREM VOADOR" apita assim:
http://www.youtube.com/watch?v=v1jK2Gths2M&feature=rec-LGOUT-exp_fresh+div-1r-2-HM
Fala de uma gravação obscura em que o Trane duela com Eric Dolphy, o primeiro no tenor, o último na flauta transversal (vice-versa?)? Acho que o R. Cook atribui a gravação a Helsinki (1961)...
ResponderExcluirLuiz
Não, Luiz. Essa a que se refere, não tenho. Saberia me dizer como localizá-la? A que me refiro, é de um antigo CD de 1992, de uma série obscura lançada fugazmente nas bancas, intitulada "A Jazz Hour". Encontrei-a sem a revista, num sebo. São 7 ou 8 faixas, gravadas ao vivo em 1963, em algum lugar da Europa. A "My Favorite Things", a faixa um, é simplesmente sensacional. Coltrane fraseia a esmo, Elvin Jones faz das suas...
ResponderExcluirRamiro, meu querido. Estou na casa da mamãe e ela deixou a ordem taxativa: não acessar o famigerado e virótico Youtube. Fiquei muito curioso. Sei que não deve ter nada a ver, mas pensei que talvez fossem as imagens nostalgicas de um jovem estudante de engenharia recitando em praça pública, diante as câmeras do JN.
ResponderExcluirSábado verei, quando da volta para casa.
(tu não me respondestes ao comentário lá no Hitler. Vá lá!)
A música não é nada solitária, ao contrário -- é a arte mais sensível à realidade. Tudo ocorre antes na música. Stravinsky e Bartók vieram antes de Joyce, Orff veio antes de Robbe-Grillet, Kokoschka desejava pintar como Mahler, etc. E sempre foi assim. Acho incrível que as pessoas não notem que a música não existe sozinha pelo simples fato de estar à frente de todas as formas de expressão, bem junto à realidade.
ResponderExcluirQueres saber o que será da alta literatura? Basta observar o que já houve com a música de melhor qualidade: é coisa de especialista, divorciada do grande público, grudada na realidade de pessoas que a negam.
A música só fica solitária porque as outras artes se atrasam.
Abraço.
"A música só fica solitária porque as outras artes se atrasam.' Lapidar!
ResponderExcluirE os minimalistas que antecederam o Carter; Louis Armstrong o Ralph Ellison; Charlie Parker o Cortazar...e assim vai...
Várias versões do My Favorite Things se multiplicaram nos 60 através de formações mais ou menos estáveis as quais incluíam normalmente Trane e Elvin Jones. A que eu fiz referência não é lá tão conhecida (se eu não me engano o Trane gravou a mais famosa parceria com o Dolphy nesse tune no Village Vanguard). Nesta Trane e Dolphy já duelam como que antecipando o New Thing de Ascension.
ResponderExcluirNão é tão difícil de encontrar não. Acho que a Amazon tem.
É esquisito você ser o blogueiro e o Milton o comentarista.
ResponderExcluirEsquisitíssimo!!!
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